19 Outubro 2017
Argentina: após a crise de 2001, 45% da população caiu na pobreza. Nasceu o Movimento dos Trabalhadores Excluídos, apoiado por Bergoglio. O seu promotor, Juan Grabois, conta as suas origens.
O texto foi publicado por Avvenire, 18-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O texto que segue foi extraído do livro Ho incontrato Francesco. Papa Bergoglio raccontato dai protagonisti del nostro tempo [Encontrei Francisco. Papa Bergoglio contado pelos protagonistas do nosso tempo], de Alessandra Buzzetti e Cristina Caricato, publicado pelas Edizioni Paoline (200 páginas).
Entre os outros entrevistados: o presidente palestino, Abbas, e o colombiano, Santos, o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu, e Tawadros II, papa da Igreja Ortodoxa Copta; Ruth Dureghello, presidente da Comunidade Judaica de Roma, e Antje Jackelén, arcebispa luterana de Uppsala.
Três encontros mudaram a vida de Juan Grabois, nascido em 1983, o advogado dos cartoneros argentinos: o encontro com a sua esposa atual, com apenas 16 anos; com as praças em revolta em Buenos Aires por causa da gravíssima recessão econômica que explodiu em 2001; com Jorge Bergoglio, o cardeal que, em 2005, abriu as portas da catedral aos Movimentos dos Trabalhadores Excluídos argentinos.
O certo é que o histórico dirigente dos movimentos populares de Buenos Aires, antagonista por definição, nunca poderia imaginar que, um dia, faria parte da instituição por excelência: o Vaticano. A nomeação de Juan Grabois, de 11 de junho de 2016, como consultor do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral traz a assinatura do Papa Francisco. [...]
Como nasceu a sua amizade com Jorge Bergoglio?
Nasce do meu compromisso com os trabalhadores excluídos de Buenos Aires. Para mim, tudo começou em 2001, quando a crise da dívida explodiu na Argentina, por causa do neoliberalismo feroz dos anos 1990. Começou uma recessão duríssima, que durou anos, que levou mais de 45% dos argentinos ao limite da linha da pobreza. Sem mais um trabalho regular nem as proteções sociais. Muitos optaram por inventar um trabalho, com aquela que nós chamamos de “economia popular”.
Um exemplo foram os cartoneros, os moradores das villas miserias (as favelas muito pobres das periferias) que começaram a ir de noite aos bairros da classe média para revirar o lixo para procurar papelão e metal para serem reciclados. Assim nasceu o nosso Movimento dos Trabalhadores Excluídos, fruto da amizade entre um grupo de estudantes e os cartoneros de Buenos Aires. O contexto era de um grande sofrimento, de um lado, por causa da perseguição do Estado, de outro, por causa da exploração desses trabalhadores ilegais, incluindo muitas crianças. Cerca de 40% dos cartoneros eram menores de idade. Um dos nossos lemas era: “Se as crianças não tiverem infância, a Argentina não terá futuro”.
Ao mesmo tempo, porém, lutávamos contra aqueles que criminalizavam os pais: como os cartoneros trabalhavam à noite, muitas vezes eles não sabiam onde deixar as crianças e as levavam com eles. Por isso, em 2005, apresentamos uma reivindicação para ter bolsas de estudo que permitissem que as crianças tivessem um lugar para ficar e estudar de noite, enquanto os pais trabalhavam. Conseguimos obter um procedimento favorável, mas nunca implementado. Enviamos diversas cartas para pedir apoio público a diversas personalidades, incluindo o arcebispo de Buenos Aires. O cardeal Bergoglio nos respondeu comunicando que celebraria uma missa na catedral no mesmo dia da nossa manifestação. Ele fez uma homilia muito forte, criticando a indiferença dos governantes diante da dolorosa situação de tantas crianças nas ruas da cidade.
Em 2007, escrevemos-lhe de novo para convidá-lo para um evento por ocasião do 1º de maio, intitulado “Por uma sociedade sem escravos nem excluídos”. Era uma manifestação dirigida aos cartoneros, aos trabalhadores têxteis, aos migrantes, muitas vezes explorados ou vítimas do tráfico de pessoas. Foi um momento decisivo, porque uma parte consistente da nossa militância tinha um péssimo julgamento sobre a Igreja. Discutimos por muito tempo sobre a oportunidade de convidar o cardeal. No fim, enviamos a carta a Bergoglio, que, naquele momento, era objeto de uma campanha de difamação por parte do governo. Ele não participou da manifestação, mas me telefonou e me convidou para dialogar juntos.
Nasceu uma amizade imediata, porque nos encontramos em grande sintonia sobre a leitura da realidade, sobre as condições sociais, sobre o nível de decadência da política e sobre a necessidade de um maior protagonismo por parte dos movimentos populares para mudar a realidade. Decidimos propor uma missa pública com o mesmo leitmotiv da manifestação: “Por uma sociedade sem escravos e sem excluídos”. A partir daquele momento, o cardeal Bergoglio celebrou a missa para os trabalhadores excluídos uma vez por ano. Até 2013! A nossa relação de amizade continuou, com outros diálogos, mas também com fatos, muito importantes para mim.
Você é religioso?
A minha mãe é católica, o meu pai é judeu, eu fui batizado e fiz a Primeira Comunhão. Há apenas alguns anos, porém, voltei à missa. Não é que eu tivesse perdido a fé, mas a Igreja me parecia hipócrita, porque não dava o bom exemplo. O encontro com Bergoglio me fez intuir que não era tudo como eu imaginava. Voltei a ter uma certa confiança na instituição eclesiástica e comecei a entender também qual era minha corresponsabilidade, como leigo, para não fazer com que a Igreja se tornasse uma estrutura burocrática distante da vida real das pessoas. Agora, eu vou quase todos os domingos à missa e batizei os meus três filhos: a primeira tem 13 anos e depois tenho dois gêmeos de quatro anos.
O papa foi criticado pela decisão de se envolver de modo tão direto com os movimentos populares. Uma das acusações é que o modelo social proposto por vocês e, em certo sentido, endossado pelo pontífice é um modelo vetero-marxista, já fracassado na história.
O papa disse que nem ele nem a Igreja têm o monopólio da interpretação da realidade social. Os movimentos populares também não. Eles são muito heterogêneos entre si. O nosso programa se baseia na reivindicação de três direitos fundamentais, que cada um deseja para seus próprios filhos: terra, teto, trabalho. Qualquer pessoa que queira buscar um substrato ideológico para essa reivindicação tão humana e elementar se confunde.
Não é bem assim... Entre as críticas, está também a daqueles que defendem que o Papa Francisco trouxe os apologistas do marxismo ao Vaticano...
O papa brincou várias vezes sobre o fato de lhe chamarem de marxista porque ele repete que o coração do Evangelho são os pobres, mas a realidade é que os marxistas roubaram a bandeira da Igreja! Além das piadas, sabemos que existem na Igreja casos de corrupção, de pedofilia, de ideologia neoliberal, tão anticristã quanto o marxismo autoritário. Por isso, eu acho que quem rotula o papa de marxista faz isso intencionalmente, com o objetivo de não discutir os problemas questões estruturais que ele denuncia continuamente.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Assim Bergoglio ajudou os trabalhadores excluídos de Buenos Aires. Entrevista com Juan Grabois - Instituto Humanitas Unisinos - IHU