02 Junho 2018
"Cristo, embora tão crítico em relação à riqueza a ponto de confessar nem mesmo possuir uma pedra onde repousar a cabeça, não propõe um retórico pauperismo que postula a pura e simples rejeição do dinheiro"
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Fatto Quotidiano, 30-05-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se for verdade que o cristianismo tem em seu coração a “encarnação” através da qual o “logos” divino “se fez carne”, é natural que Cristo e a Igreja das origens tenham se envolvido com as coordenadas históricas não só religiosas, culturais e políticas do primeiro século, mas também tenham se confrontados com a economia.
Se nos atermos apenas aos Evangelhos, uma dado impressionante que logo aparece é o uso da linguagem financeira em sentido estrito. Fala-se em dénarios (por 16 vezes), moeda de prata equivalente ao salário diário de um trabalhador (quem não se lembra das 30 moedas de prata de Judas?), a dracma da parábola de Lucas da dona de casa descuidada e até de didráchmon ático de prata, também chamado de statèr, que Pedro extrai da boca do peixe para pagar, em seu nome e de Jesus, a taxa devida ao templo. Assim como não faltam os dois extremos do "talento" de valor muito alto (diríamos hoje, um milhão de euros ou mais), citado no Evangelho bem 14 vezes, e do modesto "quadrante" de bronze que a pobre viúva oferece ao templo e que seria equivalente a dois tostões. Por 20 vezes fala-se, então, em argýrion, ou seja, da moeda de prata. Também não se pode ignorar que é evocada pelo próprio Jesus a necessidade de investimento de bens financeiros: emblemática, nesse sentido, é a famosa parábola dos talentos, em que entram em cena também os banqueiros, e até mesmo o "lucro" (tokos ) que deve ser obtido pelos depósitos bancários.
Vamos começar com uma passagem fundamental, um famoso lógion ou ditado de Cristo, quase semelhante a um tweet (em grego são 54 caracteres e espaços): "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." Em questão está o nomisma, ou seja, o tributo por lei (nomos) que era imposto pelo sistema de impostos romano para os cidadãos das nações subjugadas. A clareza da afirmação de Jesus tem como corolário necessário a bem mais complexa aplicação no âmbito concreto histórico.
Na visão cristã economia e política, por um lado, e ética e religião, pelo outro, são bastante distintas. Não pertence, portanto, ao cristianismo uma concepção teocrática como a de alguns Estados "islâmicos", dirigidos pela chária, na qual o código de direito canônico e civil-criminal são coincidentes. No entanto, distinção não significa oposição ou negação, como acontece precisamente tanto na teocracia sagrada, como na secularização laica. Também não significa total separação, porque é único o objeto da economia/política e da fé, a pessoa humana.
É por isso que, ao lado da moeda de César, Cristo introduz implicitamente outra "moeda" que traz sobre si uma imagem diferente, aquela de Deus, ou seja, a pessoa humana. Isso é o que surgia na mente do público de Jesus que conhecia a afirmação do Gênesis: "Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou." Existe, portanto, uma dignidade humana sobre a qual não pode prevaricar a economia, embora necessária, que não deve se transformar em dogma único e norma exclusiva, diferentemente do que lastimavelmente experimentou-se em determinados eventos financeiros recentes. Por isso, na esteira dos profetas (por exemplo, Amós), a voz de Cristo surgirá forte e clara contra a corrupção, a riqueza desenfreada, os desequilíbrios sociais: nesses casos, as finanças se tornam Mamon, um termo de matriz fenícia que transforma dinheiro e riqueza em ídolo. Não por acaso na base desse vocábulo está a mesma raiz ‘mn que indica o 'acreditar' (ver o nosso amém). Forma-se, assim, o contraste entre dois tipos de fé antitéticos.
É interessante ler o parágrafo que segue a parábola de Lucas do administrador corrupto, mas astuto, onde o evangelista reuniu frases proferidas por Jesus em contextos diferentes, mas com o mesmo fio condutor "econômico". Vamos citar apenas este logion: "Nenhum servo pode servir dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar ao outro, o há de dedicar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas".
Significativa é outra afirmação na qual é introduzida a especulação financeira: "Eu vos digo ainda: Granjeai amigos por meio das riquezas da injustiça; para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos". Jesus convida aqueles que se comportaram assim a "fazerem-se amigos" dos pobres, doando-lhes essa riqueza desonesta. Será um ótimo investimento, porque eles, que são os privilegiados de Deus, nos abrirão as portas dos "tabernáculos eternos", ou seja, da salvação final no encontro pleno e perfeito com Deus.
Cristo, embora tão crítico em relação à riqueza a ponto de confessar nem mesmo possuir uma pedra onde repousar a cabeça, não propõe um retórico pauperismo que postula a pura e simples rejeição do dinheiro. De fato, ao jovem rico, para acolhê-lo entre os seus discípulos, declara: "Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu." É, portanto, um verdadeiro "investimento" na caridade e na koinonia fraterna, como vai acontecer na comunidade cristã de Jerusalém.
Uma consideração final de caráter geral pode ser oferecida pela comparação de duas parábolas "econômicas" de Jesus, marcadas justamente pelo dinheiro como componente estrutural, ainda que metafórico. A primeira é aquela de Mateus dos trabalhadores temporários. Os elementos simbólicos são dois: os diferentes horários de contratação (madrugada, nove da manhã, meio-dia, três e cinco da tarde) e o único salário fixo, o famoso "denário". Obviamente, o texto não quer se propor como um modelo para as relações industriais e trabalhistas. Seu significado, de fato, através da divisão do tempo e aquele "denário" é orientado para ilustrar duas dimensões fundamentais da fé.
Por um lado, existem as "obras" humanas, o trabalho, ou seja, o "mérito": o compromisso das pessoas deve desenvolver-se de acordo com a sua vocação, simples ou alta que seja; nível intenso como quem consegue preencher um dia inteiro com obras extraordinárias, ou de perfil mais baixo para aqueles que conseguem oferecer apenas alguns resultados, dadas as suas limitações por serem umas daquelas pessoas da última hora, e, portanto, com capacidades pessoais reduzidas.
Por outro lado, a graça e a recompensa divina transcendem a limitação humana e a todos que se empenharam com fidelidade e generosidade - em qualquer grau do status social, da capacidade e da possibilidade intelectual ou prática em que estiver colocado - é doado por Deus o mesmo "denário", ou seja, a recompensa do Reino. Graça e mérito se cruzam entre si: nessa parábola o acento recai sobre a primeira componente, a doação divina (o denário dado a todos).
Algo similar também é afirmado em outra parábola “econômica" aquela do rei generoso e do servo egoísta, onde se contrapõem o valor astronômico de 10.000 talentos de dívida perdoada pelo soberano, em comparação aos 100 denários que, em vez disso, o servo impiedoso exige de seu colega. À graça divina não corresponde, nesse caso, a resposta humana.
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O evangelho das finanças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU