Um conto de Natal para medir a temperatura do nosso próprio espírito

Foto: Reprodução

02 Dezembro 2022

"Nas nossas vidas frenéticas, em que falta tempo e disposição para vivenciar o espírito natalino, o livro de Charles Dickens, Um conto de Natal, é um bom termômetro para medirmos a temperatura do nosso próprio espírito".

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

"Existem figuras dickensianas que pairam em algum ponto entre esses dois extremos, cheias de manias divertidas, mas também levemente alarmantes. Parecem não conseguir enxergar o mundo a não ser de seu próprio ponto de vista. Essa espécie de estrabismo moral faz com que sejam cômicas, mas também potencialmente monstruosas. É tênue a linha entre ter uma vigorosa independência de espírito e ficar encerrado no próprio ego, excluído do convívio dos outros. Ficar fechado dentro de si mesmo por muito tempo resulta numa espécie de insanidade". Este comentário de Terry Eagleton, professor de Literatura Inglesa e Escrita Criativa na Universidade de Lancaster, Reino Unido, ao analisar o character, isto é, as figuras que são personagens nos romances e novelas do escritor inglês Charles Dickens, diz muito sobre a personagem central de Um conto de Natal, o conhecido Sr. Scrooge. 

Esta novela, cuja história é amplamente conhecida e já foi retratada no cinema, narra a história do Sr. Scrooge, um "tremendo sovina". Nas primeiras páginas, seu perfil é apresentado ao leitor:

"Ah! Mas ele era um tremendo sovina, esse Scrooge! Como era mão-fechada, pão-duro, muquirana, tacanho, mesquinho e ganancioso, o velho pecador! Duro e afiado como uma pedra de amolar, do qual nunca se conseguira extrair nenhuma faísca de generosidade; misterioso, fechado e solitário como uma ostra."

 


Capa de Um conto de Natal

Foto: Reprodução

 

Segundo Dickens – autor deste conto, que precisou abandonar os estudos aos 12 anos para trabalhar em uma fábrica e ajudar no sustento da família, mas aos 15 pode retomá-los e seguiu a carreira de repórter e escritor até o fim da vida –, o "frio" que havia dentro do Sr. Scrooge "congelou suas velhas afeições, mordeu seu nariz pontudo, murchou suas faces, endureceu seu andar; deixou seus olhos vermelhos e azuis seus finos lábios; e falava de forma estridente por meio de sua voz irritante. Uma camada de gelo cobria sua cabeça, suas sobrancelhas e seu queixo duro. Ele sempre carregava consigo sua frieza; ele enregelava o escritório nos dias mais quentes do ano; e, no Natal, não abrandava a temperatura um grau sequer".

Na véspera de Natal, o Sr. Scrooge recebe a visita de três espíritos, que repassam todos os seus erros e prevê, caso não mude seu modo de vida, um futuro solitário e um destino ainda pior na eternidade.

Nas nossas vidas frenéticas, em que faltam tempo e disposição para vivenciar o espírito natalino, o livro de Dickens é um bom termômetro para medirmos a temperatura do nosso próprio espírito. O diálogo abaixo, entre o Sr. Scrooge e seu sobrinho, pode ser uma boa medida para começarmos.

Boa leitura!

***

"— Um feliz Natal, tio! Que Deus o guarde! – exclamou uma voz animada. Era a voz do sobrinho de Scrooge, que se aproximara tão rapidamente que essa foi a primeira indicação que ele teve de sua chegada.

— Rá – disse Scrooge – Que bobagem!

Ele tinha se aquecido de tal forma com uma caminhada rápida em meio à névoa e à geada, este sobrinho de Scrooge, que brilhava completamente; o rosto roborizado e bonito; seus olhos acesos e sua respiração a fumegar.

— O Natal, uma bobagem, tio? – disse o sobrinho de Scrooge. — O senhor não fala sério, não é?

— Falo, sim – disse Scrooge. — Feliz Natal! Que direito tem você para estar feliz? Que razões tem para estar feliz? Sendo pobre do jeito que é!

— Ora, então – respondeu o sobrinho alegremente. — Que direito tem o senhor para estar deprimido? Que razões tem para tanta tristeza? Sendo rico do jeito que é!
Scrooge, não tendo uma resposta melhor no calor do momento, disse: — Rá! – novamente; seguido de: — Que bobagem!

— Não fique bravo, tio! – disse o sobrinho.

— O que mais posso fazer – respondeu o tio – se vivo em um mundo de tolos como esse? Feliz Natal! Às favas esse Feliz Natal! O que é a época de Natal além de um período para pagar contas sem ter dinheiro; um tempo para se descobrir um ano mais velho e não uma hora mais rico; a hora de fechar seus livros de contabilidade e ver que cada item neles só lhe trouxe prejuízo durante uma dúzia de meses? Se minha vontade fosse feita – disse Scrooge indignado – todo idiota que anda por aí com um 'Feliz Natal' nos lábios deveria ser fervido em seu próprio pudim e enterrado com um ramo de azevinho atravessado no coração. Isso sim!

— Tio! – implorou o sobrinho.

— Sobrinho! – retrucou o tio, áspero –, celebre o Natal à sua maneira e deixe-me celebrar o meu como eu quiser.

— Celebrar! – replicou o sobrinho de Scrooge — Mas o senhor não o celebra de modo nenhum.

— Deixe-me passá-lo em paz, então – disse Scrooge — E que você lhe tire bom proveito! Como sempre o fez!

— Ouso dizer que há várias coisas que, mesmo sem lhes tirar nenhum proveito, me trouxeram bons resultados – replicou o sobrinho. E o Natal está entre elas. Mas tenho certeza de que sempre que a época do Natal se aproxima, considero-a – além da devoção própria às suas origens e nome sagrados, se é que se pode separar uma coisa da outra – como um tempo de bondade; um tempo agradável, caridoso, misericordioso e gentil; a única época que conheço, no longo calendário do ano, em que homens e mulheres parecem abrir seus corações fechados de forma consensual e livre, e pensar nas pessoas abaixo delas como se fossem realmente seus companheiros de viagem para a sepultura, e não uma raça distinta de criaturas, destinada a outras jornadas. E, portanto, tio, embora o Natal nunca tenha colocado um pedacinho de outro ou prata no meu bolso, acredito que me faz e me fará bem; e digo mais, que Deus abençoe o Natal!"

 

 

Leia mais