"O exercício da caridade é o cumprimento dos dois mandamentos reiterados por Jesus. É sobre isso que fala o Papa Francisco dia e noite".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
"Na oração do Pai Nosso, há uma palavra que brilha pela sua ausência: uma palavra que em nossos tempos – como talvez sempre – todos consideram importante: a palavra ‘eu'”, disse o Papa Francisco na Audiência Geral de 13 de fevereiro de 2019. Esta ausência tem uma razão de ser. O Papa explica: "Somos um povo que reza. 'Nós'. Reza-se com o 'Tu' e o 'nós'. É um bom ensinamento de Jesus. Não o esqueçam. Por quê? Porque não tem espaço para o individualismo no diálogo com Deus. Não há ostentação dos próprios problemas como se nós fôssemos os únicos no mundo a sofrer. Não há oração elevada a Deus que não seja a oração de uma comunidade de irmãos e irmãs. O 'nós'. Estamos em comunidade, somos irmãos e irmãs".
Interessante observar que a realidade profunda da condição individualista não é algo somente da nossa época, como sublinhou o Papa Francisco, e é radicalmente distinta da realidade do Filho. Na Carta sobre a caridade, São Bernardo de Claraval, abade francês do século XII, doutor da Igreja e responsável pela reforma da Ordem de Cister, medita exatamente sobre este ponto:
"O amor do filho não busca seu próprio interesse. Penso que é a este que se refere à Escritura: A lei do Senhor é perfeita, e converte as almas. Porque é a única apta a arrancar a alma do amor de si mesma e do mundo, e fazer com que retorne para Deus. Nem o temor nem o amor de si mesmo são capazes de converter a alma. Às vezes mudam a expressão facial ou a conduta exterior, mas nunca os sentimentos. Algumas vezes os escravos praticam obras de Deus, mas não as realizam espontaneamente e lhes é muito custoso. Também os assalariados, mas não as praticam gratuitamente, e se deixam levar pela cobiça. Onde existe o amor próprio ali existe o individualismo; e onde há individualismo existem cantos; e onde existem cantos existem lixo e imundícies. A lei do servo é o temor que o invade, a do assalariado é a cobiça que o domina, o atrai e distrai. Nenhuma dessas leis é pura e capaz de converter as almas. A caridade, porém, converte as almas e também as torna livres."
O exercício da caridade é o cumprimento dos dois mandamentos reiterados por Jesus. É sobre isso que fala o Papa Francisco dia e noite:
"Irmãos e irmãs, peçamos hoje esta graça: saber amar Jesus abandonado, e saber amar Jesus em cada abandonado e abandonada. Peçamos a graça de saber ver e reconhecer o Senhor que continua a clamar neles. Não permitamos que a sua voz se perca no silêncio ensurdecedor da indiferença. Não somos deixados sós por Deus; cuidemos de quem é deixado só."
Nossa dificuldade em compreender e colocar em prática o que Papa diz tem a ver com o fato de que ainda não nos tornamos "autênticas escolas de oração", como exortou o Papa João Paulo II na Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, sobre o Rosário, publicada no 25º ano do pontificado. "Há necessidade de um cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração" e saiba olhar a realidade da vida com os olhos de Maria, sublinhou o pontífice em outubro de 2002, isto é, há duas décadas.
O que significa olhar Jesus e a realidade com os olhos de Maria? Significa basicamente dedicarmos a "mesma assiduidade de Maria à contemplação do rosto de Cristo", segundo João Paulo II:
Olhar com os olhos do coração: "Os olhos do seu coração [de Maria] concentraram-se de algum modo sobre ele [Jesus] já na Anunciação, quando o concebe por obra do Espírito Santo".
Olhar de reverente estupor: "Quando finalmente o dá à luz em Belém, também seus olhos de carne podem fixar-se com ternura no rosto do Filho enquanto o envolve em panos e o recosta numa manjedoura. Desde então, seu olhar, cheio sempre de reverente estupor, não se separará mais dele".
Olhar interrogativo: "Um olhar interrogativo, como no episódio da perda no templo: ‘Filho, por que nos fizeste isto?' (Lc 2,48)".
Olhar penetrante: "Olhar penetrante, capaz de ler o íntimo de Jesus, a ponto de perceber seus sentimentos ocultos e adivinhar suas decisões, como em Caná (cf. Jo 2,5)".
Olhar doloroso e parturiente: "Um olhar doloroso, sobretudo aos pés da cruz, onde haverá ainda, de certa forma, o olhar da parturiente, pois Maria não se limitará a compartilhar a paixão e a morte do unigênito, mas acolherá o novo filho a ela entregue na pessoa do discípulo predileto (cf. Jo 19,26-27)".
Olhar radioso: "Na manhã da Páscoa, será um olhar radioso pela alegria da ressurreição".
Olhar ardoroso: "Um olhar ardoroso pela efusão do Espírito no dia de Pentecostes (cf. At 1,14)".
Como conseguimos olhar para Jesus desses diferentes modos nos distintos momentos da nossa vida? Na recita do Rosário, quando "a comunidade cristã sintoniza-se com a lembrança e com o olhar de Maria".
As exortações do Papa Francisco e do então papa João Paulo II lembram o ensinamento de outro doutor da Igreja do século V, São Cirilo de Alexandria, na reflexão sobre o Evangelho que será proclamado ao longo desta terceira semana do Advento. São Cirilo nos recorda que "sua vinda ou presença, Cristo a promulgou através de muitas obras magníficas: proclamando o Evangelho do Reino, curando as enfermidades e sofrimentos do povo, tal como está escrito. Entrará o Senhor - diz -, a quem vós buscais, os que dizeis em sua covardia: Onde está o Deus da justiça? Ele virá, pois, e sua doutrina superará a lei, os símbolos e as figuras, e será o mensageiro da aliança, outrora anunciada pela boca de Deus Pai".