05 Julho 2016
Para além da morte de 19 pessoas e dos impactos ambientais e econômicos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), a dinâmica social do município e das comunidades atingidas sofreu drásticas e profundas alterações. Os rastros da tragédia do dia 5 de novembro de 2015 extrapolaram o percurso da lama que derrubou casas e apagou comunidades do mapa. Com o derramamento de milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério pertencentes à mineradora Samarco – que invadiram o Rio Doce e seguiram até o Oceano Atlântico – também foram soterrados sonhos, apagadas memórias, ameaçadas a economia e o orçamento municipal e, definitivamente, transformadas para sempre as vidas de pessoas direta ou indiretamente atingidas.
A reportagem foi publicada por Jornal Unicamp, 04-07-2016.
A tragédia trouxe um elemento novo à cidade que nasceu da exploração do minério: afinal, a mineração é boa ou ruim para Mariana? A questão continua sem resposta.
Transferidos das áreas onde hoje predomina a lama, os moradores dos distritos e subdistritos afetados vivem na cidade de Mariana. São cerca de 300 famílias, grande parte dos subdistritos Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues, o segundo com mais de 200 casas completamente destruídas. O mercado imobiliário da cidade de 58 mil habitantes reagiu com a alta dos preços dos imóveis disponíveis. Muitos apartamentos e casas que estavam vazios foram alugados pela Samarco e ocupados pelas vítimas.
A partir daí começaram a surgir rumores que sugeriam que os atingidos estavam se aproveitando de sua situação para extorquir a mineradora. Isso gerou um conflito entre os moradores de Mariana e os dos subdistritos, levando muitos destes a serem hostilizados, principalmente nas escolas. A situação que só pode ser vista de perto não foi descrita pela grande imprensa nestes oito meses. As atividades da Samarco permanecem suspensas e boa parte da cidade pede que ela volte a operar para que o comércio aqueça novamente, os hotéis retomem a taxa de ocupação e os empregos de quase 3 mil funcionários sejam garantidos (diretos e indiretos).
“O núcleo central, que é aqui na cidade de Mariana, é muito dissociado dos distritos. E, para entender Mariana, para entender a lógica da cidade e como a mineração penetra na dinâmica social, tem que entender a relação com os distritos; e a relação do governo, das instituições públicas com os distritos também. Tem um certo ‘abandono’ na relação com os distritos. E eles são fundamentais”, avalia Frederico Tavares, professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
A riqueza mineral da cidade de Mariana está toda nos nove distritos pertencentes à cidade. Segundo o prefeito Duarte Eustáquio Gonçalves Junior (PPS), 89% da arrecadação do município vem da empresa Samarco, controlada pela Vale e a anglo-australiana BHP Billiton. O turismo tem pouca participação na arrecadação, apesar do valor histórico da cidade, que permanece intacto - o derramamento de rejeitos não atingiu a área urbana de Mariana.
Perdas imateriais
Embora praticamente todas as pessoas que viviam nas comunidades atingidas tenham sido reassentadas em Mariana, a insatisfação com as novas moradias é nítida. Alocadas em bairros diferentes e distantes entre si, como Barro Preto, Chácara, Colina, São Gonçalo e Vila Maquiné, muitas dessas pessoas foram separadas de seus familiares e amigos, com quem tinham frequente contato.
“Eles estão hoje amparados tecnicamente. Mas se você vai nas casas, é a mesma cor do armário, mesma televisão; nenhuma foto, nenhum quadro, nenhuma lembrança. É uma casa que parece uma loja. Eles perderam tudo. Eles nem gostavam de vir passear em Mariana. Tinham as atividades tanto culturais, quanto festivas e de lazer lá [em Bento Rodrigues]: andar a cavalo, ir para a cachoeira, ficar no Bar da Sandra, fazer festinha na casa de amigos... Eles gostavam de ficar lá”, afirma a professora Silvany Diniz, que desde 2002 dava aula na escola de Bento Rodrigues.
Não havia pobreza na comunidade. As casas, embora simples, eram aconchegantes, cercadas de árvores e flores. As crianças tinham seus próprios cavalos e gostavam de passear, brincar na pracinha e no campo de futebol. “São pessoas batalhadoras, do campo. Muitos não morreram porque estavam aqui, trabalhando”, conta Juçara Brittes, professora do curso de Jornalismo da UFOP, que convive com os atingidos. “Há várias realidades sobrepostas nos distritos e em Mariana.”
Também não tem sido fácil para os idosos de Bento Rodrigues se adaptarem à vida em Mariana. Muitos não conseguem se habituar ao barulho e à movimentação da cidade; outros vivem isolados, longe de seus antigos vizinhos e amigos, sem espaço para cultivar hortas ou realizar quaisquer atividades costumeiras do tempo em que viviam na comunidade. “Tem uma senhora que está no terceiro andar. Ela nunca mais desceu. Ela tem 90 anos e agora não quer mais sair de casa, está deprimida”, conta a professora Juçara Brittes. “Vivemos um conflito muito grave. Eu também sou uma atingida da barragem, porque todo o povo brasileiro foi”, protesta a professora.
Segundo o professor Frederico Tavares, há inúmeras pessoas com traumas psicológicos na cidade. Um caso de suicídio na cidade de Barra Longa, onde metade das casas ficou soterrada pela lama, foi registrado neste período. Dentro da universidade, as opiniões também são conflituosas. Há posturas mais críticas e outras mais alinhadas com a empresa Samarco, responsável pela barragem de Fundão. Muitos professores e pesquisadores prestam serviço ao setor com consultorias técnicas nas áreas de engenharia, controle de qualidade e segurança. “É também uma característica da cidade, um certo medo. No começo muita gente não queria nem falar. A cidade entrou em conflito e ainda está sob os efeitos da tragédia”, diz Tavares.
Fora do ambiente universitário ou das comunidades atingidas, também há pontos de vista diferentes. De acordo com Tavares, muitos moradores se mudaram da cidade. “Fica no imaginário o risco de acontecer novamente com uma chuva muito forte. É uma visão assustadora.” Quem chega a Mariana e pergunta nos hotéis sobre a tragédia e suas consequências vai ouvir reclamações sobre os “privilégios” que hoje têm os moradores dos distritos e subdistritos atingidos. “Muitos tinham uma TV velha, agora têm TV de Led”, diz uma recepcionista de hotel que não quis se identificar.
Volta da Samarco divide a população
A crise econômica causada pela tragédia escancarou questões locais que vão muito além do comércio estagnado e da bolha imobiliária. A prática da mineração e a própria Samarco estão ligadas à população marianense a ponto de uma parcela das pessoas se identificar mais com a mineradora do que com os distritos atingidos. Apenas 15 dias após o rompimento ocorreu uma passeata, organizada por funcionários e simpatizantes da Samarco, pedindo o não fechamento da empresa.
Parte dos habitantes de Mariana possui laços tão estreitos com a mineradora que chegam a culpar as vítimas pela demora da volta da empresa. Sem suas casas, os moradores dos distritos atingidos foram alocados em Mariana e muitas vezes são alvos de críticas e perseguição. Uma dualidade cruel em uma cidade que é conhecida por sua hospitalidade.
Silvany Diniz, professora de História na escola municipal de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo - ambos subdistritos afetados pela lama - continua lecionando aos alunos atingidos, agora em uma escola instalada em Mariana. Ela fala que as vítimas estão enfrentando grandes dificuldades de adaptação. Segundo ela, eles se sentem muito sozinhos. As crianças, que costumavam se reunir após as aulas para brincar na pracinha da comunidade – às vezes até o anoitecer –, agora vão direto da escola para casa. “O índice de bebida entre os jovens aumentou”, relata a professora, que também testemunha o aumento da depressão. “Tenho alunos tomando antidepressivo.”
Antonio Paulo Goulart, proprietário do Café Chantilly Confeitaria, localizado no centro histórico de Mariana, diz que é favorável à volta das atividades da empresa na cidade. “Além de estarmos vivendo uma crise econômica no País, há uma crise isolada aqui. Economicamente, a cidade inteira sentiu”, diz Goulart, que é também a favor de penalidade sobre os responsáveis.
“A maior parte da população quer Justiça. A empresa deve pagar pelo que aconteceu, ela tem responsabilidade sobre isso, mas a cidade vai sofrer muito se ela sair. Precisamos ter uma fiscalização maior do governo”, defende. O empresário já demitiu funcionários por causa da queda no movimento da doceria. “A Samarco é um mal necessário”, conclui Goulart, que também vê na situação um bom momento para a cidade se reinventar e buscar diversificar a economia. “Acho que havia uma certa consciência de que a mineração um dia chegaria ao fim, mas não desta forma impactante e trágica.”
A advogada Ana Cristina Maia, titular do cartório de Registro de Imóveis de Mariana, é também favorável à volta das atividades da Samarco. Apesar de ser ativa no coletivo #UmMinutoDeSirene, criado pela sociedade civil para manter viva a memória da tragédia, ela defende a retomada. “Se a empresa não voltar a operar, a gente vai ter uma nova tragédia.”
‘A lama veio arrebentando tudo’
Morador de Paracatu de Baixo, subdistrito de Mariana parcialmente destruído pela lama de rejeitos da barragem de Fundão, o produtor rural Corgésius Mol Peixoto perdeu sua casa e tudo que tinha dentro dela, inclusive documentos, álbuns de família e muitas lembranças. “Minha mulher chora até hoje pelas fotos de formatura dos filhos e por tudo que se foi.”
Peixoto mostra sua casa soterrada pela lama, localizada na margem do rio Gualaxo do Norte, afluente do Rio Doce que passa ao lado de Paracatu. Ele nasceu e cresceu no subdistrito onde teve três filhos e morava com sua esposa, professora da escola municipal. Agora a família está provisoriamente em imóvel alugado pela Samarco em Mariana, mas Peixoto todos os dias sai da cidade e vai até Paracatu de Baixo cuidar dos animais - gado leiteiro que mantém em sua propriedade não alcançada pela lama.
Ele lembra que estava em sua casa no dia 5 de novembro, quando seu irmão ligou para avisar sobre o rompimento da barragem. “Eram mais ou menos três e meia da tarde. Ele disse que ficou sabendo do rompimento, mas só avisou para ficar atento. Não achei que viria forte. Minha mulher já pegou a bolsa com documentos e saiu com minha filha. Depois apareceu um helicóptero avisando que tínhamos de sair em cinco minutos. Não deu tempo de eu voltar pra casa. Perdi todos os meus documentos. Um filho já morava em Mariana, não estava em casa”, lembra Peixoto.
“No dia, teve muito voluntário para nos levar para Mariana. Eu fui para a casa de um irmão e depois para um hotel. Mas foi quase todo mundo para o ginásio.” De acordo com o produtor, ele e sua mulher já tinham a vida planejada. Faltava pouco para ela se aposentar na escola, onde ainda trabalha, agora instalada na cidade. “Recomeçar a vida, a esta altura, não é fácil.” Os filhos estão criados, diz Peixoto, mas ele tem a sensação de que precisa começar do zero.
“Vou sentir saudade de Paracatu. Sou nascido e criado aqui, ao lado de primos, vizinhos. Estão falando que vão tentar colocar todo mundo igual aqui. Dentro do possível, eles [Samarco] estão dando assistência. Dão alimento para os animais.” Peixoto fala que ouvia comentários sobre o risco do rompimento de uma barragem, mas ele sequer sabia da existência de Fundão. “Eu sabia de outra barragem com mais perigo, não desta.”
À espera de uma solução
“Estou esperando”, disse “seu” Paschoal, morador de Paracatu de Baixo. Todos os dias ele sai de Mariana, onde está instalada toda a família composta por 12 pessoas, e vai até o subdistrito cuidar de suas galinhas e porcos. Em respostas curtas, mas precisas, ele fala que gostaria de ter todos de volta a Paracatu de Baixo. “Era bom demais morar aqui.”
Nascido no distrito de Pedras, “seu” Paschoal vivia há 40 anos em Paracatu de Baixo. Aos 69 anos, ainda trabalha em sua propriedade rural. Quando lembra do dia da tragédia, fala do helicóptero que chegou para avisar e depois da condução que foi resgatar os moradores. “A lama veio arrebentando tudo. Não vi chegar. Não alcançou minha casa nem os animais, mas a casa rachou em dois lugares. A Defesa Civil tirou todos depois daquele dia. Mas eu fugi do hotel e voltei para cá.”
Segundo “seu” Paschoal, a lama deve fazer mal às pessoas porque “os pés de árvore já matou tudo”. Antes da tragédia, já havia escutado falarem que podia acontecer o rompimento da barragem, mas ninguém imaginava que atingiria a comunidade.
Uma reportagem multidisciplinar
Com a missão de escrever sobre como vive hoje a população de Mariana (MG) após o rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro que ocorreu em 2015, quatro estudantes da Unicamp resolveram fazer uma reportagem. O grupo multidisciplinar formado pela jornalista Adriana Menezes, o secretário-executivo Bruno Andrade, o publicitário Renan Possari e a bióloga Tássia Biazon saiu de Campinas na noite chuvosa do dia 1º de junho e retornou ainda debaixo de chuva na madrugada do dia 5 de junho.
Após três dias na cidade mineira, cada um trouxe na bagagem muitas histórias e a vivência de uma aventura marcada pelo testemunho vivo dos efeitos do maior desastre ambiental do Brasil. A equipe realizou mais de 20 entrevistas em Mariana.
A motivação para a viagem teve início com a atividade proposta pela professora Graça Caldas, do programa de pós-graduação e mestrado do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, que lançou aos mais de 30 alunos da sala o desafio de produzirem um eBook sobre a tragédia de Mariana. Toda a turma abraçou a ideia e deu início à produção do conteúdo, que vai resultar no livro digital com lançamento previsto para o fim do ano. Os diversos desdobramentos da tragédia serão contemplados na obra coletiva.
“O que mais me impressionou foi a maneira que se deram as relações entre marianenses e moradores dos distritos atingidos após o rompimento da barragem. O conflito social causado mostra ainda mais o quanto a cultura da mineração está entranhada na população da região”, disse Renan sobre o conflito local e a realidade nunca descrita na grande mídia.
Os alunos também presenciaram movimentos da sociedade civil preocupada em apoiar os atingidos. “Gostei de ver o trabalho que tem sido desenvolvido pelos coletivos locais e a UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto). Apesar do preconceito que os atingidos têm sofrido na cidade, tem muita gente empenhada em ajudá-los”, constata Bruno.
O grupo presenciou uma parcela dos problemas ambientais causados pelo desastre e constatou que o pedido por uma legislação que trata das questões de mineração com mais rigidez é unânime entre atingidos, marianenses e autoridades. “A viagem proporcionou uma percepção mais ampla da tragédia. Ao andar pela beira do rio Gualaxo do Norte, percebi o quanto a destruição ambiental não é quantificável. O que entristece é que o assunto não está mais nas capas dos jornais, mas o caos permanece, e se propaga de diversas formas”, considera Tássia.
Ao apurar a história, independentemente das formações de cada um, há um mesmo script final: o rompimento da barragem de Fundão, com os rejeitos percorrendo centenas de quilômetros até chegar ao Oceano Atlântico, é um crime que não pode ser esquecido.
Para Adriana, o mais impactante foi encarar de perto o descaso do poder público em relação à exploração das riquezas nacionais. “A maneira como o minério é explorado é a mesma desde o Império. A indiferença com que as autoridades tratam nossos recursos naturais me causa indignação. Não há fiscalização, não há controle, e o poder econômico determina quase todas as coisas.”
O Dia D
Dia 5 de novembro de 2015. Brasil. Minas Gerais. Mariana. Mineradora Samarco. Às 15h ocorre o rompimento da barragem de Fundão. Cerca de 32 milhões de metros cúbicos de rejeito são lançados no meio ambiente, atingindo diversas comunidades, causando impactos ambientais, sociais, econômicos, até hoje incalculáveis. A lama soterrou casas, matou crianças e adultos, animais de estimação e criação, devastou a fauna e a flora da região, contaminou a água e afetou a bacia hidrográfica do Rio Doce, até chegar ao Oceano Atlântico, impactando regiões estuarinas, costeiras e marinhas.
A primeira comunidade atingida foi Bento Rodrigues, localizada a apenas 5 km do Complexo Minerador Germano-Alegria. Com 318 anos, o subdistrito tinha pouco mais de 600 pessoas. Em menos de 10 minutos a lama atingiria todas as famílias. Não houve tempo de salvar praticamente nada. Desabrigados, os moradores foram aos poucos resgatados e levados para o ginásio poliesportivo Arena Mariana, na área urbana da cidade, que não foi atingida pelos rejeitos.
A advogada Ana Cristina Maia, titular do cartório de Registro de Imóveis de Mariana, também traz na memória o fatídico dia. Ela presidia uma reunião do Conselho de Patrimônio da cidade e estava com o celular desligado. Por volta de 17h, todos na reunião começaram a receber mensagens e alguém interrompeu para informar que uma barragem da Samarco havia se rompido. “Havia filhos, sobrinhos e amigos desaparecidos, teve gente que já se levantou da mesa chorando. Mas ninguém sabia ao certo o que havia acontecido.”
Ana tentou falar com uma amiga professora e não conseguiu. Também ficou desesperada. Viu na TV que Bento Rodrigues estava completamente coberta. “Saí de casa e fui para o ginásio. Fiquei até 1h30 da manhã ajudando, com voluntários e a Defesa Civil.” Devido à falta de medidas de segurança e procedimentos em caso de acidentes, a informação sobre o rompimento da barragem aconteceu no boca a boca, porque a sirene (que deveria existir) não tocou. Após a tragédia, a pergunta foi lançada: “Quem foi sua sirene?” Da angústia coletiva e da vontade de fazer alguma coisa para ajudar, surgiu o coletivo #UmMinutoDeSirene, criado pela sociedade civil para manter viva a memória da tragédia. Todo dia 5 o coletivo promove ações em área pública da cidade.
Na sirene, o chamado coletivo
No dia em que a barragem de Fundão se rompeu, em 5 de novembro de 2015, não tocou a sirene que supostamente existia para avisar os moradores dos distritos caso ocorresse o rompimento de alguma barragem da empresa Samarco. Para que a tragédia não caia no esquecimento, um grupo formado pela sociedade civil local se organizou e fundou o coletivo #UmMinutoDeSirene, que tem como objetivo lutar pelo direito à comunicação e à preservação da memória das comunidades que sofreram com a tragédia.
Todo dia 5 de cada mês, o coletivo toca a sirene e promove um ato público em Mariana. No dia 5 de junho, organizaram uma feira com os produtores rurais atingidos pela lama nos subdistritos, na qual foram vendidos produtos como queijo, geleia de pimenta biquinho, doces típicos mineiros e outras iguarias. Neste dia também foi lido em praça pública um manifesto escrito pelos moradores.
O rompimento da barragem para esta parcela da população vai muito além das consequências físicas, ambientais e econômicas. Ele afetou o sentimento de pertencimento de quem morava nos subdistritos e perdeu suas casas, sua rotina, seu estilo de vida e sua memória.
O coletivo #UmMinutoDeSirene também criou o jornal A Sirene, elaborado pelos próprios atingidos, com apoio de professores e estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e da Arquidiocese de Mariana.
“A tragédia disparou um gatilho em cada um de nós. Para mim foi o gatilho de voltar para Mariana e criar o jornal A Sirene, cujo objetivo é defender os direitos que estão sendo violados, inclusive o da comunicação. Decidimos que deveríamos lutar por tudo isso”, diz o jornalista Gustavo Nolasco, um dos integrantes e fundador do coletivo #UmMinutoDeSirene e do jornal A Sirene.
A família de Nolasco é da região de Ouro Preto e Mariana. Em 2015 ele morava em Belo Horizonte, mas após o rompimento da barragem voltou para Mariana. A ideia de dar voz às vítimas com o jornal A Sirene também foi uma reação à falta de informações a respeito da tragédia e da situação dos distritos e subdistritos. “Teve repórter da Globo que chegou aqui e disse que só queria ouvir pessoas que falassem mal da Samarco. Os moradores colocaram pra fora. Ouço gente tanto de um lado quanto de outro.”
Segundo Nolasco, a população local ficou muito incomodada com a cobertura da grande mídia – nacional e internacional -, que invadiu a cidade após a tragédia. A assessora de imprensa da prefeitura de Mariana, Kíria Ribeiro, lembra que meia hora depois do rompimento da barragem começou a receber ligações da imprensa do Brasil e do mundo. “Ali eu já pude sentir o que estava por vir.”
Ela só conseguiu sair da redação depois das 20h30 e, de lá, foi para o ginásio onde estavam sendo acolhidos os moradores atingidos. Logo começaram a chegar os jornalistas. Os primeiros foram os de Belo Horizonte, do jornal O Estado de Minas. “Somente à noite soubemos que não existia mais Bento Rodrigues. A solidariedade foi imediata.”
Voz aos atingidos
Lançado em 2016, o jornal A Sirene subverte a hierarquia de vozes. Escrito em primeira pessoa, a voz do atingido é a única existente. Os jornalistas colaboradores conversam com as vítimas do desastre, transcrevem exatamente o que foi dito e o texto passa por aprovação do entrevistado.
“A visibilidade é muito importante. A gente sentiu que nem tudo que queríamos aparecia [na grande mídia], tudo era muito filtrado. Eles aproveitavam muito dos momentos de sensibilidade, quando alguém estava chorando para fazer fotos, ao mesmo tempo os atingidos não conseguiam fazer queixa da empresa”, diz Juçara Brittes, professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e integrante do coletivo #UmMinutoDeSirene.
As estudantes de Jornalismo da UFOP Marília Mesquita e Silmara Filgueira participam da produção do jornal A Sirene desde a primeira edição. “Ficamos sensibilizadas com a causa.” Elas auxiliam nas entrevistas e às vezes ajudam também a escrever os textos, mas quem de fato faz o jornal são os atingidos pela lama nos subdistritos e distritos de Mariana.
O jornal começa agora uma nova fase. “Ele passa por uma reforma editorial e deve ser mais informativo, deixa de ser somente na primeira pessoa. Mas não existe matéria sem a participação de um atingido”, explica Marília. “Surgiu deles e para eles. Agora há uma releitura, para chegar mais à população”, disse Silmara. O desafio agora é aumentar a circulação.
O projeto foi iniciado pela Arquidiocese de Mariana, que financiava a impressão, em parceria com a empresa Nitroimagem, que realizava o trabalho de produção. A ideia surgiu quando ainda estavam todos sob o impacto da tragédia. Depois a própria comunidade quis dar continuidade ao jornal. A Arquidiocese buscou recursos e conseguiu manter uma edição mensal de A Sirene nestes últimos meses. “Não imaginávamos que A Sirene ganharia esta proporção. É um jornal que está sendo construído”, diz Marília.
Desde o início, a estudante Silmara faz a diagramação, enquanto Marília auxilia nas reportagens. Mas elas não são as únicas. Há participação de diversos estudantes da UFOP. A vivência com os atingidos lhes permite conhecer inúmeras histórias e situações que nem sempre chegam ao público. “Tem gente que não consegue falar sem chorar. Outros falam tranquilamente. Não tem como não ser assim. Eles perderam suas casas, suas lembranças de infância”, conta Marília.
A repórter descreve como os moradores de Bento Rodrigues falam de suas vidas antes da tragédia. “Os relatos que eu tenho deles é que viviam muito bem. Teve um que perdeu R$ 60 mil porque guardava em casa. Financeiramente, eles não viviam mal. Uma moradora tinha horta em casa e agora, em apartamento alugado pela Samarco, tenta manter uma pequena horta.”
Segundo as conversas entre as vítimas de Bento Rodrigues, conta Marília, todos sabiam que poderia ocorrer um acidente um dia, mas nunca nestas dimensões. Não havia real noção. Eles faziam caminhadas até a barragem, tinham a imagem de uma coisa gigantesca em cima deles, “mas ninguém estava preparado para tudo isso; nem as equipes de apoio.”
Para Silmara, a imprensa de modo geral foi muito superficial na cobertura de Mariana, “com recortes não aprofundados”. Marília também acredita que ainda há coisas que precisam ser faladas que não aparecem na grande imprensa. Ela cita o surto de alergias que está ocorrendo em Barra Longa, cidade mineira onde a lama da barragem também passou. “E continua lá. Continua passando lama no rio.” São casos de alergia respiratória, ocular e micose. “Dizem que é bactéria. Enquanto a Samarco continua dizendo que a lama não é tóxica.”
Nos dias seguintes à tragédia, helicópteros sobrevoavam o local, telefones não paravam de tocar, era uma movimentação de diversas emissoras, entre elas a BBC, National Geographic e Globo. “Hoje em dia, quase não se vê mais ninguém”, diz o estudante Thiago Barcelos, aluno do curso de jornalismo da UFOP. “O bacana é que ainda tem gente que não se esqueceu e procura fazer um produto jornalístico de qualidade e que pode fazer a diferença, por isso eu fico feliz em ajudar pessoas que aparecem aqui assim como você e seus amigos”, declara.
O estudante conta que aproximadamente duas semanas depois da tragédia realizou uma cobertura fotográfica em Bento Rodrigues. Ele lembra que não havia nenhum morador por lá, era apenas a destruição que a lama provocou. “A princípio foi um choque, um verdadeiro cenário de filme de terror, era difícil acreditar que tinha uma cidade debaixo daquela lama toda”, lembra.
Quem visita os locais mais atingidos tem a sensação de ter parado no tempo. Paracatu do Baixo, subdistrito devastado, tem marcas nítidas. A escola está repleta de lama, a igreja interditada, as casas em ruínas. Em meio a tanta destruição, um ou outro morador anda pelas ruas, acreditando que sua vida ainda voltará ao normal.
O coletivo #UmMinutoDeSirene também escreveu um manifesto que foi lido em praça pública no Dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de junho, quando o rompimento completou sete meses.
O desastre (sempre) está em curso
O maior desastre ambiental do País trouxe à tona diversas outras ameaças ao meio ambiente existentes no Brasil, entre as quais a falta de fiscalização das barragens de mineração, a prática irregular da atividade mineradora ao longo dos rios, - que dentre uma série de impactos, polui os cursos d’água com metais pesados - e, finalmente, a ausência de políticas públicas de segurança.
A lama de rejeitos da barragem de Fundão deixou rastros de destruição em áreas de preservação permanente, alterou os cursos d’água dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce, causou a mortandade de organismos aquáticos, devastou fauna e flora, interferiu até em ecossistemas marinhos, e ainda deixa incertezas de até quando haverá seus reflexos na natureza.
Até hoje, os milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério que restaram na região do rompimento continuam escoando, para além da grande quantidade de lama que está nas margens e afluentes da bacia do Rio Doce, que com as chuvas é transportada aos cursos d’água. Ou seja, o desastre ambiental não cessou. A Samarco construiu diques de contenção, mas eles já estão com suas capacidades de armazenamento esgotadas. Agora, há uma corrida contra o tempo para conter esses rejeitos antes do início da estação chuvosa, que começa no final de setembro.
O professor André Cordeiro Alves dos Santos, do Departamento de Biologia do Centro de Ciências Humanas e Biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), analisa: “Com certeza, se tivesse ocorrido em outro local, sem tanta ocupação e sem as mortes que provocou, acho que não seria nem notícia”, afirma, enfatizando que já ocorreram fatos desta natureza mesmo nas regiões Sudeste e Norte do país. “Este não é o primeiro caso de rompimento de barragem de rejeito de mineração no Brasil, nem o primeiro com perdas humanas, mas os outros são praticamente desconhecidos.”
Santos acredita que as questões ambientais não são tratadas porque elas são complexas e com efeito de longo prazo. “É necessário uma discussão mais profunda e com conceitos mais detalhados, que a mídia, de modo geral no Brasil, não consegue nem tem interesse em fazer.”
Os impactos da mineração
Independentemente de ocorrer um desastre proporcional ao rompimento de uma barragem, a mineração em si já causa diversos impactos ambientais. “Toda e qualquer atividade humana causa impacto ambiental”, afirma o docente Ricardo Perobelli Borba, do Departamento de Geologia e Recursos Naturais da Unicamp.
“As transformações ambientais promovidas pela mineração estão relacionadas aos grandes volumes de rochas, solos e água que precisam ser mobilizados em suas operações. Nas minerações superficiais, frequentemente, há a alteração da paisagem, a construção de barragens e a disposição de rejeitos. Ao transformar o seu entorno, a mineração também acaba afetando a biota local, os rios e a atmosfera em diferentes graus, a depender do tipo de minério que está sendo lavrado”, explica.
Borba lembra que a mineração só existe em razão das demandas de matérias-primas da nossa sociedade e seu modo de vida, e enfatiza: “A mineração é uma atividade essencial para o Brasil”. Mas lembra que muitos problemas podem ser evitados se a legislação existente for cumprida à risca, além de sempre haver oportunidades de aprimoramento das normas e legislações vigentes.
Sem legislação e tratamento de esgoto
O município de Mariana, com mais de três séculos e desde seu início amplamente explorado pela mineração, não tem sequer uma legislação ambiental própria que contemple a atividade. O prefeito Duarte Eustáquio Gonçalves Júnior (PPS) afirma: “A mineração na cidade é regida pela lei federal”.
Questionado sobre a necessidade de a cidade apresentar sua própria legislação, afirma que seria uma garantia maior, mas lembra: “Hoje nós teríamos que fazer um concurso para buscar mão de obra técnica para fiscalizar. Em nosso quadro, não temos alguém que pudesse fiscalizar isso.”
A cidade também não possui tratamento de água, recurso muito utilizado pela mineradora Samarco para extração do minério de ferro na cidade. O prefeito reconhece que a tragédia colocou em evidência outros problemas já existentes. “Se não tivesse havido mortes, essa tragédia seria extremamente importante para a reconstrução da história de todas as cidades afetadas e todas as histórias das mineradoras. Porque, a partir de agora, vamos pensar a mineração de uma forma diferente. Acredito que só vai poder minerar a seco, sem uso de água”, analisa.
Sobre os impactos ambientais, há controvérsias, por exemplo, sobre a toxicidade da lama e o fato de haver altas concentrações de metais pesados em organismos aquáticos depois da tragédia. De acordo com a Samarco, o rejeito é composto basicamente de água, partículas de óxidos de ferro e sílica (ou quartzo), proveniente do processo de beneficiamento do minério de ferro, reiterando que o rejeito não é tóxico, nem traz riscos à saúde, sendo classificado como inerte e não perigoso pela norma brasileira NBR 10.004.
O professor André Cordeiro Alves dos Santos integra o Grupo Independente de Avaliação do Impacto Ambiental (GIAIA), coletivo científico-cidadão que executa uma análise colaborativa dos impactos ambientais resultantes do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão. Ele e outros componentes do grupo realizaram expedições em diversos pontos percorridos pela lama, desde Mariana até o Oceano Atlântico. Dentre os estudos realizados, as análises da água mostraram altas concentrações de metais como o arsênio e o manganês.
O laudo técnico preliminar do Ibama, publicado em novembro do ano passado, já mostrava que mesmo que os estudos e laudos indiquem que a presença de metais não esteja vinculada diretamente à lama de rejeito da barragem de Fundão - pois além dos garimpos de ouro na região, há atividades de pecuária e agricultura de subsistência, além da presença de atividades de dragagem no rio -, “há de se considerar que a força do volume de rejeito lançado quando do rompimento da barragem provavelmente revolveu e colocou em suspensão os sedimentos de fundo dos cursos d’água afetados, que pelo histórico de uso e relatos na literatura já continham metais pesados”. O relatório diz ainda que possivelmente este revolvimento tornou tais substâncias biodisponíveis na coluna d’água ou na lama ao longo do trajeto alcançado, “sendo a empresa Samarco responsável pelo ocorrido e pela consequente recuperação da área.”
Sobre os riscos de rompimento das outras barragens que restam no complexo, as barragens de Germano e Santarém, a Samarco afirma que suas estruturas se encontram estáveis, sendo monitoradas 24 horas por dia, em tempo real, por meio de radares, câmeras, scanners, drones, medidores de nível d’água, inspeções diárias realizadas pela equipe técnica da empresa, entre outros.
A Samarco
Controlada pela brasileira Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton Brasil Ltda., a Samarco atua na produção de pelotas de minério de ferro para a indústria siderúrgica, com unidades nos municípios de Mariana (MG) e Anchieta (ES). Responsável pelo maior desastre ambiental do país, que causou a morte de 19 pessoas (uma ainda não encontrada), a empresa divide opiniões na cidade de Mariana, que é quase totalmente dependente da atividade mineradora, responsável por mais de 80% da arrecadação municipal e por mais de 2 mil empregos diretos.
Um acordo estabelecido no dia 2 de março entre a Samarco, suas acionistas, Vale e BHP Billiton, e os governos Federal e dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, homologado no dia 5 de maio pela Justiça, prevê uma série de ações concentradas em dois eixos: socioambiental e socioeconômico. Além das ações compensatórias, com disponibilização de recursos financeiros para obras emergenciais nos municípios afetados, pagamento de multas, ressarcimentos e indenizações aos desabrigados, a mineradora ficou responsável pela reconstrução dos distritos atingidos pela lama, com prazo para a entrega das obras até 2019.
Moradores escolhem o novo Bento Rodrigues
Em 7 de maio, os representantes das 226 famílias que viviam em Bento Rodrigues foram às urnas para escolher o local onde a comunidade seria reconstruída. Com 92% dos votos, Lavoura foi o local escolhido para receber o novo Bento Rodrigues. Localizada na rota da Estrada Real, a cerca de 8 quilômetros de Mariana, Lavoura parece atender às principais exigências dos atingidos, sobretudo no que diz respeito à proximidade do antigo subdistrito: 9 quilômetros. Com uma área de 350 hectares, boa oferta hídrica e solo de qualidade para o plantio e criação de animais, o terreno apresenta também facilidade de acesso ao transporte público.
Além de Bento Rodrigues, outras duas comunidades serão reconstruídas em locais a serem definidos pelas famílias desabrigadas – Paracatu de Baixo, subdistrito de Mariana, e Gesteira, subdistrito de Barra Longa. Segundo informações da página oficial da empresa, a votação para escolha do local de Paracatu acontecerá no início de julho. Para Gesteira, a votação aconteceu no dia 25 de junho e o terreno escolhido foi “Macacos”, com 95% dos votos.
A Samarco anunciou no dia 20 de junho que também atuará na recuperação de espaços rurais atingidos pelo rompimento da barragem. Segundo a empresa, 278 propriedades estão sendo assistidas pelo Programa de Retomada de Atividades Agropecuárias, previsto no acordo homologado em maio. O objetivo é oferecer condições para que as propriedades afetadas voltem a produzir como antes da tragédia.
Da comoção ao esquecimento
Os desastres devem ser enfrentados sob uma perspectiva social porque são construídos socialmente, diz o sociólogo e demógrafo Roberto do Carmo, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo). No caso de Mariana, diz o professor, não é diferente.
No livro que lançou em março deste ano, “Segurança humana no contexto dos desastres”, pela editora Rima (organizado em conjunto com a pesquisadora Norma Valencio), Carmo fala destes enfrentamentos em situações de desastre. Também no início deste ano, o sociólogo publicou artigo sobre Mariana na revista jurídica Consulex, em edição especial sobre a tragédia ambiental.
Para o sociólogo, todas as atividades econômicas desse tipo (extração mineral) implicam em perigos e riscos. “O importante é que a sociedade conheça esses perigos e riscos e possa ter condições de optar pela sua implementação ou não”, diz Carmo. Para ele, o forte poder econômico envolvido e a descontinuidade das ações do poder público dificultam a situação de Mariana. “Em termos conceituais, precisamos avançar da ‘sociedade do risco’ para a ‘segurança humana’”. Veja a seguir a entrevista:
Na sua avaliação, como a sociedade tem respondido aos desastres ambientais? Como tem sido no caso específico de Mariana?
Há um certo padrão em casos como este. Em um primeiro momento, logo após o acidente, acontece a comoção, e as manifestações exaltadas de agentes sociais. É o momento do clamor por ações incisivas, de proposição de ações punitivas de grande intensidade, com grande impacto midiático.
O segundo momento é o de avaliação da real extensão dos problemas e de suas decorrências. Em geral se percebe nesse momento que o desastre tem implicações muito mais complexas do que o inicialmente avaliado. É o momento em que se identificam as eventuais responsabilidades legais, e se iniciam os procedimentos legais.
O terceiro momento é o da “acomodação”. Os procedimentos legais foram instaurados, e se iniciam os trâmites que podem levar anos até serem concluídos. As vítimas do desastre resolvem a sua situação básica (em termos físicos e emocionais) da melhor maneira que podem, muitas vezes com pouca ajuda. A opinião pública se desmobiliza aos poucos.
O quarto momento é o do “esquecimento”. O desastre perde espaço no noticiário, por conta de outros desastres que eventualmente ocorrem. A opinião pública se desmobiliza. Apenas os afetados continuam atentos aos desdobramentos das ações judiciais. A responsabilização e as reparações dificilmente são suficientes ou adequadas tendo em vista a extensão das perdas. Em geral, não são feitas avaliações sobre como evitar situações semelhantes. Mariana segue, com quase nenhuma diferença, esse padrão.
De acordo com artigo que publicou na revista jurídica Consulex, em janeiro deste ano, o desastre de Mariana foi classificado como “de muito grande porte”, compreendido entre aqueles “não suportáveis e superáveis pelas comunidades afetadas”. Para superar, continua o artigo, é necessária a ação coordenada dos governos municipal, estadual e federal, em alguns casos da ajuda internacional. O senhor acha que isso pode funcionar no caso de Mariana?
A extensão dos impactos causados exige uma ação coordenada. Mas esta ação está efetivamente sendo possível? Este ano teremos eleições municipais. E um dos grandes problemas que enfrentamos, em qualquer âmbito da administração pública, é a descontinuidade das ações. Seria importante que os órgãos pudessem ter uma ação continuada, além de coordenada. A grande dificuldade em Mariana é o poder econômico envolvido.
O que seria, na prática, “superar” o desastre, e o que seria “não suportar”’?
Poderíamos pensar em termos dos efeitos. Alguns dos efeitos da lama podem ser “superados”, que são os efeitos menores, nos locais mais distantes do evento. Os “não suportáveis” são, por exemplo, os resultados sobre o conjunto das residências da povoação que foi destruída, ou seja, dificilmente serão “superados”, seja em termos materiais, seja em termos sociais (as perdas de vidas humanas, que são as principais perdas nesse desastre).
Quando fala sobre construção social do desastre em seu artigo refere-se à responsabilidade da sociedade sobre o desastre, devido ao conhecimento prévio do risco de rompimento da barragem?
A construção social do desastre deriva de uma avaliação equivocada entre os ganhos, principalmente econômicos, das atividades realizadas, e os perigos e custos sociais e ambientais dessas atividades. Na medida em que não se reconhecem adequadamente os perigos e os custos, os agentes sociais consideram de maneira privilegiada os ganhos econômicos (principalmente em termos de geração de lucros, mas também em arrecadação de impostos, em geração de empregos). Ou seja, esse desbalanceamento entre essas avaliações é que se configura como a construção social do desastre.
A questão não é necessariamente se a mineração é “boa ou ruim”. O fato é que todas as atividades econômicas desse tipo implicam em perigos e riscos. O importante é que a sociedade conheça esses perigos e riscos e possa ter condições de optar pela sua implementação ou não. E no caso da implementação, sob que condições efetivas, a fim de prevenir os perigos e riscos da forma mais eficiente possível. Conhecer os perigos e riscos das atividades, e estar preparada para enfrentar as situações críticas fazem parte de um novo contexto para o qual precisamos caminhar. Em termos conceituais, precisamos avançar da “sociedade do risco” para a “segurança humana”.
Uma relação de dependência
Apesar de ainda não ter uma legislação ambiental municipal já elaborada, a prefeitura de Mariana já concedeu a licença de conformidade à Samarco, documento que autoriza a volta das operações da empresa. A efetiva retomada, no entanto, só ocorre depois que os governos estadual e federal, por meio de seus órgãos ambientais, liberarem essa permissão.
Segundo o prefeito Duarte Eustáquio Gonçalves Júnior (PPS), a interrupção das atividades da Samarco deixou a economia do município fragmentada. “É crucial que se busque a diversificação econômica, já que 89% dos valores arrecadados são provenientes da mineração, atividade que vem sendo realizada há mais de 300 anos no município, desde o ciclo do ouro, e que dificilmente deixará de existir.” O prefeito reconhece que a diversificação econômica não acontecerá em curto ou médio prazo. “É algo que precisa ser feito, sim, mas que acontecerá de forma lenta.”
Duarte Júnior reconhece as falhas do município, evidenciadas pela tragédia, e diz que são todos responsáveis – a Samarco e os governos federal, estadual e municipal. Para medidas de emergência pós tragédia, foi constituído pelo governo federal, juntamente com os governos de Minas Gerais e Espírito Santo, e as três empresas envolvidas – Samarco, Vale e BHP Billiton –, um fundo de aproximadamente R$ 20 bilhões (valor que pode chegar a R$ 28 bilhões), que atende não apenas o município de Mariana, mas todas as cidades atingidas ao longo do Rio Doce até o Oceano Atlântico.
Na opinião do prefeito, apesar de necessário, o fundo não resolve o problema urgente da falta de arrecadação da cidade com a paralisação das atividades da Samarco. Os serviços essenciais da cidade só poderão ser mantidos pelas reservas em caixa do município até setembro. Sem autonomia para utilizar os recursos do fundo criado pelos governos e empresas, o município não tem a quem recorrer.
Na primeira semana de junho, o prefeito conseguiu uma audiência com o presidente interino Michel Temer. “De efetivo, até agora nada”, disse o prefeito sobre a reunião em Brasília. Ele tem por enquanto a garantia de que poderá contar com R$ 77 milhões (do fundo de R$ 20 bilhões) para investir, em dez anos, na diversificação econômica da cidade. O acordo diz que os municípios que dependem da mineração terão direito a um valor específico para esse fim. Entre as cidades atingidas pela lama da Samarco, ele diz que Mariana é a única que depende da mineração.
Duarte também pediu ao presidente interino que intercedesse pela volta da Samarco às operações, visto que a empresa teve sua licença para funcionamento suspensa pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), órgãos fiscalizadores do Governo Federal e do estado de Minas Gerais, respectivamente.
O dinheiro do fundo deverá ajudar a recuperar as nascentes, assim como o Rio Doce e o Gualaxo do Norte (seu afluente), diz Duarte Júnior. “Não adianta falar que antes da tragédia alguém fazia algo pelo Ribeirão do Carmo, Rio Doce, Gualaxo do Norte, porque não fazia. Minha cidade, por exemplo, joga esgoto na água todo dia. Todo dia a gente matava o rio. Mesmo que o Rio Doce estivesse na CTI, a Samarco acabou de desligar o aparelho”, completa o prefeito. Não só Mariana, mas também Ouro Preto e outras cidades da região despejam diariamente seu esgoto no rio. Com os recursos disponíveis, cerca de 40 cidades no curso do Rio Doce até o Espírito Santo terão sistema de tratamento de esgoto, incluindo Ouro Preto.
Duarte Júnior reivindica ainda uma mudança no valor da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) repassada ao município pela Samarco. Apesar de toda a exploração das riquezas minerais da cidade, apenas 1,6% da arrecadação líquida da mineradora vai para Mariana. Entretanto, segundo o prefeito, há uma medida provisória tramitando na Câmara dos Deputados para que esse valor seja revisto, aumentando para 4% do valor total bruto arrecadado pela mineradora.
De acordo com o prefeito, já se discute um local seguro para os rejeitos, caso a mineradora volte a operar – a mina Alegria. Trata-se de uma grande abertura no solo, o que dispensa a construção de barragens.
O prefeito fala que a reconstrução do principal subdistrito atingido pela tragédia - Bento Rodrigues - será uma referência nacional em sustentabilidade. Para tanto, as construções contarão com placas solares fotovoltaicas e calhas com sistema de captação de água pluvial; o calçamento será feito com blocos intertravados, evitando assim a impermeabilização do solo. “As pessoas vão passar num local onde aconteceu a maior tragédia do país, mas depois será um local reconstruído de uma forma totalmente autossustentável”, projeta.
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Entre sonhos soterrados: Dor, Impasse e Estagnação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU