03 Fevereiro 2018
Sendo que todos nós, cristãos, estamos sendo chamados para acompanhar, para servir os outros. Será que nós não somos, todos e todas, parteiros?
A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do 5º Domingo do Tempo Comum - Ciclo B. A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Jó 7,1-4.6.7
2ª leitura: 1 Cor 9,16-19.22-23
Evangelho: Mc 1,29-39
O Evangelho de hoje é a continuação do domingo passado, em que vimos Jesus liberando uma liderança da sinagoga, um pároco daquele tempo, que se opus ao ensinamento de Cristo Ressuscitado, que é novo e perturbador, o profeta por excelência, reconhecido assim pelos primeiros cristãos. Hoje, o vemos deixando a sinagoga para entrar na casa de Pedro, a Igreja, a fim de libertar a sua sogra, os cristãos que estão doentes, com febre, e que precisam libertação, saúde, ressurreição. O Evangelho de Marcos aponta que “a cidade inteira se reuniu na frente da casa” (Mc 1,33) e que o Cristo Ressuscitado “curou muitas pessoas de vários tipos de doença e expulsou muitos demônios” (Mc 1,34). E São Marcos acrescenta: “Todos estão te procurando” (Mc 1,37), mas somente Simão e seus companheiros o encontram (Mc 1,36). Por quê? Sem dúvida, porque a maioria das pessoas procura um curador, um mago, um taumaturgo... Mas ele não é nada disso; Cristo não é um mago que faz desaparecer as doenças, o sofrimento e a morte, mas alguém que acompanha, que alivia, que reconforta, que libera e que ressuscita. Essa missão de acompanhar, de libertar, Cristo a confia aos seus discípulos em todos os lados onde eles estejam... Ele lhes diz: “Vamos para outros lugares, às aldeias da redondeza. Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim” (Mc 1, 38).
Desde sempre, os humanos sofrem e tentam compreender e explicar o sofrimento humano. Será que Deus criou o sofrimento? Será que é o que ele quer? Será que o sofrimento é um castigo de Deus? Há algum vínculo entre o mal e o sofrimento? São questões que nos perguntamos desde o início dos tempos e as nossas respostas ficam, muitas vezes, incompletas e não são sempre suficientes. Porém, uma breve fórmula de Evely dizia: “Deus não envia a doença, ele envia o médico”. Então, por que o sofrimento? Simplesmente porque isso faz parte da nossa condição humana na sua fragilidade. A violência, a doença, o mal, o sofrimento e a morte são parte da nossa realidade humana. Temos que combatê-los, obviamente, mas também assumi-los.
Temos um belo exemplo disso na primeira leitura de hoje, no livro de Jó. Trata-se da reflexão de um autor bíblico que quis personificar o sofrimento humano através do seu personagem, Jó, em quem acontecem todas as desgraças da existência. É uma narrativa filosófica que se inspira na literatura do Antigo Oriente. Nesse livro, em que infelizmente só temos um curto extrato, o autor quer fazer refletir sobre o sofrimento, as suas causas, as responsabilidades da pessoa que sofre e a sua atitude perante o sofrimento.
Jó é um homem bom e rico que tem sucesso em tudo. Mas, eis que um bom dia, Deus como um rei, convoca a sua corte composta de anjos e demônios. Entre esses demônios, está Satanás a quem Deus pergunta: “Você reparou no meu servo Jó? Na terra não existe nenhum outro como ele: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e evita o mal” (Jó 1,8). Satanás responde: “é a troco de nada que Jó teme a Deus? Tu mesmo puseste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens. Abençoaste os trabalhos dele e seus rebanhos cobrem toda a região. Estende, porém, a mão e mexe no que ele possui. Garanto que ele te amaldiçoará na cara!” (Jó 1,9-11). Deus aceita a aposta de Satanás: “Pois bem! Faça o que você quiser com o que ele possui, mas não estenda a mão contra ele” (Jó 1,12) “mas poupe a vida dele” (Jó 2,6).
Como a aposta foi aceita, Jó caiu em desgraça (não falamos “pobre como Jó” por nada: é uma catástrofe atrás da outra. Jó perdeu todos os seus bens, seu gado, seus servos: seus filhos foram todos matados no desabamento das suas casas. E, cheio de desgraças, a doença cai sobre ele. Ele fica coberto de úlceras que lhe fazem sofrer enormemente. O pobre Jó fica sozinho em seu estrume. Mesmo a sua esposa goza dele lhe dizendo: “E você ainda continua em sua integridade? Amaldiçoe a Deus e morra de uma vez!” (Jó 2,9). Jó lhe disse: “Você está falando como louca! Se aceitamos de Deus os bens, não devemos também aceitar os males?” (Jó 2,10). Mas, cuidado! Não é uma resignação ingênua... de maneira que, aos seus amigos teólogos que vêm visitá-lo para explicar o que lhe acontece, Jó faz protesto da sua inocência e rejeita essas interpretações: 1) Um deles lhe disse: “Eu creio que se te acontecem tantas desgraças têm que ser porque você cometeu um grande pecado há muito tempo e não o confessou, Deus vai te castigar...”. 2) Um outro teólogo lhe disse: “O que você quer? A vida é assim! Você tem que se resignar e sofrer em silêncio! Deus prova os que ele ama!”.
É lamentável ouvir explicações deste tipo, infelizmente, ainda hoje. Jó se defende; ele pede uma explicação a Deus; ele quase blasfema. Ele disse aos seus amigos teólogos: “Deixem-me tranquilo! Eu conheço Deus tanto quanto vocês. Eu lhe peço explicações; eu quero discutir com ele. A única coisa que eu lamento é que não exista um árbitro entre Deus e eu; eu estou convencido que o árbitro julgaria no meu favor”. No final do livro, Deus felicita Jó e lhe disse: “Certamente, Jó é o melhor de todos, porque ele não se abateu, ele não se botou de barriga para baixo diante de mim; ele resistiu. Ele é um homem que fica de pé. Ele teve razão”. E Deus disse a um dos teólogos, Elifaz de Temã: “Estou irritado contra você e seus dois companheiros, porque vocês não falaram corretamente de mim como falou o meu servo Jó” (Jó 42,7).
A mensagem nos diz que o sofrimento, mesmo aquele que é inevitável, é inaceitável. É preciso combatê-lo de todos os modos. É o que o Cristo do Evangelho de Marcos faz hoje. Durante toda a jornada em Cafarnaum, ele combate o sofrimento e o mal. Jesus não faz magia: ele alivia, reconforta, acompanha, cura, ressuscita. Não podemos fazer uma leitura literária e fundamentalista desse texto; senão, reduzimos o gesto de Jesus a um ato mágico, nada mais. As palavras utilizadas pelo evangelista têm um sentido bem mais amplo e querem expressar uma realidade importante da Igreja do primeiro século e a do século vinte e um. A sogra de Pedro é a Igreja, a figura do cristão, vítima da febre do pecado, isto é, do limite humano que nos impede de nos mantermos de pé. O Cristo que se aproxima, pega ele pela mão e lhe fez levantar (egeurein), que quer dizer: ressuscitar. É uma linguagem da Páscoa para dizer que, para o batismo cristão, o Cristo nos ressuscita e nos dá a possibilidade de nos mantermos de pé para cumprir a nossa primeira missão que é de servir. É o que a sogra faz...
Lá, trata-se de um verdadeiro milagre, a cura oferecida para todos os cristãos. O sofrimento persiste, obviamente, pois os cristãos continuam sendo seres humanos, isto é limitados, frágeis e vulneráveis. Por outro lado, com Cristo, eles se tornam capazes de combater suas dores e de assumi-las, para acompanhar e sarar os outros. Será que não é o que São Paulo afirma, na segunda leitura de hoje, quando diz que deve se anunciar essa Boa Notícia: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16). E para dizer que o Cristo Ressuscitado age através dele, acrescenta: “Embora eu seja livre em relação a todos, tornei-me o servo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Com os fracos, tornei-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a qualquer custo” (1 Cor 9,19.22).
Não é que os outros não sejam salvos... Não! É que eles não encontraram ainda o Cristo da Páscoa que consola, que alivia, que cura todas as feridas. Isso quer dizer que o mundo precisa dos outros, Paulo, e dos outros cristãos para se fazer. A ressurreição é para todos, sem exceção, e se expressa primeiro e antes de mais nada, através da cura das nossas feridas, dos nossos limites e dos nossos sofrimentos. É a missão de Cristo e é a nossa, ainda hoje. A finitude humana, o mal e o sofrimento estão sempre lá, mas eles não têm a última palavra sobre a vida humana, porque Cristo, aproximando-se de nós, nos pega pela mão e nos faz levantar, isto é: ele nos ressuscita e nos levanta para servir.
Há uma diferença entre reconhecer nossa humanidade em toda a sua fragilidade e se comprazer nessa situação de finitude que é nossa. O Evangelho nos convida a acompanharmos, uns aos outros, a nos curar das nossas feridas e nos colocarmos de pé para servir. É o que chamamos de esperança. É acreditar que tudo é possível por causa da nossa fé no Cristo da Páscoa.
Para concluir, eu gostaria simplesmente de citar um padre, Gabriel Ringlet, Pró-Reitor da Universidade de Lovaina, que dizia que a vida de padre é uma vida ferida no sentido nobre do termo. Por outro lado, o que ele diz do padre pode ser aplicado a todos os cristãos, porque ele escreve: “... A ferida é ser tocado no mais profundo, e mesmo na sua própria carne, por essa Palavra a colocar na prática. Como ser padre? Num dos lugares onde eu me sinto mais padre é no acompanhamento à morte: a gente ajuda alguém, nesse momento tão particular, de fazer nascer o que há de melhor na pessoa. No fundo, um padre, é um parteiro”. Sendo que todos nós, cristãos, estamos sendo chamados para acompanhar, para servir os outros. Será que nós não somos, todos e todas, parteiros?
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