A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 1º Domingo do Tempo da Quaresma, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 4,1-13.
“Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (Lc 4,1)
Estamos no início do percurso quaresmal, em sintonia com toda a Igreja que celebra o Jubileu ordinário, inspirado no tema: “Peregrinos de esperança”.
Na verdade, os caminhos estão dentro de nós. Sem caminhos nos sentimos perdidos, confusos, sem rumo, sem bússola e sem estrelas para orientar as noites de nossa existência. Mas, é preciso perguntar aos caminhos o porque das distâncias, porque às vezes são tortuosos, cansam e são difíceis de serem percorridos. Eles guardam os segredos dos pés dos caminhantes: o peso de sua tristeza, a leveza de sua alegria ao encontrar a pessoa amada, as descobertas surpreendentes, o encontro com o diferente...
Mais do que ser-de-caminho, o ser humano é ser-caminho: caminho da vida, caminho da verdade, caminho da justiça, caminho do coração, caminho do amor, caminho da
ciência, caminho da ética, caminho da solidariedade... Cada pessoa tem a responsabilidade de ser caminho para os outros.
Caminho escancarado à passagem da humanidade peregrina. Caminho acolhedor; caminho aberto e solidário; caminho ecumênico; caminho plural; caminho sedutor.
Esta é a grande esperança que dignifica toda a humanidade.
Tornar-nos “peregrinos” é a experiência de uma grande liberdade pela via do desprendimento (coisas, apegos, poder, riquezas, ideias fixas, posturas fechadas, conservadorismo...) e aí se abre a possibilidade de um encontro com o Transcendente, com o Deus Peregrino.
Assim, a contemplação da vida de Jesus nos move à liberdade e se manifesta como um chamado a uma vida mais simples, partilhada, apaixonada, natural, livre, transcendente, intensa, comprometida...
Este é o sentido do relato lucano das “tentações de Jesus no deserto”.
Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da Graça.
Com sua austeridade e simplicidade, o deserto não é lugar de experiências fúteis e superficiais.
A profundidade da identidade de uma pessoa é testada e experimentada no deserto.
Quem anda no deserto sente profundamente o que é o “nada”; o deserto grita o nosso “nada”, nos coloca entre a areia e o céu, o nada e o Tudo, o eu e Deus.
A prática do “deserto” é um fator sempre presente em toda procura séria de Deus.
De Deus viemos. N’Ele somos. N’Ele vivemos. Para Ele caminhamos. Peregrinos espertos em discernir rumos e encruzilhadas. Somos caravana que avança em êxodo continuado. Vida nômade, provisória.
Peregrinar sem morada permanente. Tenda ambulante, não casa sólida de pedra. Somos pessoas de muitas tendas, de muitos acampamentos. Nada definitivo. Estado de itinerância evangélica, traço característico de Jesus e de todo(a) seu(sua) seguidor(a). O mundo, nossa casa sem paredes.
Caminhar em direção a Quem é sempre maior, rumo ao destino prometido.
A tríplice tentação de Jesus no deserto condensa os “impulsos ou dinamismos” mais importantes que o ser humano experimenta e que, quando alimentados, podem afastá-lo do melhor de si: o ter, o poder e o prestígio (fama). Nesse sentido, Jesus não vive para seus interesses, mas em docilidade à Vontade de Deus; Jesus não é um Messias que se impõe pelo poder nem pelo êxito; a única força que o move é a fidelidade ao Pai e à missão.
Para muitos, sempre será tentador utilizar o espaço religioso para alimentar a vaidade, buscar reputação, poder e prestígio. Poucas coisas são mais ridículas no seguimento de Jesus que a ostentação e a busca de honras. Causam danos à comunidade cristã e a esvaziam de sua verdade.
As tentações que são descritas em Lucas não são propriamente de ordem moral. O relato nos está advertindo de que podemos arruinar nossa vida se nos desviamos do caminho que Jesus trilhou.
Jesus, nas suas tentações, não cita a Escritura para justificar seus interesses.
Na primeira tentação, Ele renuncia utilizar o nome de Deus para “transformar” as pedras em pães e, assim, saciar sua fome. Ele não segue esse caminho; não vive buscando seu próprio interesse; não utiliza o Pai de maneira egoísta.
Alimenta-se da Palavra viva de Deus e só “multiplicará” os pães para saciar a fome da multidão.
Na segunda tentação, Jesus renuncia conquistar “poder e glória”, e não se submete, como todos os poderosos, aos abusos, mentiras e injustiças nas quais se apoia o poder diabólico. Jesus rejeita a tentação do poder porque, para Ele, não há outro meio de salvação e libertação a não ser a solidariedade até a extrema radicalidade. O Reino de Deus não se impõe, mas se oferece com amor. Por isso, Jesus só adora o Deus dos pobres, dos fracos e indefesos.
Na terceira tentação, Jesus renuncia cumprir sua missão recorrendo ao êxito fácil e à ostentação. Não será um Messias triunfalista. Nunca manipula Deus a serviço de sua vanglória. Está entre os seus como aquele que serve.
A contemplação de Jesus no deserto desmascara aquelas atitudes que afogam em nós a possibilidade de viver o seguimento d’Ele com mais intensidade; tal exercício desmascara nosso modo de viver o cristianismo, acomodado aos critérios do mundo, ou seja: insensibilidade do coração, deixar-nos prender pelas garras do consumismo, concretizado nos “afetos desordenados” ou apegos aos bens, poder, autoimagem, lugares, pessoas, títulos..., que acabam esvaziando nossa vida e nos deslocando do essencial. É uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
Diante das carências existenciais, surge a tentação de buscar compensações, que exigem investimento afetivo, nos tiram do foco e nos fazem cair em estado de letargia e acomodação. Mas, todas essas compensações têm algo em comum: elas nos fazem adormecer e, desse modo, abortam a novidade que poderia brotar em nós e atrofiam a esperança, pois nos prende ao mais imediato (fixação afetiva).
O caminho da transformação implica reconhecer a importância da vida simples e sóbria. É sábio tomar consciência de que vivemos uma superexcitação do desejo de posse. É preciso fazer a experiência de que podemos prescindir da maioria das coisas que nos são oferecidas. O papa Francisco nos recorda que “a espiritualidade cristã propõe um modo alternativo de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria, sem estar obcecado pelo consumo. É importante adotar um antigo ensinamento, presente em diferentes tradições religiosas e também na Bíblia.
Trata-se da convicção de que ‘quanto menos, tanto mais’” (Laudato si’, n. 222).
“Fazer estrada com Jesus” não nega nossas necessidades e desejos naturais, mas reordena nossas prioridades e nos recorda constantemente que Ele está nos chamando e nos atraindo para um modo alternativo de viver, mais humano e mais leve.
A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas
quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio.
- No fundo, a questão fundamental é esta: a que “reino” estou servindo? O “reino” do meu ego, ou o Reinado do Pai, no seguimento de seu Filho?
- Quais “tentações” exercem maior sedução em minha vida? Onde estou investindo o melhor de minha vida?