11 Novembro 2016
Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto, é teólogo da libertação e escreveu mais de 50 livros. Após passar pela universidade, decidiu deixar o jornalismo pela religião, mas mantendo uma postura crítica e ativa contra a ditadura militar que naqueles anos dominava o Brasil. Foi detido várias vezes e torturado por seu ativismo político. É um dos fundadores da Central Única dos Trabalhadores do Brasil (CUT) e é consultor do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Conversamos com ele em razão da publicação de seu último romance, El oro perdido de los Arienim (título em espanhol de Minas do Ouro).
A entrevista é de Ter García, publicada por Diagonal, 09-11-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Com seu romance 'El oro perdido de los Arienim' é possível desenhar sobre um mapa como foi a exploração dos recursos do Brasil por parte dos colonos portugueses. Como esta dinâmica influenciou a configuração do Brasil como país?
O Brasil foi uma colônia ibérica, como toda América Latina - e como todas as Américas, porque os Estados Unidos e Canadá, durante algum tempo, também foram colônias ibéricas -. Os portugueses chegaram ao Brasil e exploraram muitíssimo todas as nossas riquezas. Quando eu estava no ensino primário aprendi que a história econômica do Brasil se dividia em vários séculos: o primeiro, o século da madeira – o nome Brasil vem de pau-brasil, um tipo de madeira que os portugueses e franceses, que também chegaram para invadir o Brasil, tiraram para tingir seus tecidos, aqui, na Europa [atualmente, este tipo de árvore está em risco de extinção por sua massiva exploração]. Em seguida, veio a cana-de-açúcar, depois veio o ouro, o café. Acontece que até hoje estamos na mesma situação. A única diferença é que a denominação ‘matérias-primas’ mudou para o elegante nome de commodities. Eu quis escrever este romance, primeiro para fazer uma narrativa da história colonial do Brasil. Pouca gente sabe disto: em dois séculos, de Minas Gerais foi retirado mais ouro que a soma de todo o dinheiro retirado da América Latina toda. É uma quantidade impressionante. Quis resgatar esta história, mas com sentido crítico. Quando deixaremos de ser um país extrativista? E quando aproveitaremos nossas próprias riquezas? Porque o que os portugueses fizeram com as explorações de ouro e diamante em Minas Gerais foi o mesmo que os europeus fizeram na África e na Ásia. E o que deixaram? Nada. Deixaram dor, miséria, fome e pobreza. E aí está, agora, o drama dos refugiados. A Europa está colhendo o que plantou.
Por um tempo você foi consultor do Governo de Lula, que manteve a política extrativista, mesmo que aumentando o poder estatal sobre os recursos brasileiros. Que avaliação faz a respeito da gestão dos recursos naturais nos Governos do PT?
Eu fui assessor especial de Lula para o Programa Fome Zero. Estive nos dois primeiros anos de governo e saí por uma razão muito simples: o Fome Zero era um programa emancipatório, mas um ano depois, por pressão dos prefeitos do Brasil, o governo decidiu mudar o programa de Fome Zero para Bolsa Família. Bolsa Família é um bom programa, mas é compensatório. Qual é a diferença? Uma família que ingressasse no Fome Zero, em três ou quatro anos estaria em condições de jamais voltar à pobreza e produzir seus próprios recursos. As famílias que ingressaram no Bolsa Família, nos dias hoje, continuam sendo dependentes do dinheiro do governo. É um programa assistencialista. Saí porque não concordava com esse projeto. Efetivamente, Lula e Dilma foram os melhores presidentes de nossa história republicana. Fizeram políticas para revalorizar nosso mercado interno, mas não suficientes para mudar estruturas do Brasil que são muito anacrônicas. Pouca gente sabe, mas o Brasil e Argentina são os únicos países das três Américas que nunca fizeram uma reforma agrária. A diferença é que o Brasil é um país muito grande e, diferente de outros grandes países, como Rússia, China, Índia e Estados Unidos, não possui áreas estéreis. Tudo é produtivo, para semear ou para reflorestamento, como a Amazônia. Não temos desertos ou áreas de neve permanentes como há, por exemplo, no Canadá ou na Cordilheira dos Andes. No Brasil, dizemos que o país é abençoado por Deus, que os anjos reclamaram porque Deus lhe havia dado muitos privilégios, mas que Deus lhes respondeu que esperassem para ver em quais tipos de políticas esta gente iria votar. A desgraça do Brasil é a política que temos, mas também é culpa de toda uma herança colonialista que ainda não superamos.
Pouco antes de Michel Temer assumir o Governo, muitas vozes já começavam a advertir sobre as mudanças legislativas que iriam reabrir as portas para as empresas estrangeiras explorar os recursos brasileiros. Você considera que o novo governo pode colocar em risco os avanços conquistados nos últimos anos de PT?
O que houve no Brasil foi um golpe. Um golpe branco ou golpe parlamentar como aconteceu em Honduras e Paraguai. Agora vivemos em uma ‘democratura’, ou seja, uma falsa democracia na qual aparentemente as pessoas são livres, mas não é verdade. Há uma intensiva criminalização dos movimentos sociais. No último sábado, 5 de novembro, a polícia de São Paulo invadiu a escola dos Sem Terra, perto da capital deste Estado, em uma cidade chamada Guararema, com armas letais, com muita violência. Com Temer as coisas estão piorando muitíssimo. Temer se colocou de joelhos diante das receitas de ajustes fiscais que vocês já conhecem, aqui, na Espanha, assim como na Grécia. No Brasil, temos quase 20 milhões de pessoas desempregadas. Estamos vivendo uma crise muito aguda, e ainda não sabemos como sairemos. Nossa esperança são as eleições de 2018, se Lula puder voltar a ser candidato. Eu não penso que se atrevam a metê-lo na prisão, em razão da repercussão mundial que isto poderia ter, mas penso que vão incriminá-lo e aprovarão alguma lei que o impeça de ser candidato.
Justamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do qual é assessor, desde o primeiro momento denunciou o golpe de Estado, apesar das críticas formuladas contra o Governo do PT, que não realizou a prometida reforma agrária.
O MST é o mais importante movimento popular do Brasil porque reúne mais de quatro milhões de famílias sem terra e as mantém muito bem organizadas em acampamentos ou em assentamentos. É uma gente produtiva, que faz a reforma agrária de fato. Ou seja, ocupa terras que não são utilizadas – nunca ocupa propriedades produtivas – e sempre possui o cuidado de investigar se uma terra que está ocupada por latifundiários pertence a esse latifundiário ou se este é um invasor e realmente a terra pertence ao governo ou ao Banco do Brasil, que por sua vez depende do governo. Também quando há terras sem uso, mesmo que sejam de latifundiários ou, por exemplo, no caso de latifundiários que compram áreas da Amazônia e derrubam as árvores e as mantêm sem plantar nada porque o que querem é vender essa terra. Há, inclusive, latifundiários na Amazônia que venderam até um quarto piso da terra, ou seja, fizeram negócio com a mesma terra até quatro vezes. É uma coisa espantosa, de velho oeste e gângsteres. Há terras de exploração ilegal de madeira em que há ocupações, que eles chamam de invasões.
Em geral, todas as ocupações são exitosas. Eu mesmo estava no governo quando um grupo indígena do sul da Bahia ocupou uma terra de um latifundiário. Houve muito protesto por parte dos latifundiários, que protestavam dizendo que isso era comunismo e que era ilegal, pedindo que os indígenas fossem expulsos. Eu estava na sala de Lula quando este chamou o ministro da Justiça, com toda a equipe de governo na sala, e comentava: “O que faremos? Esta terra pertence a esse senhor”. E o presidente do Banco do Brasil respondeu a Lula: “Presidente, não. Esta terra não pertence a este senhor, pertence a nós, ao Banco da União. Este senhor é um invasor”. Então, Lula legalizou a cessão da terra aos indígenas. Isso acontece muitas vezes. Estes latifundiários invasores são conhecidos no Brasil como grileiros, que vem de grilo.
Por que são chamados grileiros? Porque a única reforma agrária que houve na história do Brasil, entre aspas, foi em 1855, quando o imperador português do Brasil ordenou que todos os proprietários fossem à paróquia mais próxima para registrar sua terra. Todos os proprietários foram e registraram sua terra até um limite concreto e se esqueceram de abranger a terra que estava entre proprietários. Passou o prazo e como ninguém mais podia registrá-la como sua, o que fizeram? Uma escritura falsa que colocaram em uma caixa com vários grilos – que expelem uma substância química que dá ao papel a aparência de velho – e que utilizaram como prova de que esta terra era de sua propriedade.
Voltando à situação atual do Brasil, qual a sua opinião, como teólogo, a respeito do aumento dos evangélicos no país e a relação que é possível que exista com o impeachment de Dilma Rousseff.
Por que há tantos evangélicos no Brasil? No Brasil não há um bom serviço médico, e há muita pobreza. As pessoas que não têm acesso a serviços médicos, muitas vezes, vão à igreja pentecostal em busca de curas milagrosas. Há muitos evangélicos que são honestos, gente de boa cabeça e boa intenção, mas há muitos que são exploradores do povo pobre, que sacam milhões de reais, porque lá, como aqui, a Igreja não precisa pagar impostos, e eu, como frei, discordo disto. Acredito que a Igreja deve ser obrigada a pagar impostos, porque, caso contrário, é uma lavagem de dinheiro; uma lavagem ‘santa’, mas uma lavagem. Muitos pastores e padres pregam que Jesus é o caminho, mas eles se colocam no meio para cobrar o pedágio. Agora, há um aumento do pentecostalismo no Brasil, com funções de fundamentalismo político. Eles querem chegar ao poder para mudar as leis civis segundo seus preceitos religiosos. Por exemplo, não permitir que as pessoas tomem bebidas alcoólicas, não permitir que as mulheres tenham direitos sobre seu corpo, equiparar a homossexualidade a uma doença para a qual é necessário oferecer tratamento. E já fizeram um grande avanço no Congresso brasileiro, estão no poder executivo e legislativo, e acabam de eleger o prefeito do Rio de Janeiro. Estamos em uma situação muito perigosa de ovo de serpente: está sendo criado algo que vão explorar nos próximos anos, que é o fundamentalismo evangélico no Brasil.
Continuando com a religião, você trabalhou como assessor em países como Cuba, Nicarágua e Polônia a respeito das relações entre Igreja e Estado. Qual a sua opinião sobre o papel da Igreja na Espanha?
Parece-me que a Igreja da Espanha possui um pecado mortal muito grave pelo qual teria que fazer muita penitência, que é o seu apoio durante 36 anos à ditadura de Franco. A Igreja sempre prega que não se mete em política, mas é mentira. Sempre que viu seus privilégios ameaçados, como na guerra civil, tomou partido político. Eu também tenho posições políticas, mas sou contrário que a Igreja assuma posições políticas contra os pobres, contra o povo, e a favor dos mais ricos, os opressores, os banqueiros. Todos nós, cristãos, somos discípulos de um preso político: Jesus não morreu na cama de velho, nem por um camelo em uma esquina de Jerusalém. Foi preso e torturado, foi a julgamento sob dois poderes políticos, o romano e o judaico, e condenado à pena capital dos romanos, que era a morte na cruz. Sendo assim, a pergunta é outra: que tipo de política nós fazemos como cristãos e como Igreja? A favor dos mais ricos ou a favor dos mais pobres? O Papa Francisco, no último sábado, encerrou um encontro com líderes de movimentos sociais de 60 países, afirmando que precisavam continuar lutando pelos três “t”, teto, terra e trabalho. A Igreja da Espanha ainda não está totalmente alinhada com a postura de Francisco. Era muito papista quando estava João Paulo II ou quando estava Bento XVI, e agora parece que já não precisa seguir as orientações do papa. Então, não pode dizer que não tem considerações políticas.
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“A desgraça do Brasil é sua política, culpa de uma herança colonial não superada”. Entrevista com Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU