30 Março 2018
Em janeiro, a revista Scientific American compartilhou algumas notícias perturbadoras: os pesquisadores haviam constatado que, entre 1990 e 2015, a preocupação com o ambiente e as mudanças climáticas havia diminuído entre os cristãos estadunidenses. Como o estudo não fazia distinção entre as denominações e como a encíclica ambiental Laudato si’ sobre o cuidado da nossa casa comum, do Papa Francisco, foi publicada em 2015, você pode esperar, como eu, que os católicos dos Estados Unidos não compartilhem esse declínio em preocupação.
O comentário é de Marian Ronan, professora e pesquisadora de estudos católicos no Seminário Teológico de Nova York. Seu sétimo livro intitula-se Women of Vision: Sixteen Founders of the International Grail Movement, em coautoria com Mary O’Brien. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 28-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Infelizmente, certos paradigmas teológicos poderosos que remontam a muito antes da Reforma tornam tal distinção improvável. Em seu esplêndido novo livro, Creation and the Cross [A Criação e a cruz, em tradução livre], a teóloga e irmã Elizabeth Johnson, das Irmãs de São José, toma uma delas: a noção de que a salvação é uma questão exclusivamente humana, não tendo nada a ver com o restante da criação.
(Foto: Divulgação)
“O que significaria – pergunta ela – redescobrir o sentido bíblico do mundo natural que geme, espera, aguarda por libertação?”
Johnson traça esse dualismo entre redenção e criação remontando à obra do teólogo Anselmo de Cantuária, do século XI, e, em particular, à sua “teoria da satisfação” da salvação, conforme formulada em seu livro Cur Deus Homo (Por que Deus se fez homem).
A resposta de Anselmo à questão, explica Johnson, é que Jesus teve que se tornar humano e morrer na cruz para pagar o que era devido a Deus pelo pecado humano. Essa teoria, aprendemos, desempenhou um papel fundamental na teologia e na prática cristãs desde então.
Mas a teoria da satisfação de Anselmo é uma interpretação da cruz, não seu único sentido possível. Assim como todas as interpretações, ela é moldada pelo contexto social a partir do qual emergiu, neste caso, o feudalismo, onde os governantes locais exigiam que os súditos “fizessem uma satisfação” – pagassem – por violarem a lei.
Em contraste, Johnson propõe uma teologia complementar da salvação, na qual a morte brutal de Jesus “representa a solidariedade do Deus cheio de graça e misericordioso” com todos os que sofrem, incluindo os pobres, as espécies que entram em extinção e todo o restante da criação. Ela remonta isso ao Deus criador da Bíblia judaica, o Santo de Israel que promete a libertação para os israelitas no Egito e, depois, na Babilônia.
Mas essa redenção não é uma compensação, como a teoria da satisfação implica, mas sim uma redenção derramada por um Deus cuja compaixão por nós é a da mãe por seu filho, uma redenção que faz fluir córregos em colinas secas e abrir fontes pelos vales.
É esse Deus libertador que envia Jesus, não para pagar pelos nossos pecados, mas para trazer boas novas aos pobres, proclamar a libertação aos cativos, libertar os oprimidos. Mas a proclamação do reino de Deus por Jesus constituiu um sério desafio para os romanos que governavam Israel durante sua vida. As multidões festivas que o saudaram, especialmente durante sua entrada em Jerusalém, assim como seu confronto com os cambistas no Templo, constituíam uma ameaça tão grande ao poder injusto do império que os governantes crucificaram Jesus para silenciá-lo.
No entanto, em vez de a morte silenciá-lo, a Ressurreição tornou Jesus presente aos discípulos de uma forma inteiramente nova, capacitando-os a levar a mensagem libertadora do Deus compassivo até os confins da Terra e a toda a criação. E, através das memórias registradas pela Igreja primitiva do Cristo crucificado e ressuscitado, essa compreensão da cruz como uma expressão da compaixão e da misericórdia de Deus se espalhou por todo o mundo.
O ponto culminante dessa teologia complementar é algo que Johnson chama de “encarnação profunda” [deep incarnation]. O Deus criador, explica ela, é o Deus de toda a carne, em que “carne” não significa apenas pecado, como sugere o dualismo entre espírito e matéria, mas sim a finitude e a morte sofridas por toda a criação, incluindo o próprio filho de Deus. Com a Ressurreição, essa “carne foi chamada novamente à vida em uma glória transformada”.
Creation and the Cross conclui com um chamado a todos nós a uma conversão, em nossas ações e também em nossas crenças, ao amor do Criador/Redentor de todo o mundo e de todo o cosmos. Dentro dessa conversão, os maus-tratos contra a Terra são tanto pecados quanto maus-tratos contra outros seres humanos.
Para nos arrependermos, precisamos entender a nós mesmos como membros de toda a “comunidade da criação”, cujo sofrimento é o nosso sofrimento. A cruz, então, é o ícone do amor compassivo de Deus por todos e por tudo.
Apesar de todos os desacordos de Johnson com a teoria da satisfação de Anselmo, ela mostra, de fato, seu apreço por outro aspecto do Cur Deus Homo, e a tal ponto que ela realmente o imita: o formato de pergunta e resposta que Anselmo usa para tornar sua teologia acessível. É claro, nenhum livro é perfeito, e, no caso de Creation and the Cross, o interlocutor de Johnson, “Clara”, soa, de tempos em tempos, suspeitosamente como uma professora de teologia.
Apesar dessa limitação, o formato de perguntas e respostas, combinado com o dom de clareza e de resumo estratégico de Johnson, torna esse livro uma ferramenta ideal para ajudar a todos nós a expandir a nossa compreensão da redenção, a ponto de incluir toda a amada criação de Deus.
Em uma resenha deste tamanho, não é possível fazer justiça ao leque de fontes bíblicas e teológicas que Johnson utiliza para expor sua profunda teologia da encarnação. A profundidade e acessibilidade de tal material ao longo do livro faz de Creation and the Cross um recurso ideal para os participantes da iniciação cristã que buscam alcançar uma compreensão da fé.
Mas, na realidade, dada a frágil preocupação que tantos cristãos estadunidenses sentem pela criação de Deus, mesmo diante de um crescente número de incêndios massivos, eventos climáticos extremos, secas e cidades inundadas, Creation and the Cross é um livro que todos nós precisamos ler, e que precisamos ler logo.
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Criação, cruz e a misericórdia de Deus pelo planeta. O novo livro de Elizabeth A. Johnson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU