19 Julho 2018
Amigos e familiares de Nazildo dos Santos Brito, defensor ambiental, relatam novas ameaças na Comunidade do Turê III.
A reportagem é de Catarina Barbosa, publicada por Amazônia Real, 17-07-2018.
Nazildo era agricultor e, na foto,
ele ao lado da sua plantação de mandioca
(Arquivo da família/ Amazônia Real)
“Ele está fazendo muita falta. Ele era o nosso líder. Era ele que lutava pelo povo do Turé”, diz a agricultora Zueide Oliveira, de 24 anos, sobre os três meses da morte do líder da Comunidade de Remanescentes de Quilombo Turê III, Nazildo dos Santos Brito, assassinado a tiros no dia 14 de abril deste ano, no nordeste do Pará.
O crime continua na impunidade. Mas Nazildo, que tinha 33 anos de idade quando foi assassinado, chegou a registrar, quatro anos antes de sua morte, boletins de ocorrência na Polícia Civil, do município de Acará, denunciando as ameaças que sofria e os crimes praticados dentro da comunidade quilombola por fazendeiros, posseiros e pistoleiros. Em 14 de abril de 2014, ele também pediu proteção ao Ministério Público Federal em Belém, conforme documento do qual a reportagem da Amazônia Real teve acesso.
Amigo de Nazildo, Laelson de Souza afirma que ele era muito ameaçado. “Uma vez um fazendeiro tentou tacar fogo na casa dele. Em outra fizeram uma emboscada pra ele na estrada. O cabra fechou o caminho e foi pra cima dele, mas ele era corajoso. Botou o homem pra correr. Tudo isso que eu estou contanto era avisado pra polícia, pro Ministério Público Federal”, diz o agricultor, que também é liderança da Comunidade Turê III.
Em outro documento registrado no MPF por Nazildo e Paulo de Deus Nunes dos Santos, no dia 14 de janeiro de 2014, os dois relatavam ameaças por parte de um fazendeiro, que alega ser proprietário de 2 mil hectares, que ficam dentro do território quilombola. “Armado e na companhia de mais quatro homens, o latifundiário ameaçou Nazildo”, diz um dos documentos.
À reportagem, o MPF disse, em nota, que o pedido de proteção de Nazildo gerou o documento n° 1.23.000.000158/2014-33. “Após análises das representações dos ministério em Belém e em Brasília, a instituição considerou que a competência para atuação no caso não era federal, e sim estadual. Por isso, em 14/04/2015 o caso foi declinado para o Ministério Público do Estado do Pará por meio de ofício enviado ao procurador-geral de Justiça” – se passaram 15 meses de quando Nazildo pediu a proteção. Procurada, a assessoria do Ministério Público do Estado do Pará explicou que a Promotoria de Justiça de Acará recebeu, em 30 de abril de 2015, o ofício do MPF. “No dia 7 de maio de 2015, a Promotoria de Acará determinou a delegacia de polícia do Acará obtivesse mais informações sobre o que havia sido registrado no B.O. Reforçou que, caso não tivessem sido adotadas providências, que fosse instaurado, imediatamente, o procedimento policial cabível, sem prejuízo das medidas cabíveis contra o Delegado que não cumpriu com suas obrigações a época.” (Veja os Boletins de Ocorrência aqui)
A nota do MPPA encerra dizendo que “em 25/06/2015, a delegacia de Acará informou que não existe procedimento relacionado ao boletim de ocorrência, porém, informa que irá instaurar o inquérito policial devido. Em buscas nos arquivos da Promotoria de Acará não consta nenhum outro expediente registrado por Nazildo dos Santos Brito, sobretudo referente a ameaças.”
Em 2015, o líder da Comunidade Turê III registrou novas ameaças de morte na Polícia Civil. Veja aqui.
O corpo de Nazildo foi encontrado no dia 15 de abril de 2018 no ramal na zona rural de Tomé-Açu, que fica na Comunidade do Turê III, com marca de tiros nas costelas e na cabeça. Segundo a polícia, a motocicleta e objetos pessoais da liderança não foram levados pelo autor dos disparos, daí a suspeita de execução. Familiares da liderança dizem que ele portava um revólver, que foi provavelmente roubado pelos assassinos.
“Eu não aceito a morte do meu amigo. Não era pro Nazildo estar só naquele dia [14 de abril], a gente tinha combinado de ir junto pra Quatro Bocas, mas ele foi sem me avisar. Talvez tivesse querendo me proteger”, afirma Laelson de Souza.
Francisco Amaral dos Santos, de 64 anos, pai de Nazildo, acredita que seu filho foi executado. “Não foi roubo. Se fosse roubo tinham levado a moto dele, já o revólver levaram. Ele tinha comprado um revólver para proteção, porque ele não tinha nenhuma”, justifica o pai. Após a morte de Nazildo, no dia 18 de abril, o MPF em Belém pediu à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos no Pará a inclusão no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos dos quilombolas Laelson de Souza, Ananias Brito de Souza (irmão do líder da comunidade) e mais três pessoas. “Eu mesmo, depois da morte do Nazildo, pedi proteção e até agora nada”, afirma Laelson.
A Comunidade de Remanescentes de Quilombolas Turé III é cercada de floresta nativa. As casas não são aglomeradas, como nos centros urbanos. Mas por estar localizada em uma região de difícil acesso, segundo os moradores, fazendeiros e posseiros invadem e exploram de forma ilegal as árvores do quilombo. A poluição de agrotóxicos na produção de dendê, que fica também no entorno do Turê, traz ameaças aos moradores.
Essa situação sempre foi denunciada pelo líder Nazildo dos Santos. “Quando Nazildo morreu, a gente ficou sem chão, não conseguia acreditar. Desde então, todo mundo vive com medo, porque ninguém quer ser o próximo. Eu tenho uma filha pequena que depende de mim, mas também sei que a comunidade precisa de muita coisa”, lamenta a agricultora Zueide.
Em novembro de 2007, a Fundação Cultural Palmares concedeu à Comunidade do Alto Acará a Certidão de Autodefinição, reconhecendo os moradores como remanescentes do quilombo, que engloba seis comunidades quilombolas em mais de 22 mil hectares. Mas o território não está regularizada pelo processo que tramita no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
A certidão da Fundação Palmares não trouxe paz para o Turê. Brigas entre os moradores e os grileiros/fazendeiros e as empresas do dendê, como a Biopalma, se acirraram.
Laelson de Souza, 31 anos, conta que o amigo Nazildo denunciava todos os invasores da terra e que pistoleiros já agiam dentro do território para intimidá-los. “Com esse tipo de ação, eles conseguiram botar muita gente para correr daqui”, lembra Souza, que atualmente é líder do Turê.
Laelson disse que o momento mais difícil do enfrentamento contra a destruição dos mananciais da comunidade do Turé foi quando ele e Nazildo, seu amigo de infância, foram presos após a manifestação contra a Biopalma S/A.
“A nossa prisão foi arbitrária. Não fomos nem presos em flagrante, mas levaram a gente na hora. Na verdade não foi prisão, foi emboscada. Ele ficou seis meses na cadeia e sequer foram ouvir ele. Eu, depois de seis meses fui liberado. Tava pra ficar doido naquele lugar. Mas foi tudo armado, tudo pra tentarem dizer que a gente é bandido, mas a gente nunca foi bandido”, contesta.
Laelson disse que ainda responde por crime de extorsão. Ele nega seu envolvimento no caso. “Na verdade o mais comum é o inverso: empresas e fazendeiros é que oferecem dinheiro para que eles [os moradores do Turê] aceitem as atividades ilegais no território quilombola”, afirma.
A Amazônia Real tentou contato com a Biopalma pelo site e pelo telefone da sede em Belém do Pará, mas não obteve retorno. Ao entrar em contato, por telefone, com o diretor da empresa João Menezes ele afirmou que tem um posicionamento sobre o caso do Nazildo, mas que irá enviá-lo nesta segunda-feira (16). Assim que o posicionamento da empresa chegar, esta reportagem será atualizada.
Na semana em que Nazildo foi assassinado, a Associação Amarqualta estava na iminência de eleger um novo presidente. Para Laelson este foi o fato que selou o destino do amigo. “Na terça, dia 10, ele me disse que estava com tudo certo pra concorrer. E ele ia ganhar. Quando a notícia se espalhou foi que começaram os boatos de que estavam atrás dele. A eleição seria no domingo, dia 15. Nazildo foi morto dia 14 (abril). Ele ia ser ótimo na presidência, ia conquistar muito pro povo quilombola, mas não deixaram ele chegar lá. Tiraram a vida do meu amigo”, lamenta.
A equipe da Amazônia Real entrou em contato com o delegado Márcio Murilo, responsável pela investigação da Polícia Civil sobre o assassinato do Nazildo, mas ele disse que só a assessoria de imprensa poderia responder as perguntas da reportagem.
Por meio de nota, a assessoria da Polícia Civil informou que “não há pistas sobre o autor do crime”. “A Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Pará está à frente das investigações sobre o assassinato de Nazildo Brito. O inquérito presidido pelo delegado Márcio Murilo já resultou em diversos depoimentos, diligências policiais na região, requisições de perícias necessárias à apuração do crime, entre outras providências adotadas no curso das investigações”, disse.
Segundo a assessoria, “o inquérito já contou com prorrogação de prazo autorizada pela Justiça para que a Divisão de Homicídios possa dar continuidade à apuração do crime. Todas as informações coletadas no inquérito estão passando por análises para tomada de providências posteriores com objetivo de materializar provas e apontar indícios de autoria ainda indefinida”.
Para Laelson, a demora para encontrar os responsáveis pelo assassinato de Nazildo tem uma explicação. “Eles querem abafar o caso, porque eles já sabem quem matou meu amigo, mas não prendem ninguém, porque é gente grande. Isso é tudo armado. A minha prisão, a do Nazildo e agora isso.”
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), cerca de 62 defensores dos direitos humanos e das causas ambientais foram assassinados no país, em 2017. Nazildo Brito é a terceira liderança morta nos últimos sete meses na região nordeste do estado do Pará.
Em Barcarena foram mortos, em crimes de autoria desconhecida, no dia 12 de março, Paulo Sérgio Almeida Nascimento, segundo-tesoureiro da Associação dos Caboclos Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama). Em 22 de dezembro do ano passado foi assassinado Fernando Pereira, também liderança da Cainquiama. Eles denunciavam crimes ambientais das mineradoras e conflitos fundiários na região. Até o momento, nenhuma pessoa foi presa pelos crimes. Há também mulheres da associação ameaças e trabalhadores rurais jurados de morte, em Barcarena.
Francisco Amaral dos Santos, pai de Nazildo, é um homem de pouco mais de um metro e meio, com a pele queimada do sol e uma barba grisalha. De fala baixa e tranquila, ele diz que energia elétrica na Comunidade Turê III só há quando se paga. A uns 20 metros da sua casa azul, tem uma pequena casa de força utilizada para abastecer a residência com energia elétrica. A geração é feita com o auxílio diesel ou gasolina. “Aqui a gente paga R$ 7 pelo litro da gasolina”, reclama.
Mais 60 metros abaixo de sua casa, há um igarapé, mas não tem mais peixe. Na região, Seu Francisco diz que viveu do extrativismo antes de se aposentar como trabalhador rural. Ela fala das histórias dos conflitos na comunidade quilombola.
“Antes só chamavam nós de invasor. Os fazendeiros e os madeireiros colocavam pistoleiro atrás de nós e tinham muitos deles. Depois que reconheceram nós como quilombola, melhorou, mas não muito. Pra ter uma ideia, tem uma parte da comunidade com 100 alqueires de dendê da Biopalma”, denuncia. Um alqueire equivale a 2,72 hectares, ou seja, o tamanho da plantação de dendê dentro do território é de 272 hectares.
Sobre o assassinato do filho Nazildo, Seu Francisco disse que não foi ao enterro. “Não me deu coragem pra ir. Eu também tinha duas cabeças de búfalo aqui que não podia deixar só, então não fui”, afirma.
Seu Francisco viu Nazildo pela última vez, ainda no dia 14 de abril. “Ele saiu de casa dizendo que ia resolver algo em Quatro Bocas. Fiquei esperando ele voltar e só veio a notícia: – mataram o Tatu (apelido de Nazildo).”
A moto que não roubaram é hoje a forma que a esposa do Nazildo, Ivonete dos Santos, 23 anos, encontrou para se sustentar. Ele deixou três filhas. Duas do casamento dele com Ivonete e a terce vivendo desse dinheiro recebendo parcela a parcela. Eu também estou tentando uma pensão, mas enfim, eu vou dar um jeito”, diz Ivonete.
Depois da morte do marido, a agricultora passou a contar com a ajuda das irmãs de Nazildo para cuidar das crianças, principalmente a menor que demanda mais cuidados. O líder quilombola também deixou quatro irmãos e cinco irmãs. A casa onde Ivonete mora atualmente é nova, de alvenaria. Eles haviam se mudado para o local há pouco mais de um ano e estavam felizes.
Com lágrimas nos olhos, Ivonete diz que Nazildo era tudo para o povo do Turé. “A comunidade praticamente dependia dele, porque ele corria atrás, buscava recursos para gente. Aqui, a gente é carente de tudo: de escola, de estrada, de transporte. Ele era um homem que não olhava para dinheiro, ele brigava de frente com empresa, fazendeiro e eles até tentavam várias vezes dar dinheiro pra ele parar e ele falava não”, conta.
Para Ivonete, o mais importante é não deixar morrer o sonho do Nazildo. “Agora é difícil, está todo mundo com medo, mas a gente não pode deixar morrer o que ele deixou. A vontade dele maior era fazer um futuro melhor para as crianças que estão nascendo hoje dentro da comunidade. Ele não queria nada pra ele, queria pro povo, mas infelizmente ele foi parado [morto]. Quando as pessoas não se corrompem, acontece o que aconteceu com ele”, lembra.
Ivonete disse que, assim como Nazildo, também está jurada de morte, mas não tem como sair da Comunidade Turê III para um programa de proteção. “Eu não posso abandonar a minha casa. Dizem por aí que tão atrás de mim, então eu não ando mais só”, explica.
Indagada se acredita na prisão dos responsáveis pela morte do seu marido, ela diz: “No mundo de hoje, as pessoas só ligam para dinheiro. Eu quero justiça pela morte do Nazildo, mas eu sei que a justiça da terra falha, só que eu acredito na Deus. E essa, essa não falha”.
* Este texto foi atualizado às 19h27 (horário de Manaus) para incluir no título desta reportagem o nome da Polícia Civil do Pará, que também não tomou providências nos anos de 2014 e de 2015 para resguarda a vida do líder quilombola Nazildo Brito. O MPF de Belém questionou à reportagem sobre a não inclusão do nome da polícia no título. Segundo a assessoria de imprensa, o MPF não tinha atribuição de proteger a liderança. O órgão também negou que não atendeu a liderança, quando esta pediu proteção há quatro anos.
* Procurada, a Polícia Civil do Pará disse que não vai se pronunciar sobre o pedido de segurança do líder quilombola.
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Líder quilombola morto há três meses pediu segurança do MPF e da Polícia Civil do Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU