20 Janeiro 2018
“Boa parte da Igreja oficial no Peru hoje está praticamente ausente no pensamento sociopolítico, como se não lhe incumbisse. Parece viver em outro planeta! Não se ouve a sua voz magisterial perante fatos graves no país. (...) A visita do papa ao Peru está se propalando como se fosse uma espécie de “show midiático” para ser visto (concentração sobre o tema da missa), e não como a visita do pai que vem escutar e nos orientar para o caminho a seguir, para acender luzes.”
A opinião é do teólogo e padre marianista alemão Eduardo Arens, missionário no Peru, em artigo publicado no sítio Religión Digital, 19-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Me perguntam que Igreja o papa vai encontrar nesta visita. Pecando por ser simplista, eu diria que ele encontrará duas Igrejas em paralelo – em alguns lugares até contrapostas. Eu as qualificaria como uma Igreja clerical versus uma Igreja laical.
Eu qualifico como clerical aquela Igreja ostensiva já nas vestes (batinas, hábitos) e nas poses que marcam distância, com pretensões de superioridade, muito donos da “verdade”. É a Igreja religiosamente correta, a “oficial”, preocupada com sua imagem, que gosta dos primeiros lugares e procura ficar bem com as esferas de poder. É assim que ela se acomoda e não incomoda – e, por isso mesmo, carente de personalidade.
Faz-se sonora nos meios de comunicação para afirmar sua presença e suposta autoridade. Vê o cristianismo como uma ideologia que deve ser propagada. Por isso, sua prioridade é sua “verdade”, e ela assume o papel de fiscal.
É nessa Igreja que encontramos movimentos fundamentalistas que são proselitistas e se apaixonam pelos poderosos, alimentando uma sociedade de “ricos e famosos”, fazendo o jogo do oportunismo político da “direita” – muitos afins a Fujimori. É a Igreja que defende “os valores tradicionais” e cuja religião é “a de sempre” – basta ouvir os sermões!
Alinhada com o neoliberalismo, os pobres e a justiça são apenas tema de conversa e lamento. De fato, no Peru, nasceram movimentos ultraconservadores sumamente ricos e proselitistas, como o Sodalício e o Pro Ecclesia Sancta, que veem comunismo e heresias por toda a parte e difamam, sem dissimulações, tudo o que lhes soe como “progressista” (veja-se a ACI Prensa, com sede em Lima).
A maioria do clero dessa Igreja foi moldada de costas ao “Peru profundo” e ao pensamento moderno. Sua teologia é acriticamente apologética. Cultiva o clericalismo ao estilo colonial – aquele que, com toda a razão, o papa criticou reiteradas vezes. Os leigos são simplesmente clientes (nem falemos das mulheres!). Essa Igreja não assumiu Puebla, nem, depois, Aparecida – que eles associam à “teologia da libertação”, que qualificam como “marxista” – e ignorou olimpicamente a encíclica do Papa Francisco sobre a ecologia, e a exortação sobre a família foi acomodada à sua moral, além de ignorar outras mensagens papais.
É a Igreja visível que o Papa Francisco encontrará na sua chegada a Lima, onde, paradoxalmente, esteve ausente... até que se confirmou que viria nos visitar.
A outra Igreja, que eu qualifico como “laical”, por outro lado, é a que está a pé, é humana e próxima; é a Igreja “não oficial”, que está no e com o povo simples. De mangas de camisa. Sua hierarquia acompanha e palpita com o povo, se incultura, não tem medo de se sujar os sapatos e não marca distinções nem exclui.
É uma Igreja horizontal, sinodal – eu admirei isso ultimamente em Puerto Maldonado e em Jaén. A essa Igreja, pertencem muitos dos bispos na serra e na selva, longe dos centros de poder; são verdadeiros pastores que encarnam o Evangelho de Jesus Cristo onde estão. É a Igreja “em saída”, da compaixão, com um rosto humano, a do Bom Samaritano. É a Igreja que o papa encontrará em Puerto Maldonado.
A Igreja clerical no Peru se concentra nas grandes cidades. Algumas dioceses são como guetos nos quais só têm lugar os sujeitos ao pensamento único imposto pelo bispo local (como é o patético caso de Callao, que é um feudo neocatecumenal).
Em troca, na serra e na selva, e também nos “pueblos jóvenes” (barriadas, villas miseria, favelas), a Igreja clerical está praticamente ausente, mas encontramos ali a Igreja laical, padres, freiras e agentes de pastoral de admirável dedicação a povos ignorados pelos centros de poder, nas alturas andinas ou nas profundezas selvagens, onde convivem com o povo lado a lado. Verdadeiros “mártires” (testemunhas) do Evangelho.
É uma Igreja que não faz barulho, mas festeja como comunidade. Não pontifica, mas acompanha. Ao visitar essas Igrejas, muitas vezes fiquei impactado com o seu humor: é alegre, positiva e acolhedora, natural como a própria natureza. É a Igreja que eu sinto palpitar na Confer [Conferência de Religiosos e Religiosas] e em centros como o Bartolomeu de las Casas. Como o papa expressou alguma vez, “como eu gostaria de ver uma Igreja pobre e para os pobres!”. É a Igreja de Aparecida.
Além dessas dimensões eclesiais, em contraste com a Igreja dos anos 1960 e 1970, boa parte da Igreja oficial no Peru hoje está praticamente ausente no pensamento sociopolítico, como se não lhe incumbisse. Parece viver em outro planeta! Não se ouve a sua voz magisterial perante fatos graves no Peru, como a corrupção, a mentira, a ausência de justiça, a perda de credibilidade das instituições, a violência familiar e o tráfico etc., isto é, a ausência de valores morais e éticos.
Não é de admirar que, além de alguns círculos intelectuais comprometidos com o país e em algumas dioceses “avançadas”, o importante documento-guia de Aparecida “nunca apareceu” – sei que citá-lo era visto com maus olhos. Ele foi ignorado olimpicamente. Como resultado, em boa parte do Peru, a Igreja deixou de ser fermento, sal, luz na sociedade. Mas... nossos novos bispos, de perfil mais pastoral do que burocrático, estão mudando notoriamente a imagem da Igreja em suas dioceses, insuflando ares juvenis. Está ressuscitando...
O papa virá visitar uma Igreja que, em nossa sociedade, foi se desprestigiando, seja pela imagem negativa projetada por alguns bispos, seja pela sensação de que os casos de pedofilia são encobertos (caso Sodalício), seja por manter e impor um cristianismo de humor medieval. As críticas à Igreja no Peru são cada vez mais ousadas e descaradas – em contraste com a crescente admiração pelo Papa Francisco.
O papa virá a um Peru cada vez mais pós-cristão, pós-teísta, onde a religião como tal interessa cada vez menos – dou fé disso a partir daquilo que observei no decorrer dos meus quase 40 anos de padre em uma paróquia em Lima, nas minhas visitas a zonas marginais e em nossas escolas.
No Peru de hoje, predomina a cristandade como cultura – sacramentos como eventos sociais, tradições e símbolos cristãos –, e vai se desinflando o cristianismo como vivência do Evangelho (basta recorrer às pesquisas para constatar o declive). Estamos colhendo os frutos do fato de que confundimos evangelização com doutrinação, que falamos mais de Igreja do que de Jesus de Nazaré. Em muitos lares, cultiva-se um cristianismo pré-moderno.
Ali onde o cristianismo ainda está latente, frequentemente, ele o está na dimensão claramente devocional, pouco ou nada comprometida com as dimensões sociopolíticas, porque isso as sataniza, mas obcecada com temas de sexualidade.
É uma Igreja passiva e submissa, que se apega aos mesmos clichês de sempre, como que ausente do presente, carente de parrésia e criatividade. Sua teologia é largamente obsoleta, defasada. Sua voz é agora mais uma no coro de opiniões (evidente no Congresso). Já não é líder de opinião. Compete com a voz cada vez mais sonora dos “ateus” e das Igrejas evangélicas e pentecostais que, com suas celebrações vivas e pregações desafiadoras – que contrastam com as nossas liturgias e sermões irrelevantes –, são vistas como alternativas válidas, razão pela qual crescem e aglutinam os jovens. Se formos francos, temos que admitir que a nossa é uma Igreja que já não atrai...
Uma última observação: a visita do papa ao Peru está se propalando como se fosse uma espécie de “show midiático” para ser visto (concentração sobre o tema da missa), e não como a visita do pai que vem escutar e nos orientar para o caminho a seguir, para acender luzes...
Não ouço referências ao magistério do Papa Francisco. Nenhuma de suas últimas mensagens. Isso é o que está sendo visto aqui. Não é de se admirar que a última pesquisa revelou que um terço das pessoas em Lima não estão interessadas na visita papal, nem é estranho que a participação na grande missa em Lima, hoje em dia, não cobre as expectativas. Isso deveria nos fazer pensar e ser mais humildes e menos triunfalistas.
Vale perguntar, então, se a atenção está orientada àquilo que se verá (onde será a missa, como será, quem irá) mais do que àquilo que se ouvirá, e, portanto, no fim, ficamos com aquilo de “eu vi o papa” (um selfie?) em vez de “eu escutei o papa”.
Quero apostar que, pelo menos, um crescente segmento da Igreja vai escutá-lo – não só escutá-lo – e tomará nota para traduzi-lo em realidade... e que o Peru e sua Igreja mudarão em algo graças à visita do Papa Francisco.
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Peru. O ''show midiático'' em torno do papa no País cada vez mais pós-cristão e pós-teísta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU