09 Junho 2016
Professora titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), instituição onde se graduou e fez mestrado e doutorado, Leda Maria Paulani tem se destacado como economista heterodoxa, engajada na transformação do Brasil em algo “mais alvissareiro” do que um entreposto aduaneiro ou uma colônia exportadora de alimentos e minérios.
A entrevista é de Valter Pomar e Pedro Estevam da Rocha Pomar, publicada por Revista Esquerda Petista, março de 2016.
Em 2014 e 2015 ela foi alvo de retaliações de economistas neoliberais (aos quais ela prefere designar ortodoxos ou conservadores) ao denunciar o que chamou de “terrorismo econômico” praticado, com apoio da mídia, contra o governo Dilma Rousseff. Terrorismo esse que consistiu em pintar com as cores berrantes do caos um cenário econômico que apresentava problemas, mas estava longe do desastre anunciado por certos profetas, alguns dos quais haviam ocupado postos importantes na Fazenda durante o governo Lula, para consternação de Leda.
De qualquer modo, essa — nas suas palavras — “conflagração” entre de um lado o pensamento econômico ortodoxo, neoclássico, e de outro lado o pensamento heterodoxo não é novidade para ela. “Fui presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), ela está completando 20 anos agora nesse ano de 2016”. Em meados dos anos 1990, relata Leda, a SEP surge como resposta a “um forte rolo compressor” do pensamento ortodoxo: “Professores heterodoxos marxistas, todos críticos do pensamento neoclássico, fundaram essa sociedade em 1996. Fui diretora dela, vice-presidente e finalmente presidente por quatro anos. Tudo isso como parte daquilo que eu chamo de militância acadêmica: sou professora mas eu sempre sou militante acadêmica, vamos dizer assim”.
Na visão de Leda, em que pesem as importantes mudanças ocorridas durante os mandatos de Lula e Dilma, não basta fazer do Brasil um país “um pouco [mais] decente”. O fato, diz ela, é que não se tinha um projeto para o país. Aos poucos foi se introduzindo uma política social forte: dadas as condições de desigualdade social do país, quase uma revolução. “Isso afetou principalmente a cultura das elites, porque o governo do PT no meu entender não fez nenhuma grande reforma estrutural, não afetou absolutamente nada do ponto de vista estrutural”.
Assim, faz falta uma verdadeira política de industrialização e outras mudanças estruturais que permitam acabar com a miséria, reduzir a desigualdade social e redefinir a posição do país na divisão internacional do trabalho: “Nosso papel nos últimos anos tem sido produzir commodities e bens de baixo valor agregado — e cevar o rentismo internacional. Mas será que com isso nós vamos adiante?”
Outra posição contundente da professora: ela defende a estatização do sistema bancário, levando em conta o poder descomunal e cada vez mais concentrado dessas instituições no Brasil, poder que extrapola o (já de per si) impressionante capital que possuem: “Não acho que deva ter banco privado, porque moeda é ativo estratégico”.
Como economista, Leda Paulani atuou duas vezes na Prefeitura de São Paulo. Da primeira vez, na gestão de Marta Suplicy (então no PT), como assessora-chefe do gabinete de João Sayad quando ele foi secretário de Finanças. Mais recentemente, foi secretária de Planejamento, Orçamento e Gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) de janeiro de 2013 a fevereiro de 2015.
Eis a entrevista.
Como é que você vê os futuros possíveis do Brasil? Quais são as alternativas boas e as ruins?
Na atual conjuntura, responder a uma pergunta dessas é botar a cabeça na guilhotina, né? Ando muito pessimista. Os últimos acontecimentos revelam que as nossas esperanças de que a democracia tivesse se consolidado no Brasil, definitivamente, sem qualquer tipo de retrocesso, minguaram um pouco. O apreço pela democracia, por parte das elites, não é tão grande assim. Porque num ambiente democrático você sempre tem espaço para as forças progressistas. Agora, quando você tem arbítrio imperando, aí é força bruta, a gente já sabe o que acontece. Então estou muito pessimista com a situação, tomara que a gente consiga sair desse nó sem dar espaço para qualquer tipo de golpe ou de retrocesso nas instituições, no Estado de Direito, isso é a coisa fundamental.
Do ponto de vista econômico, tem que primeiro pensar na situação do capitalismo mundial, que a meu ver já há algum tempo está numa situação difícil, no sentido de que os recursos para a própria acumulação do capital estão sendo, na maior parte dos casos, direcionados para a acumulação financeira e o rentismo. Quer dizer: as possibilidades que o desenvolvimento capitalista tem, dentro dos seus próprios marcos, de melhorar a vida das populações em geral ficam completamente rifadas. Se não fosse o efeito China nos últimos quinze anos, a situação da economia mundial seria muito pior na realidade. Rosa Luxemburgo sempre falava que tinha que ter um motor externo para empurrar a acumulação, ela tinha alguma razão nisso. Era um grande espaço, um grande motor fora do capitalismo, de repente esse gigante entra e quase que faz um intermezzo meio keynesiano por força do Estado Chinês, dentro dessa evolução neoliberal e rentista e financista que vem desde o começo dos anos 1980.
A questão agora é que o efeito China parece que também está se esgotando. Estão mudando a política deles, estão voltados mais para o mercado interno. Nós nos beneficiamos muito aqui no Brasil, por exemplo, da febre exportadora da China. Quer dizer: a China tentando conquistar os mercados do mundo inteiro começou a importar commodities em larga escala, isso elevou os preços e a gente se beneficiou disso. É claro que para a nossa situação hoje, a China crescendo 6%, 7% [ao ano] parece um sonho, mas comparado aos 11%, 12%, 13%, 14% que cresceu ao longo de uma década e meia pelo menos é uma coisa que faz diferença. Então do ponto de vista da economia mundial a Europa está lá num nó com o euro, aquela coisa mal resolvida, “crônica da morte anunciada”, todo mundo sabia que isso ia acontecer quando você junta várias regiões com graus de desenvolvimento muito distintos “unimonetariamente”, mas sem um Estado [único]. Você tem uma moeda única que corta a possibilidade, os graus de liberdade de fazer política monetária e cambial desse país e ao mesmo tempo a dívida continua sendo individualizada: a dívida é da Grécia, da Alemanha, enfim: um nó que eu não sei como é que pode resolver. Mas o fato é que isso também corta a possibilidade de vir da Europa qualquer impulso mais favorável ao crescimento.
Os Estados Unidos estão retomando um pouco o crescimento, o emprego está crescendo, mas ali sempre tem a questão financeira: a quantidade de “bolhas”, aliás na China também, toda formação rentista sempre sofre desse mal, a permanente formação de “bolhas” e portanto sempre crises que podem acontecer, ficam assombrando o funcionamento normal da economia. Enfim, a economia mundial, que foi favorável ao nosso desenvolvimento, nos últimos anos não apresenta boas perspectivas. pelo menos até onde eu consigo enxergar. Eu já escrevi isso, não estou falando nada de novo: com todo respeito pelos ganhos sociais que as políticas dos governos Lula e Dilma conseguiram produzir, o fato é que não se tinha um projeto para o país. Na realidade o que foi feito, pura e simplesmente, foi pegar a coisa do jeito que ela estava andando, até por um certo medo de afrontar demais e correr riscos e tal, aquilo que já estava andando no país há muito tempo. E você aos poucos foi lá introduzindo uma política social forte, uma política social de peso que, dadas as condições de desigualdade que o país tem, foi quase uma revolução. Isso afetou principalmente a cultura das elites, porque o governo do PT no meu entender não fez nenhuma grande reforma estrutural, não afetou absolutamente nada do ponto de vista estrutural.
Você disse até que manteve os pressupostos neoliberais…
Exatamente, eu escrevi o Brasil Delivery por causa disso. Depois o Mantega mudou um pouco, mas não houve nenhuma mudança estrutural pesada. O que você teve foi essa política social forte: esse bônus macroeconômico internacional, que a gente teve por conta do efeito China, foi corretamente direcionado para melhorar a questão da desigualdade. Então você teve um espaço para fazer essas políticas, dada essa conjuntura internacional benfazeja, vamos dizer assim. Teve esse espaço e fez essa política. Isso provocou uma mudança na desigualdade que nem foi tão grande assim, no sentido de que ela foi muito rápida, mas foi numa parcela da renda só, foi principalmente uma mudança na desigualdade de salários, por conta do aumento do salário mínimo, da retomada do emprego e do aumento de 17% a 20% do salário médio, em termos reais. E as políticas de renda compensatória, Bolsa Família etc, que também entram nas contas nacionais, dentro das rendas do trabalho.
Dentro basicamente desse bloco teve uma remexida e reduziu o Gini [índice de concentração de renda], porque ele é baseado na PNAD [Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio] e capta só 10% de outros tipos de renda que não são rendas do trabalho — ele não capta aquilo que entra no que a gente chama de excedente operacional bruto: juro, lucro, aluguel, dividendo, tudo isso a PNAD pega muito pouco, a estimativa é de que não pegue mais do que 10% dessas rendas. O Gini é baseado na PNAD, então a mudança no índice de Gini fundamentalmente decorre dessas políticas que reduziram a desigualdade no âmbito das rendas do trabalho. Mas isso bastou, porque dada a situação que vinha desde há muito… O “Milagre Econômico” [no início da década de 1970, durante a Ditadura Militar] teve bons resultados do ponto de vista do emprego, mas concentrou a renda absurdamente. Então a gente já vinha nessa toada de piorar a distribuição de renda há décadas, aí vem um governo, vêm dois ou três mandatos [presidenciais] e fazem uma política forte, um conjunto de políticas públicas que acabam alterando essa distribuição.
Agora, por que essa perseguição toda? Por que esse desespero de tirar o PT do governo de qualquer jeito, usando o instrumento que for, nem que seja para acabar com a democracia mais uma vez? Minha leitura é a seguinte: essa mudança na distribuição de renda — não concordo com o termo “nova classe média”, mas sabemos do que estamos falando: a mudança de 30 milhões, 40 milhões de pessoas das classes D e E para a classe C, pensando só em estratos — mesmo isso provocou uma série de mudanças na forma de vida das pessoas e na relação entre os de baixo e os de cima, que o sistema não aceita, pura e simplesmente é isto. O cara que é um executivo ou que é um pequeno empresário ou que é da elite política nunca vai aceitar, sendo brasileiro vivendo no Brasil, nunca aceitará que o porteiro do prédio dele ande no avião do lado dele. Não aceita, não tem jeito, entendeu?
Porque a nossa elite é senhorial, não é uma elite moderna, assentada nos valores da meritocracia, do self made man, da disposição de investir, de apostar. Ela é uma elite senhorial, a gente se modernizou dentro do atraso, né? Celso Furtado já dizia isso, é uma parte importante do argumento do Celso Furtado de porquê no Brasil as elites sempre puderam fazer desse país o que quiseram, sem serem obrigadas, como foram as elites dos países do capitalismo originário, a carregar a população junto nesse movimento. A elite brasileira é senhorial e não aceita isso, não quer mais saber dessa história. Desde as senhoras do Piauí que ficam enraivecidas porque o cara não quer mais trabalhar de faxineiro, porque ele tem Bolsa Família — você imagina o quanto ele ganhava, não?, para preferir o Bolsa Família — até o pessoal reclamando dos aeroportos. Pode ser exagero da minha parte, mas por tudo que eu li dos grandes clássicos que pensaram o Brasil, do que eu conheço de literatura sobre isso, alguma parte de verdade nessa interpretação deve ter, porque de outro lado não faz muito sentido essa gana contra o PT e o Lula.
Porque de fato os maiores interesses não foram afetados. A Dilma enfrentou um pouco na hora em que baixou radicalmente os juros, enfrentou um pouco o rentismo, o poder dos mercados financeiros, por isso ela é odiada muito mais do que o Lula no mercado financeiro: ela usou os bancos públicos para reduzir os spreads bancários. Tirou o [Henrique] Meirelles do Banco Central, deu uma pancada nos juros… E aí também rapidinho reverteu, retomou o juro alto e acabou. Mas fora isso, que grandes interesses de grandes capitais, ou do sistema financeiro, ou das finanças de modo geral foram afetados pelos governos do Lula e da Dilma? Nada, então por que isso?
O Lula aliás se vangloriava disso, porque ele tem aquele estilo conciliador dele, se vangloriava — com uma certa razão até — de estar conseguindo fazer uma política de ascensão dos de baixo com, digamos, de uma certa forma a complacência ou a concordância dos de cima, porque ele não estava enfrentando e mexendo muito diretamente com os interesses dessa turma. Então, que diabo, por que essa coisa agora? Minha explicação é essa que eu dei a vocês. Então esse ciclo, essa etapa da vida brasileira, deu o que tinha que dar, entendeu?
Foi ótimo. Eu sempre discuto muito com o André Singer, ele sempre achava que as mudanças eram estruturais e eu dizia que não. De fato, você não mudou estruturalmente a economia, mas ele tem um argumento com que eu tendo a concordar: você tem um ganho nessa história de qualquer forma, despertou a consciência dos de baixo. Você mostrou que é possível que eles ascendam, que os filhos deles estudem. Não é assim do nada, agora, que você vai dizer: “Olha, foi engano, desculpe aí, vamos voltar tudo para trás”. Não é assim, então você tem um ganho aí de orgulho próprio dessas camadas, porque a gente sabe que — o Hegel já ensinou isso — se tem senhores, é porque tem escravos. Você tem uma elite senhorial, mas, até porque isso tudo tem razões históricas para explicar, você tem também uma camada dos de baixo muito servil — e esse período aí, dessas mudanças todas que aconteceram, foi importante para despertar essa consciência, tornar menos servis as pessoas.
Nesse contexto, qual foi o grande erro que se cometeu? A gente não aproveitou uma fase boa da história do capitalismo mundial para mudar a nossa forma de inserção na divisão internacional do trabalho, como os países do Sudeste Asiático fizeram. Não estou dizendo para fazer o modelo exportador deles. Mas você tinha que ter um projeto e não tocar a coisa como foi tocada simplesmente. Hoje você corre o risco muito grande de estar no mesmo lugar onde estava em 2002 e perder o que se conquistou com esses avanços sociais.
Havendo condição política teria que pensar um projeto para o Brasil em que você conseguisse estruturalmente melhorar a situação da desigualdade, da pobreza etc. Eu li o documento [“O futuro está na retomada das mudanças”] que você me mandou, não discordo de nada do que está lá, eu concordo. A única coisa que eu tenho uma certa discordância, mas depois eu volto a falar no global, é a questão da utilização das reservas. O povo mais maluco acha que tem que usar, queimar todas as reservas para impedir a desvalorização do câmbio, o que seria uma sandice arrematada,eventualmente se você tiver uma boa recuperação das contas externas pelo menos com um equilíbrio nas contas-correntes, pelo menos isso, tudo bem: você pode dizer: “Ah, não preciso de 400 [bilhões de dólares]”. Depende das contas. Tem gente que faz uma conta que diz o seguinte: para a situação do Brasil 400 bilhões não é muito não, 350 bilhões, você teria que ter uns 550 bilhões de dólares e tal. Outros já dizem que é um absurdo porque você está carregando, custa caro porque você tem que emitir dívida, então abaixa a taxa de juros que fica mais barato. A gente só não está num mundo ainda pior porque não tem o menor risco de default externo do Brasil, [é] zero de risco. As próprias agências sabem disso, os especialistas internacionais sabem disso também.
O que você tem é um crescimento da dívida interna, nossa dívida interna até onde se sabe é paga em reais e não em dólares. Mesmo esse crescimento é plenamente justificável pelo que aconteceu. Agora, risco de default, de moratória, como a gente passou a vida inteira, não temos. E não temos porque a gente tem essas reservas, essa política de acumular reservas foi corretíssima, é a única forma de você não ficar refém. Imagine se ao invés de 380 [bilhões de dólares de reserva] a gente tivesse 38 [bilhões], entendeu? Esse país já teria virado do avesso, porque aí os próprios investidores externos iriam chegar aqui e levar os 38 [bilhões] embora. Você fica completamente vulnerável aos trancos que essa economia mundial tem, porque ela está num regime de acumulação financeira predominantemente.
O PT resistiu muito a aprovar esse documento. Quer dizer: um documento parecido com esse foi proposto em maio de 2015 e rechaçado por pouco mais da metade do Congresso do partido. Aí passou-se menos de um ano e o Diretório Nacional, por unanimidade, aprovou um documento que contém mais ou menos aquilo que na minha opinião deveria ter sido dito lá atrás. Mas, curiosamente, o documento não tem uma referência clara ao problema da industrialização…
Isso era onde eu ia chegar. Eu não discordo de nada disso aqui, a não ser essa questão das reservas, a gente tem que ter cuidado para não aumentar nossa vulnerabilidade externa porque é isso que ainda torna nossa situação menos complicada do que, por exemplo, a situação argentina. Mas acho que não é suficiente, só isso. É evidente que você tem que tributar dividendos, no mundo inteiro se faz isso. É evidente que você tem que mexer nas alíquotas do Imposto de Renda, tem que aumentar a participação dos impostos diretos e dentro dos impostos diretos aumentar a participação dos impostos sobre patrimônio. Tudo isso tem que ser feito, e se for feito conjuntamente já dá uma mudança muito grande em relação ao que se tem hoje. Passar nem que seja só isso já vai ser uma guerra política grande. Mas por que eu acho que não é suficiente? Porque você teve o lado bom aí do que eu chamei de bônus macroeconômico internacional, mas do outro lado você teve um lado ruim disso. Primeiro, você teve um processo muito violento de apreciação do câmbio, por conta da facilidade com que os dólares estavam chegando aqui; e segundo, relacionado com isso também, a gente acabou voltando a uma situação pré-anos 1950, ou seja: exportadores basicamente de commodities e de bens de baixo valor agregado: produtos agrícolas, minérios etc. Evidente que tem desenvolvimento tecnológico nesses ramos, ninguém está dizendo que se exporta minério de ferro hoje como se exportava há 50 anos, você tem algum ganho por aumento de produtividade dos trabalhadores que implica aumento dos salários, não é disso que a gente está falando.
Agora, qual o papel do Brasil na divisão internacional do trabalho? Dois papéis: é exportador de commodities e bens de baixo valor agregado fundamentalmente. Da indústria praticamente sobrou nada, com as exceções de sempre. Embraer é a exceção que confirma a regra e a gente é pagador de renda, e é isso. É só você pegar a balança de rendas do balanço de pagamento e ver a evolução dela nos vinte anos. E por que isso? Porque não é uma redução pontual do câmbio, é um processo permanente de apreciação do câmbio com taxa de juros sempre muito elevada, diferencial de taxa de juros interno/externo muito alto, com a taxa de juros interna muito mais alta do que a média das taxas de juros dos demais países, principalmente dos países desenvolvidos. Isso é que nem dois mais dois, igual a quatro. O resultado é um só: a sua balança de rendas vai ficar cada vez mais deficitária, porque não é só renda de aplicações financeiras do capital de curto prazo que vem para cá, não é só isso. É que você estimula o envio de lucros, você estimula a tomada de empréstimos do exterior e o posterior pagamento de juros estimula o capital de curto prazo, enfim um conjunto de desdobramentos e consequências dessa combinação que faz com — que mesmo que a sua balança comercial seja maravilhosa — você tenha sempre um déficit estrutural na sua balança de transações correntes. Então de alguma forma nosso papel nos últimos anos tem sido produzir commodities e bens de baixo valor agregado e cevar o rentismo internacional. Mas será que com isso nós vamos adiante?
Você teria que ter uma mudança estrutural. “Bem, mas será que tem condição de baixar os juros? O dólar ainda é a moeda internacional”. Aí é política externa, a política externa foi corretíssima, todo o esforço do Brasil na coisa dos Brics. Esse banco ainda tem que nascer, porque aí você reduz a dependência do dinheiro mundial oficial, que é o dólar americano, você constrói uma rede de segurança dentro dos países emergentes, ou, que seja, na América Latina. Esse tipo de iniciativa é fundamental porque aí sim você tem condição de fazer uma política monetária mais autônoma. Porque a grande questão é que desde a estabilização monetária, desde o Plano Real, de fato a gente conseguiu estabilizar a inflação, estabilizar a economia monetariamente, mas nunca deixamos de ser reféns da necessidade do equilíbrio da contas externas, mesmo com os 380 bilhões de dólares de reserva.
Por isso tem gente que diz: “Ó, melhor não mexer, é bom até aumentar um pouco” [as reservas], quer dizer: qual é a forma de sair da armadilha e ter de fato muito mais autonomia para fazer política monetária, para fazer política cambial, do que você tem hoje, sem colocar a economia do país em risco de permanentes solavancos para cima e para baixo? É você ir construindo outras redes e outras coisas. Nesse sentido os governos do PT foram bem-sucedidos, jogaram na direção correta, acho que foi um pouco até de estratégia do Lula de fazer uma política econômica mais padrão, de acordo com os interesses, mas na política externa avançar. Ele fez um pouco esse jogo estratégico, pode ser uma interpretação não verdadeira, mas me parece isso, de qualquer maneira acho que se caminhou na direção correta aí, agora logicamente você teria que aprofundar muito isso. Politicamente parece que está passando um pouco o momento das esquerdas, pelo menos na America Latina você tem aí Argentina, Bolívia, Brasil nessa situação. O que falta aqui é um bom programa para, ceteris paribus — quer dizer, não mexendo na coisa tal como ela está —melhorar muito, mas apontar para um horizonte de fato mais alvissareiro do nosso ponto de vista progressista que é acabar com a miséria, reduzir a desigualdade.
Fazer esse país um pouco decente não é suficiente. Você teria que ter um planejamento de recuperar… por que a indústria é importante? Não é da velha tese da deterioração dos termos de troca da Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, órgão das Nações Unidas] que se trata, tenho até uma orientanda fazendo tese exatamente nisso que eu vou falar agora: é importante a indústria por quê? Porque é a indústria que “puxa” tecnologicamente, o desenvolvimento tecnológico vem principalmente a partir da indústria. Vem dos serviços também, claro, mas os serviços, apesar de serem muito tecnologizados, geram na base uma multidão de empregos de baixíssima renda: vide os telemarketings da vida, os motofretistas etc. A indústria é aquela que é capaz de fazer crescer a produtividade, de gerar empregos estruturalmente mais decentes, então a indústria é importante para isso. Agora, como é que você vai desenvolver a indústria, nem que seja voltada exclusivamente para o mercado interno?
Nós temos mercado interno para isso, é essa a questão. Celso Furtado morreu desgostoso: “Por que diabos esse país, que tem um mercado interno potencial desse tamanho, cheio de riquezas naturais, tem tudo para ser um país capitalista e desenvolvido… [e não consegue]”? Celso Furtado não era um marxista revolucionário, mas um cidadão republicano inconformado com esse resultado pífio que o país tinha. A indústria é importante nem que seja só para o mercado interno e que preserve esse mercado interno para a geração de empregos. O que a gente fez com a política cambial — juro alto, câmbio apreciado ao longo de vinte anos — foi gerar milhões de empregos fora do nosso país, porque você vai matando todas as possibilidades de espaço para a produção nacional. Então você escolhe alguns setores: petróleo, que seja: é aqui que nós vamos focar. Tem que ter política industrial, não desoneração generalizada, que é só jogar dinheiro no lixo, é a pior viagem.
A Dilma cometeu um erro crasso de política econômica: ela quis enfrentar os interesses financeiros, reduziu os juros, mas aí fez uma política fiscal austera para combinar, dizer: “Olha, eu reduzo o juro mas vou segurar no fiscal”. E aí junto com isso fez as desonerações. Na realidade ela deu prosseguimento a uma política que foi bem-sucedida logo no pós-crise. Mas o que o Lula fez foi diferente do que a Dilma fez depois, porque o Lula pegou um imposto que afeta preço diretamente, IPI e imposto de importação, mas principalmente IPI. Daí como você mexe no preço diretamente, é imediato você passar o benefício para o consumidor. Agora, desonerar folha, quem disse que os caras ou vão passar para o consumidor ou vão investir? Enfiaram no bolso, não tenho a menor dúvida. Você fez uma política para poder acomodar a redução dos juros junto com o ajuste fiscal. Então você trocou uma política de investimento público que era o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] etc. por apostar no investimento privado e deu com os burros n’água, totalmente. Isso não é política industrial.
Você teve algumas iniciativas, por exemplo com estaleiros, com alguns setores, uma política mais focada em preservar esses espaços, mas nada muito sistêmico, nada muito articulado. Sem isso, só melhora mas não resolve estruturalmente, não aponta para uma resolução estrutural. As condições para isso são boas hoje, pensando-se na economia mundial? Não, infelizmente não.
Uma pergunta complementar a essa: você acha possível que uma política industrial desse tipo que você defende, mantido o sistema financeiro como ele é hoje, fundamentalmente um oligopólio privado… tem alguma coisa que deva ser feita nessa área? O que pode ser feito nesse terreno do setor financeiro? Como é que você redesenha o setor financeiro para ele contribuir para esse tipo de desenvolvimento industrial com distribuição de renda — o desenho que você apontou?
Tem uma certa diferença se a gente pensar no que aconteceu na economia mundial, inclusive nos países mais desenvolvidos, porque é preciso fazer uma distinção entre sistema financeiro e sistema bancário: são duas coisas diferentes. No resto do mundo a última fase da financeirização a gente chama de “finanças diretas”. São essas finanças que justamente prescindem de sistema bancário: a grande empresa [que] tem um pouco mais de estrutura e precisa de dinheiro não vai bater lá na porta do Itaú e pedir, ela faz um IPO [Initial Public Offering, ou Oferta Pública Inicial de ações] vai direto na fonte. Esse tipo de experiência se multiplicou, se difundiu muito nos últimos trinta anos mundo afora. É isso que se chama de “finanças diretas”, porque não tem um intermediário para dizer: “Bem, você quer investir, não tem a grana; tem gente que tem grana e não quer investir, quer aplicar e só ser rentista; está bem, vou fazer esse cruzamento”. É isso que o banco faz, deveria fazer: ele pega as poupanças de todo mundo e empresta. Mas acontece que os bancos brasileiros não emprestam…
Por um módico valor por esse serviço…
Exatamente, isso fez com que no mundo todo, dentro do conjunto das várias instituições que compõem o sistema financeiro, os bancos perdessem importância relativa. Não que deixaram de ter importância, mas perderam importância relativa. A outra transformação que houve é que antes você tinha uma espécie de divisão do trabalho. Os bancos eram bancos comerciais; os bancos de investimento faziam os empréstimos de longo prazo; as corretoras, as seguradoras… Hoje você tem, no plano internacional, aquilo que a gente chama de “supermercado financeiro”, o que é um terror, porque você tem processos de multiplicação de moedas, de créditos e de ativos que acabam escapando, porque você bagunça tudo numa única instituição. Os bancos, apesar de perderem a importância relativa, de alguma maneira entraram também nessa história das “finanças diretas”.
O caso do Brasil é um pouco diferente. No Brasil o sistema bancário continua sendo muito importante, e a importância dele se deve a dois fatores. Um é justamente porque ele foi se concentrando: hoje você tem cinco, seis bancos de varejo. Você vai fazer um depósito pela Internet, põe lá a lupinha, abrem seis ou sete: Santander, Banco do Brasil, acabou. É absolutamente concentrado, o que faz dessas instituições grandes instituições — e muito poderosas pela quantidade de capital que elas acumulam e que, vamos dizer assim, pilotam. Fazem a gestão dessa imensa quantidade de capital e são entidades também muito importantes junto ao Estado, por conta da necessidade de financiamento da dívida pública.
O segundo fator é justamente o fato de que, e isso também se deve aos governos do PT, a gente tinha a enorme maioria da população não bancarizada, e quando você bancariza a população — o que foi feito inclusive via Bolsa Família, por todos os meios: crédito consignado, acesso ao crédito para a população de baixa renda, tudo isso você bancarizou — no sentido tradicional da atuação dos bancos, você fortalece os bancos mais uma vez. Então você tem um poder muito grande dessas instituições que a meu ver deveriam ser todas estatais. Não acho que deva ter banco privado, porque moeda é um ativo estratégico e não tem como você separar a moeda privada: moeda é do Estado. Ela é um ativo nos portfólios de riqueza privada, mas não tem como você negar o caráter público da moeda, porque quem emite a moeda é um governo, é o Estado, não tem jeito. Trata-se de uma coisa estratégica. O Polanyi já dizia que o mal do capitalismo era ter transformado em mercadoria três coisas que jamais deveriam sê-lo: a terra, o trabalho e o dinheiro.
Já que [a moeda] se transformou em mercadoria, então que seja estatal o gestor dessa mercadoria tão estratégica. Você teria, para fazer a coisa como se deve no meu entender, que estatizar o sistema bancário, seria a primeira providência. Você fala: “Essa aí é louca, imagine, você nunca vai conseguir fazer isso”. Mas você pode regular muito mais o sistema bancário do que ele é. Não entendo por exemplo porque é que, ao longo desse período todinho, não se tomaram as providências para reduzir o spread bancário brasileiro que é uma vergonha total. Pode falar com japonês, italiano, espanhol, alemão, português: ficam todos de boca aberta quando você fala a taxa do mês, eles acham que é do ano sempre: “Ah, não é tão alta”, é por mês!, “Como assim por mês?” Cheque especial é 9% ao mês, cartão de crédito para baixa renda, C&A, Íbis, é 13%, 14% por mês.
Banco tem um espaço grande para a regulação estatal, por conta disso, porque ele também emite moeda, banco é produtor de moeda assim como o Estado. O banco produz a moeda escritural. Tem que ter uma forte presença do Estado na sua atividade, regulando, porque que nós estamos nessa situação ridícula. Você teria que fazer isso, a Dilma fez isso um pouco mas fez de forma indireta, obrigou os bancos públicos — Banco do Brasil, Caixa Econômica — a reduzirem o spread e aí claro eles [os bancos privados] vão perder mercado, então eles foram atrás de reduzir [também]. Os bancos no Brasil são muito folgados, vou falar de uma forma muito coloquial: são muito folgados, não é possível. As tarifas que são cobradas são das mais altas do mundo. Teria que ter algum tipo de política, se não dá para estatizar pelo menos não concentre tanto.
Mas Leda, o dono do Bradesco não seria o ministro da Fazenda? Não foi ele que nomeou o [ministro Joaquim] Levy?
Exatamente, mas é isso que está completamente errado, porque dois ou três grupos da nossa sociedade têm um poder desse tamanho, é absolutamente antidemocrático isso. E por que eles têm esse poder? Por que, pergunto eu, mesmo sendo uma instituição privada, com o tamanho do capital que eles têm, se fosse uma indústria produtora de navios teria esse poder? Não. Eles têm esse poder porque são bancos, porque mexem com ativos estratégicos.
Uma situação análoga ao oligopólio da mídia, o poder excede o tamanho do capital.
O poder vai muito além do tamanho do capital, é lógico que no capitalismo as grandes corporações são poderosas e como sempre há a promiscuidade entre Estado e mercado, Estado e setor privado. Os grandes blocos de capital têm poder. Agora, poder que tem banco extrapola isso; poder que tem mídia extrapola isso; e no Brasil não sei por que a gente tem que ter essa reação, um governo progressista… Eu briguei, fiquei muito brava muitas vezes com o governo Lula: “Pô, mas esse cara tem que enfrentar essas coisas, porque se não aproveitar esse momento agora para isso…”
Nessa linha, a gente tinha preparado uma pergunta para você assim: se fosse convidada para ser ministra da Fazenda e tivesse carta branca, quais seriam suas três primeiras ações? Você tem carta branca e tem uma situação política favorável.
Primeira coisa: evidentemente, reduzir a taxa de juros de imediato. Segunda coisa: tomava as providências para reduzir o poder dos bancos e todas essas coisas, spread etc. para você de fato democratizar o crédito, porque senão não democratiza. E terceira coisa: eu faria controle de capitais, controle do fluxo internacional de capitais.
Como é que funcionaria isso? Por que você acha importante controle de capitais, tão importante que você cite entre as três medidas? Porque assim como o uso das reservas, muita gente não concorda com o tema do controle de capitais. Que você acha disso?
A gente vive num regime de câmbio flutuante desde janeiro de 1999, depois da crise cambial no governo Fernando Henrique. Quem determina o preço da divisa é o mercado, não é o Estado. No regime de câmbio fixo, que era nosso regime anterior, sempre foi historicamente, o Estado define a taxa de câmbio. Claro que ele tem que ter bala na agulha para bancar a taxa de câmbio em momentos mais periclitantes, coisa que nós nem sempre tivemos, e tivemos várias crises cambiais como em janeiro de 1999. O regime de câmbio flutuante é melhor no sentido de que você corre menos risco de solavancos, de crises etc. Porém, de outro lado, você perde grau de liberdade para fazer política cambial, porque em princípio você não faz, em princípio quem faz é o mercado. Só que a gente sabe também que os regimes cambiais nunca existem de modo puro em todo lugar.
Na China, por exemplo, o regime de câmbio fixo funciona com bandas, então dentro dessas bandas o mercado define. Mas o definidor de última instância, vamos dizer assim, é o Estado: se extrapolar aquilo lá o Estado vem e… então você tem um espaço para o mercado mesmo dentro de um regime de câmbio fixo. A mesma coisa, invertida, tem num regime de câmbio flutuante: a gente sabe que o mercado é que define o preço, mas o Estado tem vários mecanismos para intervir e tentar puxar esse preço para lá ou para cá, de acordo com a necessidade da política econômica no momento. Quando você está num regime de câmbio flutuante, apesar desse poder do Estado muitas vezes, dependendo da conjuntura, o Estado não consegue — mesmo gastando dinheiro, mesmo fazendo fortes intervenções — levar o preço para onde ele julga mais adequado, porque às vezes você tem a chamada abertura financeira, que produz o que se chama de globalização financeira: essa interconexão de todos os mercados. Mas se deve fundamentalmente ao fato de que os mercados todos são abertos. O Brasil por exemplo é uma das economias mais abertas do mundo, do ponto de vista financeiro: as facilidades com que os capitais entram e saem do país é muito grande. Alguns países têm controles de capital mais fortes na América Latina, por exemplo o Chile tem experiências de controle de capital mais robustas. Aqui o Mantega tentou fazer alguma coisa via Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), aumentou bem o IOF, mas uma coisa tímida ainda em relação ao que poderia ser feito.
Tem muito efeito manada numa economia financeirizada, e esse efeito manada é mundial, vide os desdobramentos todos da crise de 2008. Um país como o Brasil não tem moeda forte — significa que a nossa moeda não é desejada como ativo por outros residentes de outros países, só é desejada como ativo por brasileiros residentes do Brasil, é a situação inversa do dólar americano. Por que eles podem ter décadas de déficit, déficit fiscal e déficit comercial? Porque o dólar é um objeto de desejo da riqueza do mundo todo, então eles têm um espaço para emitir dólar que é incomensurável. A gente não tem moeda forte e fica muito sujeito a essas oscilações, nesse mundo de globalização financeira, de abertura financeira, tendo o regime de câmbio flutuante.
No caso de países como o Brasil, fundamentalmente há processos de apreciação cíclica do câmbio que matam a possibilidade de a gente fazer política industrial, de ter qualquer projeto de país mais estruturado. Se não resolver isso você fica refém desse negócio, então tendo controle de capitais você consegue fazer com que os movimentos na chamada conta capital e financeira de pagamentos, que são movimentos com estoques de ativos, com estoques de riqueza, sejam amenizados. Todo mundo vem para o Brasil, porque o Brasil na conjuntura da crise asiática tinha uma situação mais estável, uma taxa de juros gigante, então vem todo mundo para cá, entra um monte de dólares, a moeda aprecia, aprecia, aprecia, não tem muito o que fazer. Pode comprar: o governo entra comprando, faz reserva, foi o que o governo fez, ainda bem que fez, melhorou um pouco. Mas é absolutamente insuficiente para mudar a tendência estrutural desse treco — e você tendo o controle de capitais, não. O cara sabe que se entrar aqui ele tem que ficar um ano, ou vai pagar um imposto “x” que vai aumentar com a expectativa de tempo que ele vai ficar aqui. É como se, apesar de ter um regime de câmbio flutuante, você resgatasse graus maiores de liberdade para mexer com o câmbio.
Se eu entendi, para você esse controle de capitais é uma espécie de pressuposto para ter uma política de industrialização…
Exatamente, sem isso acho complicado nesse mundo em que a gente vive.
Recentemente você deu uma declaração acusando a oposição de fazer terrorismo econômico. Eu queria vincular isso a uma outra questão, que é a impressão que a gente tem de que o mundo dos economistas de esquerda está numa imensa defensiva, então as poucas vozes que se colocam no debate são vítimas de bulling. Como é que está o pensamento econômico de esquerda, especialmente no Brasil? Como é que você encara isso?
Acho o pensamento econômico de esquerda no Brasil muito competente e com muita condição de evoluir, a própria sobrevivência da SEP durante vinte anos mostra isso. O que anda muito ruim e vem piorando cada vez mais é a questão da conflagração entre o pensamento conservador ortodoxo e o pensamento não ortodoxo. Eu com trinta, quarenta anos de profissão, não de academia mas de profissão de economista, nunca vi a situação tão ruim como está hoje. A absoluta falta de respeito intelectual é evidente. Para nós, economistas, foram vários “socos no estômago” quando Lula se elegeu presidente, vários, um atrás do outro: as pessoas que ele colocou no Ministério da Fazenda, a política que fez, deram um gás, deram uma satisfação para essa turma [conservadora, ortodoxa] de tripudiar em cima de todo mundo que sempre falou contra tudo que eles fizeram.
O próprio Alexandre Schwartsman, que é o personagem do último capítulo dessa história, foi do Banco Central do Lula, né? Quer dizer: eles dominaram a Fazenda, a Secretaria do Tesouro por anos e anos. Tem um professor da Unicamp, Guilherme Mello, que diz que “o caseiro mudou a história do Brasil”, porque a história do caseiro tirou o [ministro Antonio] Palocci e caindo o Palocci essa turma perdeu força. Mas essa guerra entre ortodoxia e heterodoxia nunca deixou de existir dentro do governo, essa é a minha impressão. Nunca estive no governo federal, apesar de ter sido convidada várias vezes. Fui convidada para ser presidente do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] mas recusei, fui convidada pelo Mangabeira [Unger, então ministro da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo], antes de ele convidar o Marcio Pochmann — e o Marcio Pochmann aceitou, ainda bem. Nunca aceitei cargo no governo federal porque tinha escrito um livro inteiro contra, [como] vou aceitar o cargo? Não faço essas coisas, então fui trabalhar com o Fernando [Haddad, prefeito de São Paulo] que é meu amigo do peito de trinta anos, era diferente, ele me pediu.
Tenho muitos ex-orientandos, gente que virou gestor da carreira de Políticas Públicas, gente que tem cargo de confiança. Tenho muitos amigos, muita gente em quem eu confio que está no governo e confirmam um pouco isso. A guerra entre ortodoxia e heterodoxia nunca deixou de estar presente dentro do governo e os ortodoxos ganharam muita força logo depois no início do governo Lula, porque quando se pensava que eles iam perder espaço eles ganharam um puta espaço: aquela turma que a bem dizer veio do Fernando Henrique, mudaram alguns nomes, mas é o pessoal que é a mesma tribo financista, ortodoxa, retrógrada. É esse bloco, é essa turma. Depois a coisa foi mudando, o Palocci caiu, veio o Mantega, Mantega foi mudando. O último bastião que caiu foi o Henrique Meirelles saindo do Banco Central.
E aí a grande tragédia para o nosso pensamento econômico de esquerda é que de fato foram cometidos erros na política econômica da Dilma, que eu considero que foi uma tentativa errada de fazer uma política menos ortodoxa e mais voltada para preservar o mercado interno, a industrialização. Para voltar um pouco à questão do terrorismo econômico: junto com tudo isso foram se combinando elementos no seguinte sentido: primeiro, a política econômica começou a sair dos parâmetros que eles julgavam e sempre julgaram corretos; segundo, a presidenta Dilma não é muito hábil na sua capacidade de fazer articulações e ela foi vista por uma boa parte do empresariado como absurdamente intervencionista por toda aquela coisa da concessão dos portos, da política de energia, uma série de itens que fizeram com que ela fosse vista como muito intervencionista, diferentemente do que o Lula era visto.
Essa má vontade foi num crescendo contra a presidenta e os resultados efetivos da economia não foram tão bons quanto se esperava, e demoraram a aparecer. Isso fez com que, quando chegou a época da eleição, em face de digamos um overshooting de negatividade, para acabar com a história do PT no governo federal você faz realmente um terrorismo econômico, você piora muito a situação, faz um escândalo em cima dos 0,6% do PIB de resultado nominal negativo, um escândalo que não encontra base nenhuma quando você faz comparações internacionais; faz um escândalo com o crescimento da dívida pública. Quer dizer: se não é para o Estado ter capacidade de fazer política anticíclica, então vamos deixar que o mercado tome conta de tudo, se o Estado é para ser pró-cíclico vamos para casa, está certo?
Claro que se você tem uma conjuntura internacional de crise, você tem uma piora das expectativas, você tende a ter uma piora do investimento, do próprio consumo etc. o Estado tem que agir na contramão para contrabalancear isso, para não afetar demais o emprego, para não afetar demais o salário real etc. e fazer isso significa necessariamente elevar a relação Dívida/PIB [Produto Interno Bruto], não tem jeito, piorar o resultado nominal e o resultado primário. Isso aí não tem jeito, é assim mesmo, mas tem que estar claro: as pessoas têm que saber que esse é um preço a pagar, que depois lá na frente você reverte quando melhorar a situação.
Eles pegaram essas coisas que não eram nenhum descalabro — a economia não estava à beira do precipício. Eles fizeram a mesma coisa em 2002, tinha até mais razão fazer em 2002 porque nós tínhamos 40 bilhões de dólares divisados e hoje nós temos 400 bilhões de dólares. Mas fizeram terrorismo puro, puro terrorismo econômico, com a complacência da mídia evidentemente.
Mais do que complacência: a mídia foi o vetor disso, foi o grande veículo impulsionador desse clima, desse ambiente de desastre…
Isso tinha um objetivo maior que era impedir a Dilma de ganhar. Não sendo possível, que ela ganhando fizesse a política que eles queriam. Era absolutamente fundamental fazer esse terrorismo e deu certo, certíssimo aliás. É evidente que a economia piorou uma barbaridade no ano de 2015, mas quem não sabia disso? O seu Levy não sabia? Os meus orientandos que estão lá em cima [no governo] dizem que ele ficou muito espantado com a queda da arrecadação. “É, meu amigo?” Poxa, não estou espantada não, agora lógico que esse recuo da economia atingiu uma dimensão tal que hoje você tem um circulo vicioso, em que a crise econômica piora a crise política, a crise politica piora a crise econômica que piora mais a crise política, porque o tamanho da queda espantou todos nós. Espantou a queda dos níveis de investimento e a tendência é que — em não se resolvendo esse embrulho político — a crise se aprofundando com um horizonte absolutamente nublado na frente o cara não faz é nada, ele cruza os braços, entendeu?
Do ponto de vista do pensamento, que haja essa situação de defensiva que você fala eu compreendo. Mas do ponto de vista das ideias você acha que o pensamento progressista está a altura ou tem zonas de sombra, questões não resolvidas? Por exemplo: a gente está diante do desafio de formular uma nova leitura para o país?
Sim, sim com certeza, agora eu entendi o seu ponto. Quando eu digo que o pensamento heterodoxo é muito bom é que você tem muita gente competente, muito bem informada, com muito acesso aos dados e que tem o que dizer. Agora, para falar um pouco das correntes desenvolvimentistas você tem realmente posições distintas, que passam pela importância maior ou menor que se dá à questão da industrialização e pela importância maior ou menor que se dá à necessidade de você utilizar e fomentar o mercado interno de massas no Brasil, esses são os pontos da discórdia.
Por exemplo: eu acho que não é preciso que seja uma coisa contra a outra. Você tem que fazer as duas coisas. Se “pegar” os chamados novos desenvolvimentistas, que é o pessoal do Bresser [Pereira], basicamente a turma do Bresser que pensa dessa forma… o Bresser tem uma teoria da apreciação cíclica do câmbio, para eles o grande pecado de todos esses governos, desde o governo Fernando Henrique até agora, foi ter mantido essa dupla juro alto e câmbio apreciado, porque isso matou a indústria, não só porque matou os espaços de mercado externo que havia sido conquistados nos anos 1970, 1980, 1990 como matou também o mercado interno para essas empresas. Então para eles é fundamental alterar isso. Só que quando você faz uma política abrupta de desvalorização do câmbio você corta salário, não tem jeito, porque a economia hoje é muito mais aberta, hoje é impossível você ir ao mercado e não comprar alguma coisa que tenha sido importada ou pelo menos alguma coisa que tenha insumo importado. Então quando você mexe no câmbio você mexe em salário necessariamente.
Por isso o Bresser fala, e ele tem razão nisso, que o Lula, apesar de ter um décimo das reservas que a Dilma tinha, pegou a economia numa situação muito melhor, no sentido de que a taxa real de câmbio — dezembro de 2002 a preços de 2015, 2016: era uma taxa de 7,5 reais por dólar — tinha um espaço para reduzir câmbio, porque tinha justamente tido aquele terrorismo para evitar que ele ganhasse. O câmbio chegou a 4 reais por dólar, que fazendo o deflacionamento você chega nesses 7,5 reais, 8 reais por dólar. Então ele tinha um espaço para reduzir câmbio e aumentar salário muito grande e com a Dilma aconteceu ao contrário. Quando o governo sai da mão do Lula e vai para a mão da Dilma a taxa de câmbio era 2, 2 e qualquer coisa. Ela tinha um grande desafio, quase uma missão impossível, de reduzir essa apreciação cambial sem destruir o salário real. Os novos desenvolvimentistas dizem que se tiver que reduzir salário real é o preço a pagar para você fazer essa política, porque é uma política que vai dar condições de fazer a política industrial, de jogar o país para a frente e etc.
Já o pessoal digamos que a gente associa mais com o pessoal da Unicamp, a turma mais que está sendo chamada de social-desenvolvimentista, eles também concordam que o câmbio ficou muito apreciado, concordam com tudo isso, mas acham que a política feita via crédito, de elevar, de fazer crescer o mercado interno por força do crescimento do emprego, do salário real etc. foi o que fez a diferença nos governos do PT e permitiu a redução das desigualdades. E que então é ao contrário: se o preço a pagar foi ter mantido o câmbio um pouco apreciado, também é um preço a pagar “legal”. Então tem esse embate: se dá prioridade a que afinal?
A grande questão é que se você olha só um desses lados, se faz só essa política, uma boa parte do impulso de demanda que essa expansão do mercado interno faz, por conta de trazer classes que estavam fora do mercado para dentro desse mercado, vaza para fora: vira compra de bens importados e você vai então propiciando a geração de empregos fora do país e não dentro do país. Então não pode realmente descuidar desse lado. Agora, também simplesmente não ter um projeto melhor do que deixar o cambio permanentemente apreciado, ou pior ainda: em perspectiva permanente de apreciação, fomenta um rentismo brutal. Você precisa ter um projeto para dizer: queremos que daqui a vinte anos o Brasil esteja aqui, como fez a Coreia [do Sul].
Tem um professor muito conservador, Jeffrey Sachs, que fez a estabilização monetária dos países. Eu me lembro de um grande seminário que teve em 1996 porque a FEA fez cinquenta anos, e o professor que organizou, já falecido, trouxe gente de todas as tribos, trouxe assim o [François] Chesnais e o Jeffrey Sachs por exemplo. Numa mesa botaram o João Sayad, que é “super” meu amigo, para debater com o Jeffrey Sachs. O Jeffrey Sachs teve a pachorra de dizer que o desenvolvimento da Coreia [do Sul] era o resultado de a Coreia ter se adaptado às instituições do mercado. Ora, quem conhece minimamente a história da Coreia sabe que isso não é assim, ou ele é um mentiroso de marca ou não entende absolutamente nada de coisa nenhuma. Porque o programa que os coreanos fizeram tinha um peso tão forte do Estado, mas tão forte, que o cara que pegasse o incentivo do Estado para desenvolver a indústria “x” que eles queriam que dali a quinze anos estivesse em tal lugar no mercado mundial, se ele fosse pego usando esse recurso para outra coisa a pena era de morte, pena de morte, não tinha conversa, era um programa do Estado. O Estado falava: “Eu vou te dar isso; tem que fazer isso, isso, isso e daqui a dez anos quero tal resultado; daqui a quinze anos quero tal resultado”. Isso aí é se adaptar às instituições do mercado? Foi o mercado que fez isso por acaso?
O professor João Sayad, quando foi comentar, disse: “Quando o professor Álvaro Zini me convidou para participar desse evento ele me disse que ele queria ver perspectivas distintas colocadas na mesma mesa. Acho que ele acertou em cheio, porque certamente não há ninguém nem ideias que eu possa divergir mais do que dessas do professor Jeffrey Sachs”. É isso, né? Um projeto desses não adianta esperar do mercado. O mercado é efeito manada, o mercado vai na onda, as indústrias vão se adaptando. Você compra uma panela de uma indústria brasileira chamada Brinox, está escrito: “indústria brasileira”. Quando você abre o pacote e vê, a panela foi feita na China, o cara virou importador. Ele tira uma licença, então ele não faz mais panela, ele importa; ele não produz mais maquinas gráficas por exemplo, ele importa. O mercado vai se adaptando. Se não tiver um Estado para ter um planejamento, para pensar o país… Tem que ter uma instituição fora da lógica do mercado, que pense em outros valores, em outras necessidades, em outras perspectivas. Para conseguir desenhar alguma coisa e seguir nesse plano você tem que ter planejamento, tem que ter projeto.
Aliás todas essas palavras, inclusive desenvolvimentismo, que agora voltou à moda, todas essas palavras foram absolutamente proscritas do debate durante três décadas. Um mérito também dos governos do PT foi pelo menos ter recolocado essa discussão na mesa: o que nós queremos para o nosso país? Mesmo nesse embate entre desenvolvimentistas de diferentes linhas, absolutamente necessário, antes você não tinha espaço para isso. “Vamos juntos com o mercado que tudo dará certo” é uma crença absoluta no virtuosismo do mercado que ignora história, ignora cultura, ignora Estado, ignora tudo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Fazer esse país um pouco decente não é suficiente, é preciso planejar a industrialização” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU