25 Junho 2018
As cenas de alegria e incerteza se repetem em uma interminável dança de tristeza e espanto. Os deportados saem por uma porta que pouquíssimas pessoas conhecem, a saída N. Do outro lado, esperam por eles trabalhadores sociais.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 23-06-2018. A tradução é de André Langer.
Há voos invisíveis, aviões que chegam sem nenhuma informação anunciando seu pouso. São fantasmas que descem do céu abarrotados de mexicanos deportados. Os aviões norte-americanos do ICE Air (Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos Estados Unidos) costumam aterrissar três vezes por semana no aeroporto internacional da capital mexicana com cidadãos mexicanos expulsos dos Estados Unidos.
As cenas se repetem em uma interminável dança de tristeza e espanto. A violência da deportação, às vezes a alegria de se reencontrar com suas famílias no país natal, a incerteza de um futuro que algumas horas antes estava do outro lado da fronteira. “É uma dupla sensação”, explica Constantino Urtiaga assim que chega em solo mexicano. “Por um lado, verei minha mãe e meus irmãos e amigos que deixei aqui. Por outro lado, tudo o que construí nos Estados Unidos foi cortado de repente. Eles me tiraram como um cachorro”.
Os deportados saem por uma porta que pouquíssimas pessoas conhecem, a saída “N”. Do outro lado, esperam por elas trabalhadores sociais ou os grupos de ex-migrantes que viveram a mesma experiência e acabaram se agrupando para fornecer ajuda aos recém-chegados. As experiências dos deportados são muito amargas.
Alguns deles viviam há décadas nos Estados Unidos, muitos estavam “lá” desde pequenos e para eles o México é um país praticamente desconhecido e que os recebe com desconfiança. “O deportado traz em si uma marca, como se estivesse infectado com a peste. Praticamente toda a minha família ficou nos Estados Unidos. Eles me expulsaram e aqui eu não conheço ninguém”, conta Marta Ortega, deportada dos Estados Unidos há apenas algumas semanas após ter vivido 20 anos em terras norte-americanas.
Uma vez no México, o Estado não a apoiou, nem forneceu nenhum daqueles auxílios com os quais a liderança política enche a boca. Pôde apenas contar com o apoio da Deportados Brand, uma pequena empresa criada por deportados mexicanos que confecciona camisetas estampadas para serem vendidas e com esse dinheiro ajudar pessoas expulsas. “Fuck Trump” ou “Somos todos porta 'N'“, são alguns dos slogans impressos em canecas e camisetas.
Ana Laura López é uma das criadoras desse pequeno milagre da solidariedade. Ela também foi deportada e acabou na rua vendendo doces até se juntar a outro grupo que estava nas mesmas condições. Juntos, criaram a Deportados Unidos e começaram a estampar camisetas. Como as vendiam mais do que os doces, dedicaram-se a isso com um empréstimo concedido pelo Fomento ao Autoemprego, do Ministério do Trabalho e da Previdência Social.
“O engraçado é que vendemos mais camisetas e canecas estampadas nos Estados Unidos do que no México”, esclarece Ana Laura López. Os lucros obtidos com as camisetas e outros produtos estampados são divididos entre os membros do coletivo e a ajuda para os recém-chegados. “Você precisa entender que essas pessoas chegam sozinhas, aterrissam em uma cidade totalmente desconhecida, onde nem mesmo sabem como pegar o metrô. Elas nem mesmo têm malas; trazem tudo em bolsas ou redes rasgadas e muitas, muitas vezes não têm nem documentos de identidade mexicanos. Eles vêm apenas com algumas sacolas plásticas, sem dinheiro ou lugar onde dormir”.
De fronteira a fronteira. De inferno a inferno. “Fantasmas de um lado da fronteira e novamente fantasmas uma vez de volta ao México”, resume Fernando Gutiérrez, também expulso e ajudado pela Deportados Brand. Se Donald Trump colocou o foco na política migratória, não devemos nos enganar: foi o ex-presidente Barack Obama quem começou com as deportações em massa. Obama deportou mais do que qualquer outro presidente estadunidense.
A Deportados Brand não nasceu com Trump, mas com Obama. Ana Laura López foi expulsa por Obama (fevereiro de 2016) e agora trabalha com as vítimas de Trump através daquilo que se tornou “a marca da deportação”, ou seja a Deportados Brand. A mulher não sente rancor. Ela explica que, antes da expulsão, “os Estados Unidos me permitiram fazer o que eu tinha sonhado e que o México não me deu”.
A história de Ana Laura abrange toda a sequência dramática da migração e a subsequente expulsão. Ela é uma espécie de concentração de duas enormes injustiças: a do México e a dos Estados Unidos. Ela cruzou a fronteira em Tijuana escondida em um carro com o único propósito de procurar trabalho nos Estados Unidos e ganhar dinheiro para sustentar seus dois filhos, que ela deixou no México com sua mãe. De repente tudo foi apagado em algumas horas. Durante os 16 anos que viveu em Chicago, pôde aprender muitas coisas que serviram para ganhar a vida de maneira digna.
Mas o obamismo deportador acabou com o seu sonho norte-americano. A vida construída em Chicago foi engolida pela deportação, junto com seus dois filhos hoje adolescentes que permanecem nos Estados Unidos. “A única coisa que Trump fez foi aumentar uma situação que já existia com Obama”, detalha Laura antes de recordar que, durante seus dois mandatos, Barack Obama deportou cerca de três milhões de pessoas. O número superou tudo o que se havia feito nas últimas três décadas. “Mas agora é pior, porque é com crueldade, com vingança e desprezo público”, afirma Fernando Gutiérrez.
Assim como a grande maioria dos repatriados à força, Ana Laura López pensa que por mais maldade que haja nas ações de hoje, o problema não está nos gringos, mas no México, “um país incapaz de proporcionar aos seus cidadãos uma vida decente e segurança. A migração é consequência disso. Mas hoje o problema é duplo. O México tem que se encarregar de seus próprios cidadãos devido à política migratória de Trump”, disse Jácome León, outro membro da Deportados Band expulso dos Estados Unidos durante os primeiros meses do mandato de Trump.
León vai ao aeroporto para orientar os recém-chegados nos voos do ICE. “Nós procuramos fazer com que não se sintam tão perdidos. Nós lhes emprestamos telefones para que liguem para alguém, os acompanhamos no metrô se têm um endereço, porque os mexicanos não têm a menor ideia de onde estão”. Quando chegam à Cidade do México, passam por grandes vicissitudes. Uma das mais difíceis é a impossibilidade de encontrar trabalho. As empresas mexicanas desconfiam delas porque suspeitam que “foram expulsas dos Estados Unidos por serem criminosas”, diz León. Essa é a vida do depois: solidão e discriminação em sentido inverso.
Celia Anaya oferece seu melhor sorriso quando os deportados saem pela porta N e lhes diz: “Bem-vindos ao México”. Depois dos controles aduaneiros em seu país natal, o sorriso dessa trabalhadora social é o primeiro gesto amável que veem. Logo começará a luta. Essa tragédia se repete em todo o país. Se as imagens das crianças separadas de suas famílias por Donald Trump e depois engaioladas impactaram o mundo, a questão não é nova e declina-se em muitas variantes.
Números apresentados pelo Seminário Migração Internacional Escola e Família da Universidade Tecnológica de Monterrey indicam que mais de meio milhão de crianças nascidas nos Estados Unidos encontram-se no corredor da expulsão. As escolas do norte do México estão há anos integrando em suas instituições crianças de deportados que deixaram os Estados Unidos com seus pais.
Em Tijuana existem mais de 30 mil estudantes “estrangeiros”, isto é, mexicanos que saíram com seus pais muito novos ou filhos de mexicanos nascidos nos Estados Unidos. Eles precisam se adaptar a um sistema educacional desconhecido e aprender uma língua que mal pronunciam. Trump tem sido apenas o revelador de um mal que existe há muito tempo e para o qual o governo e a sociedade só olharam com desconfiança.
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Um céu cheio de mexicanos expulsos dos Estados Unidos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU