Neste espaço se entrelaçam poesia e mística. Por meio de orações de mestres espirituais de diferentes religiões, mergulhamos no Mistério que é a absoluta transcendência e a absoluta proximidade. Este serviço é uma iniciativa feita em parceria com o Prof. Dr. Faustino Teixeira, teólogo, professor e pesquisador do PPG em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – MG.
Asas sob cinzas
De repente,
a estrada em que me encontrava,
sem ar por causa da luminosidade,
encheu-se de uma tempestade de asas.
Em enxames saídos das profundezas ofuscantes
vieram os anjos que eu esperava,
as asas dobradas apontando firmes para o alto.
Seu passar era etéreo;
eram como nuvens coloridas em movimento,
e os rostos transparentes estavam imóveis,
a não ser pelo extasiante tremor dos cílios radiosos.
Entre eles voavam pássaros turquesa com gritos de alegre risada de menina,
e ágeis animais alaranjados trotavam,
fantasticamente pintalgados de preto.
As criaturas espiralavam pelo ar,
estendendo silenciosamente as patas de cetim para colher as flores voadoras
ao circularem, mergulharem, passando por mim com os olhos relampejantes (...).
Asas, asas, asas! Como posso descrever as convolações e os matizes?
Eram todo-poderosas e macias –
cor de âmbar, púrpura, azul profundo, preto veludoso,
com poeira de fogo nas pontas arredondadas das penas curvas (...).
Eles passavam em multidões, olhando para o céu (...).
Eu um mendigo cego e trêmulo, parado à beira da estrada,
e dentro da minha alma de mendigo a mesma ideia continuava repetindo:
grite para eles, conte – oh, conte que na mais esplêndida das estrelas de Deus existe uma terra – minha terra – que está morrendo em agonizante escuridão. Eu tinha a sensação de que, se pudesse agarrar com a mão apenas um trêmulo brilho que fosse, levaria a meu país tamanha alegria
que as almas humanas seriam instantaneamente iluminadas
e circulariam debaixo do aguaceiro e da crepitação da primavera ressurgida,
ao dourado trovão de templos novamente despertados (...).
Estendendo as mãos trêmulas, lutando para barrar o caminho dos anjos, comecei a agarrar a barra de suas claras casulas, as franjas tórridas e ondulantes das asas curvas, que escorregavam entre meus dedos como flores veludosas (...).
Então, ocorreu um milagre. Um dos últimos anjos se deteve, virou-se e silenciosamente se aproximou de mim. Vi seus olhos cavernosos,
fixos de diamantes, debaixo dos arcos imponentes das sobrancelhas (...).
Ele veio até mim. Sorriu. Eu não conseguia olhar para ele.
Mas observando suas pernas notei uma rede de veias azuis em seus pés
e uma pálida marca de nascença. Por essas veias, por essa pequena marca, entendi que ele ainda não havia abandonado totalmente a terra,
que ele poderia entender a minha prece.
Então, curvando a cabeça, apertando as palmas queimadas,
sujas de barro brilhante, sobre meus olhos quase cegos,
comecei a contar minhas tristezas. Queria explicar como era maravilhosa a minha terra, como era horrenda sua negra síncopa, mas não conseguia encontrar as palavras necessárias (...).
Calei-me, levantei a cabeça. O anjo deu um sorriso calado, atento,
olhou fixamente para mim com olhos diamantinos amendoados.
Senti que me entendera. “Desculpe”, exclamei,
beijando humildemente a marca de nascença em seu pé claro.
“Desculpe, eu só consegui falar do que é efêmero, do trivial.
Meu bondoso, meu cinzento anjo há de entender, porém.
Responda-me, ajuda-me, me diga, como posso salvar minha terra?”
Abraçando meus ombros por um instante, com suas asas de pombo,
o anjo pronunciou uma única palavra,
e em sua voz reconheci todas a vozes amadas, silenciadas.
A palavra que ele disse era tão maravilhosa que,
com um suspiro, fechei meus olhos e baixei ainda mais a cabeça.
A fragrância e a melodia da palavra se espalharam
por minhas veias, se ergueram como um sol dentro de meu cérebro (...).
Eu estava preenchida por ela.
Fonte: Vladimir Nabokov. Contos reunidos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 785-788.
Vladimir Nabokov (Foto: Wikimedia Commons)
Vladimir Vladimirovich Nabokov (em russo: Влади́мир Влади́мирович Набо́ков, também conhecido pelo pseudônimo Vladimir Sirin; São Petersburgo, 22 de abril (V.E. 10 de abril) de 1899c — Montreux, Suíça, 2 de julho de 1977) foi um romancista, poeta, tradutor e entomologista russo-americano. Seus primeiros nove romances foram escritos em russo, mas ele conseguiu proeminência internacional após ele começar a escrever prosa em inglês.
Lolita, de Nabokov (1955) seu mais notado romance em inglês, foi classificado quarto na lista dos 100 melhores romances da Modern Library; Fogo Pálido (1962) foi classificado 53º na mesma lista, e sua memória, Fala, Memória (1951), foi listado oitavo na lista do editor das maiores não-ficções do século XX. Ele foi um finalista para o National Book Award for Fiction sete vezes.
Nabokov foi um lepidopterista especialista e compositor de problemas de xadrez.