30 Mai 2016
"A Europa está doente de bonapartismo. Todas as vezes em que ela se encontra em crise, como a crise atual da onda migratória, ela cai novamente na tentação do homem forte. Assim se explica o sucesso dos partidos populistas em muitos países europeus."
A reportagem é de Mario Avagliano, publicada no jornal Il Messaggero, 27-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ágnes Heller, filósofa húngara aluna de Lukács, presente há poucos dias em Trieste para o festival èStoria, está preocupada. E indica o caminho estadunidense da integração para sair do túnel e fazer com que a União Europeia reencontre a alma perdida.
Eis a entrevista.
Qual é a identidade da Europa hoje?
Uma identidade europeia clara e bem delineada não existe hoje. Ao longo dos séculos, tivemos uma série de identidades europeias, por exemplo, a cristã. Depois da Segunda Guerra Mundial e, especialmente, depois da queda da União Soviética, a União Europeia, não a Europa na sua inteireza – porque não se pode incluir nesse discurso a Rússia de Putin –, está tentando assumir a tradição liberal-democrática, centrada no primado da lei e na divisão dos poderes. E seria uma coisa boa! Mas também seria desejável que os líderes europeus tivessem consciência do passado histórico. No século XX, a Europa matou centenas de milhões de pessoas, com duas guerras mundiais, dois Estados totalitários, Auschwitz e os Gulag, inúmeras ditaduras.
Um dos grandes problemas da Europa moderna é a emergência migratória.
No século XVIII, na Europa, afirmaram-se dois direitos distintos: os direitos do ser humano e os direitos do cidadão. A questão é se esses direitos são verdadeiramente compatíveis, porque parecem não sê-lo em todos os casos: os direitos humanos exigiriam que nós, por exemplo, aceitássemos todos os imigrantes, porque é preciso defender os seus direitos como seres humanos; os direito dos cidadãos exigiriam, em vez disso que se pudesse determinar quem deixamos entrar na Europa e quem deixamos de fora.
Volta-se a falar de fronteiras e barreiras. Um retorno ao passado?
Eu sou fortemente contrária a todo tipo de cercamento e de fronteira, mas também devemos reconhecer o direito recém-mencionado do cidadão de limitar os direitos humanos. Na minha casa, quando eu convido pessoas ou também parentes por alguns dias, existem regras a serem respeitadas: manter limpo o banheiro, não chegar depois da meia-noite e, talvez, não vir acompanhado de uma prostituta. Portanto, eu aceito os migrantes de bom grado na Europa, mas existem regras que eles também devem respeitar, que são as regras do Estado no qual são hospedados.
A cultura do ódio e da exclusão pode vencer?
O fortalecimento dos sentimentos nacionalistas e populistas na Europa não é causado pela crise migratória de agora, mas remonta, principalmente, à crise econômica e financeira que iniciou em 2007-2008. A imigração não fez nada mais do que reforçar esses fenômenos. Uma causa histórica que explica na Europa o fortalecimento de tais tendências é a intolerância europeia contra o fenômeno da frustração, ou seja: quando temos um problema na Europa, começamos a gritar por ajuda, em vez de tentar resolvê-lo sozinhos. Infelizmente, a história testemunha que, nos momentos de crise, a Europa, em vez de se ater aos ideais liberais, voltou todas as vezes ao bonapartismo.
O que a senhora entende por bonapartismo?
Diante das situações de crise, na Europa, há a tendência de invocar a ajuda de um líder forte, escolhendo o caminho da ditadura e dando origem a Estados militarizados. Isso aconteceu na Alemanha, na Itália, na Espanha, na Grécia, por toda a parte. Bonaparte foi apenas o primeiro de uma série de líderes que vieram de baixo, muito ambiciosos e que prometiam salvar o povo. Um exemplo histórico: nos anos 1920, quando estourou a crise econômica na Europa e no mundo, a crise estadunidense desembocou no New Deal, e a europeia levou a Hitler, a Mussolini e a outros tiranos.
Esse é o motivo do sucesso dos partidos populistas ou nacionalistas?
Fomentando o ódio, diversos líderes populistas alcançaram grandes consensos e conseguiram reforçar a base política. E, assim, todos os imigrantes desses países são identificados como terroristas, e novos muros são propostos. O fato é que a comparação com o Muro de Berlim não se sustenta plenamente, porque esses novos muros não são completamente impermeáveis. O Muro de Berlim o era; não era possível atravessá-lo a não ser sob o risco de acabar fuzilado. Os novos muros, ao contrário, são permeáveis, há categorias que podem passar: depende apenas do governo daquele país de decidir quantos e quais categorias podem fazer isso, sempre com base nos próprios interesses.
Até agora, os EUA, como a senhora disse, foi um pouco uma Arca de Noé capaz de acolher e integrar os migrantes. Com Donald Trump, alguma coisa poderia mudar?
Eu acho que Donald Trump tem poucas chances de ganhar, mas, se por hipótese, ele se tornasse presidente dos Estados Unidos, ele certamente não seria um bonapartista. É impossível que ele ponha em discussão a Constituição estadunidense e, portanto, o sistema de equilíbrio dos poderes; é impossível que ele, como qualquer outro, coloque isso em discussão, porque existe o Congresso, o Senado e, na primeira tentativa, ele seria cancelado com um impeachment. O único risco que eu vejo da política de Donald Trump está na política externa, em que o controle do equilíbrio dos poderes não é tão forte quanto na política interna.
A senhora viveu duas perseguições, como judia e como anticomunista. Ainda há uma pulsão antissemita na Europa e no mundo?
Sim, eu sofri perseguições de um Estado totalitário pela minha oposição ao Estado comunista. Quanto ao antissemitismo, eu não disponho de análises que me permitam afirmar que o antissemitismo está crescendo. Mas eu acho que hoje, na Alemanha, França e Inglaterra, 30% da população ainda vivem fortes sentimentos antissemitas.
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"Nada de muros, mas respeito." Entrevista com Ágnes Heller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU