19 Março 2018
Ao mergulharmos mais fundo na Quaresma e continuarmos nos privando de certos alimentos e hábitos, mesmo os que desistiram de checar constantemente o Facebook e o Twitter não conseguem sair inteiramente do nosso ambiente político dividido e tóxico.
O comentário é de Julie Schumacher Cohen, publicada por America, 15-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Julie Schumacher Cohen é diretora de relações com a comunidade e o governo da Universidade de Scranton, tendo trabalhado em contextos de ensino superior e contextos religiosos sem fins lucrativos por mais de 15 anos. Ela reside em Scranton, na Pensilvânia, com o marido e três filhos.
Em partes por causa do meu trabalho em relações com a comunidade e o governo numa universidade jesuíta e em partes pela simples responsabilidade de ser cidadã, continuarei apresentando notícias. Isso significa que serei inevitavelmente exposta à mistura habitual de "falsas notícias", arrogância política e partidarismo negativo — o que Shanto Iyengar e Masha Krupenkin, cientistas políticos de Stanford, chamam de “senso primitivo de ‘nós contra eles’”.
Os preparativos para a Páscoa podem nos ajudar a lidar com essa realidade? E isso pode acontecer não apenas agora, mas ao longo do ano todo?
Na tradição da Igreja Ortodoxa à qual me afilio, a época da Quaresma começa com uma “Vésperas de Perdão”. No final da missa, cada membro da comunidade vai à frente da igreja para dar uma declaração de arrependimento perante os paroquianos e o padre — ou seja, toda a igreja.
Um por um, você se curva à pessoa diante de você e, cara a cara, diz: "Perdão!" A outra pessoa responde: "Deus perdoa. Eu perdoo.” Depois se estende a mão e se dá o beijo da paz (dois ou três, dependendo da paróquia). E assim vai, até que cada pessoa tenha pedido perdão a quase todos, e toda a igreja envolva o santuário num círculo. Como muitas coisas na liturgia oriental, é muito sensível. Há crianças risonhas e vovós generosas. Há adolescentes autoconscientes, pessoas com mau hálito e, às vezes, lágrimas. Minhas bochechas geralmente ficam irritadas e coçando um pouco no final.
Nessas trocas breves, não conseguimos trabalhar todos os pecados e ofensas que podem ter se acumulado ao longo do ano nem testar a sinceridade do pedido do outro. É possível apenas fazer os movimentos? Sim. Tudo é realmente perdoado e resolvido? Talvez não. No entanto, é um passo importante e visceral em direção ao outro: um convite e introdução à graça de Deus. É notável o quanto é comunicado naquela fila estranha, emotiva e esperançosa. Ao olhar aos outros membros da igreja por aqueles breves segundos, há uma sensação intensa. Você se lembra do exato momento (ou exatos momentos) nos últimos 12 meses em que foi mal-humorado, egoísta ou indiferente — esquecendo-se de perguntar da saúde de um paroquiano doente, interpretando uma virada de cabeça como um julgamento do meu indisciplinado filho de 5 anos.
O que quer que esteja está acontecendo no mundo à nossa volta, e no nosso próprio mundinho, este ritual rompe com uma lembrança do amor que transforma e a possibilidade de reconciliação. Este ano, mais do que o habitual, eu queria que houvesse uma maneira de trazer a prática da Quaresma para o feed das minhas redes sociais e o nosso país.
No Domingo do Perdão, nós procuramos o melhor naquele a quem perdoamos e procuramos dar uma interpretação caritativa da intenção do outro — o que os jesuítas chamam de “sinal de adição,” em referência à Anotação 22 dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Em contraste, as notícias falsas — e o viés de confirmação hiperpartidário que ajuda a alimentá-las-— quase sempre faz com que o outro pareça pior do que realmente é.
Em sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2018, o Papa Francisco escreveu que as notícias falsas atraem a atenção das pessoas "por apelar a estereótipos e preconceitos sociais comuns, explorando emoções instantâneas como ansiedade, desprezo, raiva e frustração." Ele identifica a "tragédia da desinformação" como uma algo que "traz o descrédito aos outros, apresentando-os como inimigos, a ponto de demonizá-los e fomentar conflitos".
Da mesma forma, Arthur Brooks, presidente da American Enterprise Institute, observou que "se queremos resolver o problema da polarização hoje, precisamos resolver o problema do desprezo". O desprezo que infecta nosso discurso político, disse, origina-se na "convicção absoluta da inutilidade de outro ser humano".
Resultados do Pew Research Center confirmam essa noção. Em 2017, 44% dos Democratas e 45% dos Republicanos tinham uma visão "muito desfavorável" dos membros do outro partido — contra apenas 20% em ambos os lados em 1994.
Brooks, que tem Dalai Lama entre seus amigos, pediu conselhos ao líder espiritual budista: "O que fazer quando sinto desprezo?" Dalai Lama respondeu: "Pratique a bondade." Na minha paróquia, no Domingo do Perdão, praticamos isso através de um intercâmbio litúrgico de arrependimento mútuo e conexão.
Embora o ritual certamente não tenha sido criado para diminuir a divulgação de notícias falsas ou romper com as câmaras de eco políticas, pode nos ajudar além da nossa amarga polarização. Ao prosseguirmos na Quaresma, podemos nos questionar se faríamos uma reivindicação sensacionalista, questionável ou debochada sobre outra pessoa se, em vez de estar do outro lado da tela, estivéssemos cara a cara com nossos "amigos" ou "seguidores". A proximidade é importante. Sei que foi importante naquele domingo com as pessoas com quem me curvei, beijei e abracei — trouxe através da proximidade física o encontro com os outros da forma como Deus teria feito com que eu os enxergasse. Talvez esta prática quaresmal não deva ser feita apenas uma vez por ano.
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Como o 'Domingo do Perdão' da ortodoxa oriental poderia nos salvar do nosso feed do Facebook - Instituto Humanitas Unisinos - IHU