16 Setembro 2016
O novo governo estimula uma parceria iniciada na era PT cujas consequências são, em grande medida, deletérias.
O artigo é de Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc e convidada do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI, em artigo publicado por CartaCapital, 15-09-2016.
Eis o artigo.
Em comentário sobre os recentes acordos de investimentos da China no Brasil, um negociador afirmou que “as relações bilaterais ganham novos galhos onde antes havia apenas o tronco”.
De fato, os anúncios das intenções de investimentos chineses no País indicam que, a despeito da crise política que se instalou e da crise econômica que dela se alimentou, continuam sendo dados passos objetivos para que as empresas privadas e estatais chinesas ampliem ainda mais seus investimentos no Brasil.
Os investimentos anunciados em eventos de negócios paralelos à reunião do G20 na China são um desdobramento das negociações bilaterais que já vinham sendo conduzidas pelos governos Lula e Dilma e, evidentemente, dos fortes e específicos interesses da China no Brasil e na América Latina.
De ambos os lados, tais relações bilaterais têm sido assumidas pela diplomacia como mutuamente benéficas, complementares e baseadas em laços de solidariedade sul-sul. Narrativa esta, inclusive, reforçada no âmbito dos BRICS, também como meio de promover formas de liderança internacional alternativas.
A nós cabe perguntar: que tronco é esse e quais galhos e frutos dele brotarão?
Já é consensual entre pesquisadores a percepção de que os laços comerciais entre a China e a América Latina são baseados na demanda chinesa por um conjunto relativamente limitado de recursos naturais: o cobre do Chile, as commodities em geral, em especial minério de ferro e petróleo, do Brasil, Venezuela, Colômbia, Peru e Argentina. Em contrapartida, os elevados fluxos de comércio da China para a região são dominados por bens manufaturados de média e alta tecnologia.
Há um outro consenso já formado de que o ciclo de preços das commodities, expresso na elevação dos volumes transacionados e valores a partir de 2002, com pico em 2011, e fortes evidências de esgotamento nos três últimos anos, guarda relação direta com a dinâmica de crescimento da economia chinesa.
Alguns estudiosos vão além e argumentam que, por trás da demanda chinesa por commodities, em especial de minerais, esteve um ciclo de negócios puxado pelo incremento na sua produção industrial a qual alimentou a rápida urbanização e o desenvolvimento de infraestrutura conduzidos pelo Estado chinês. Um ciclo que se esgotou, pelo menos na intensidade com que se expressou na primeira década deste século.
Já no Brasil, o boom de commodities e seu fim têm nos mostrado como foram desiguais e perigosos os fluxos comerciais, principalmente de commodities, com a China. Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) apontam que o Brasil acumulou superávit de US$ 46 bilhões com os chineses entre 2009 e 2015, vendendo commodities.
Entre os efeitos ainda pouco compreendidos para o Brasil deste intenso fluxo comercial baseado em recursos naturais estão a sobrevalorização do real e a perda de competitividade de vários segmentos da produção manufatureira, retroalimentada pelo aumento das importações de manufaturados chineses – de 4% em 2001 para 21% em 2015, segundo a CNI. Esses efeitos explicam, em parte, a atual e profunda crise econômica brasileira.
Tão perverso quanto foram os impactos sociais e ambientais produzidos por essa corrida por minérios e terras patrocinada pela demanda chinesa, o desastre do Rio Doce, com o rompimento de uma barragem da Samarco-Vale-BHP em Mariana (MG) é uma síntese perfeita do que significa essa corrida pela extração de volumes sempre recordes de minérios, a custos cada vez mais menores.
Em vez de termos uma maior reflexão sobre a natureza desse ‘tronco’ e quais efeitos e consequências das relações construídas entre Brasil e China, estamos vendo essa parceria ser acriticamente e irresponsavelmente adubada pelo atual governo para que produza longos galhos, atendendo aos interesses chineses: a infraestrutura necessária para garantir fluxos contínuos e cativos de recursos naturais para a China e de bens manufaturados da China ao Brasil e região.
Além da oferta de extenso “cardápio” de investimentos em infraestrutura – incluindo concessões, outorgas e privatização – o governo brasileiro deu perigosos passos no campo da regulação. A aprovação da Medida Provisória Nº 727 alçou os investimentos em infraestrutura à condição de prioridade nacional, garantindo-lhes celeridade na liberação das licenças necessárias.
Na prática, a nova legislação impõe um regime de aceleração (fast tracking) do licenciamento ambiental aos projetos de infraestrutura. Isso, diante do quadro de crescente fragilidade das capacidades e recursos dos órgãos ambientais e daqueles que protegem os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais, significará ainda maiores violações dos direitos ambientais e também desses grupos e das demais populações afetadas por grandes obras que têm no licenciamento a única via de avaliação, mitigação e compensação dos impactos causados.
Criou-se, ainda, uma nova institucionalidade, o Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, com o papel e o poder de coordenar e “enquadrar” os demais órgãos e entes públicos para viabilizar a execução célere e rentável dos projetos que interessarem aos investidores.
Do lado da China, algumas das principais escolhas no “cardápio”, cuja oferta soma US$ 269 bilhões, foram esclarecedoras:
i) Construção da ferrovia transoceânica, negociada ainda em 2015 e com projeto de análise de viabilidade econômica concluído, que abrirá a rota de exportação pelo Pacífico, barateando custos de transporte de minérios e grãos para a China;
ii) Acordo entre a China Communication and Construction Company Internacional (CCCC) e o grupo WPR para investimento no terminal multicargas de uso privado em São Luis (MA), para transporte de grãos, celulose e fertilizantes.
iii) Acordo para a criação de um Fundo de Investimento do Desenvolvimento da Agricultura do Brasil e China que participará da cadeia do setor agrícola brasileiro, especialmente em serviços agrícolas e melhoramento de infraestrutura, incluindo armazenamento, logística e portos.
iv) Aquisição de 50,1% da Rio Bravo Investimentos pelo grupo Fosun. A Rio Bravo é uma administradora de investimentos que, entre outros serviços, monta e administra fundos e carteiras de infraestrutura para investidores institucionais e pessoas físicas, com foco em projetos de energia e logística.
O “menu” oferecido aos chineses, juntamente aos serviços adicionais de mudança de regulação e institucionais para viabilizar projetos a toque de caixa, coadunam com as fortes preferências dos investidores por infraestruturas que visam ampliar o escoamento de commodities para a China e de manufaturas para o Brasil e região.
A complexidade das relações comerciais e de investimentos Brasil-China ficaram em grande medida nubladas pela narrativa dos interesses sul-sul que contribuiu para mascarar uma relação de fortes assimetrias que aprofundam a dependência histórica do País, e latino-americana, por exportações de commodities, e exponenciam seus inúmeros impactos.
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Brasil-China: complementaridade ou dependência? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU