27 Novembro 2018
“Se Deus não é um ‘motor imóvel’ aristotélico relegado à sua transcendência dourada, mas é um interlocutor em diálogo com a humanidade e em ação dentro de eventos contingentes, é inevitável que a sua palavra e a sua própria presença se revelem através e dentro daquele emaranhado histórico e de linguagens que são datados literal, social e culturalmente.”
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 25-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Era o dia 25 de fevereiro de 1455, e, depois de um trabalho iniciado em 1452, era lançado o primeiro livro impresso com caracteres móveis. O artífice era Johannes Gutenberg, nascido em 1400. Sua tipografia estava situada em um edifício da atual capital do Land Renânia-Palatinado, Mainz; o cunhador das peças com as letras góticas dos manuscritos da época era um certo Peter Schöffer, enquanto o patrocinador daquela operação que revolucionaria a cultura era Johann Furst.
No arco de um triênio, sairiam daquela impressão nada menos do que 180 Bíblias em dois volumes de 1.282 páginas no total, 40 delas compostas em folhas de pergaminho e 140 em papel de cânhamo importado da Itália. Até onde se sabe, atualmente, daquele estoque, restaram ainda em vida somente 48 cópias. Pense-se que o mesmo ciclo trienal de trabalho teria sido necessário para que um escriba conseguisse redigir uma única cópia manuscrita da mesma Bíblia na versão latina de São Jerônimo, a famosa Vulgata.
Quisemos remontar a essa fonte ideal de um rio editorial imenso e incessante para lembrar que a Bíblia continua sendo proposta em centenas e centenas de línguas, enquanto, ao redor das páginas dos 73 livros que a compõem, alarga-se um mar bibliográfico infindável. Nós, com periodicidade bastante regular, tentamos pescar nessa grande extensão de papel algumas obras que sejam de interesse para os nossos leitores não especialistas em exegese, mas cientes de que as Escrituras Sagradas judaico-cristãs são desde sempre o “grande código” da cultura ocidental, para usar o famoso sintagma cunhado por um artista que também foi um refinado cunhador, como William Blake. Faremos apenas algumas indicações capazes de compor um leque de gêneros e temas.
Eis, em primeiro plano, uma importante introdução às coordenadas histórico-geográficas dentro das quais a Bíblia se desenvolveu: nunca se deve esquecer que ela não é uma coleção abstrata de teoremas teológicos, mas sim uma “história sagrada”. Portanto, é necessário reconstruir o seu contexto espacial, identificado sobretudo com o concurso da arqueologia, definir o seu caso sócio-histórico e religioso e, enfim, submeter a um exame crítico os textos escritos que transmitiram a sua memória.
Tudo isso está ampla e cuidadosamente desenhado em um manual elaborado por três pesquisadores espanhóis dentro de uma coleção preparada precisamente na Espanha e traduzida ao italiano por uma editora, a Paideia, de Bréscia, dotada de um catálogo verdadeiramente prestigioso, que passou agora para a Claudiana, de Turim, cujas publicações frequentemente introduzimos nas nossas resenhas.
Passemos agora a um caso que sempre provoca perplexidade: a violência sagrada que entrelaça muitos relatos bíblicos e que mancha de sangue dezenas de páginas, sobretudo do Antigo Testamento. Porém, isso não deveria surpreender se considerarmos a qualidade histórica da religião bíblica a que acenávamos acima.
Se Deus não é um “motor imóvel” aristotélico relegado à sua transcendência dourada, mas é um interlocutor em diálogo com a humanidade e em ação dentro de eventos contingentes, é inevitável que a sua palavra e a sua própria presença se revelem através e dentro daquele emaranhado histórico e de linguagens que são datados literal, social e culturalmente.
O caso que propomos é o dos Salmos imprecatórios que – precisamente por causa da sua carga violenta (“Ó Deus, quebra-lhes os dentes na boca... Feliz quem agarrar e esmagar seus nenês contra o rochedo!”, e assim por diante, enfurecendo-se) – foram expulsos da liturgia cristã. Esses Salmos censurados são investigados e submetidos a hermenêutica (que também seria necessária, aliás, para as passagens violentas do Alcorão) por um renomado exegeta francês, André Wénin, em uma viagem textual acidentada, mas significativa.
E, por falar em páginas sagradas difíceis, quanto eros foi derramado sobre a figura evangélica de Maria Madalena, que foi transformada sem fundamento textual em prostituta, para depois ser exaltada como testemunha do Cristo ressuscitado, tornada quase evanescente como hipóstase gnóstica da Sabedoria divina, transfigurada em esposa, rainha e até mesmo ser divino, arrastada por Dan Brown e muito mais ainda.
Edmondo Lupieri, professor da Loyola University, em Chicago, grande especialista em algumas figuras e textos neotestamentários (o Batista e o Apocalipse), reconstruiu os delineamentos evangélicos autênticos de Madalena, convocou uma dezena de colegas, lançando-os à busca das metamorfoses daquele rosto, desde a antiguidade até o pós-moderno.
É sugestivo aproximar, quase como um díptico, outra fisionomia feminina verdadeiramente emocionante, a filha do carismático e extravagante libertador de Israel, Jefté, uma jovem inominada, dedicada a um trágico sacrifício ritual pelo próprio pai (Juízes 11, 29-40). A estudiosa Giuseppina Bruscolotto redesenha o seu perfil, dando-lhe uma auréola com uma surpreendente reinterpretação como “padroeira” de tantas pessoas que se “consomem” por Deus e pelo próximo.
Às páginas desse ensaio também seria preciso associar a escuta daquela joia musical do século XVII que é o oratório Iephte, de Giacomo Carissimi, especialmente na transição dilacerante entre o langor do hino de vitória do pai e o desolado lamento da filha (plorate, dolete, ululate, lachrimate...).
Sim, porque a Bíblia foi justamente o “grande código” de referência da arte durante séculos. Eis, então, uma retomada particular das Escrituras dentro de um horizonte férvido e fervoroso, o de São Francisco. Três estudiosos franceses se dedicaram à reconstrução da exegese franciscana que teve uma tétrade de expoentes excepcionais: o grande pregador Antônio de Pádua, o teólogo São Boaventura, o mestre espiritual Pedro de João Olivi (reevocado com as suas teorias e com os seus discípulos por Eco em “O nome da rosa”) e, finalmente, o filólogo judaizante francês Nicolau de Lira, cuja Postilla ou comentário à Bíblia registrou um sucesso extraordinário e secular. Para todos eles, a Bíblia não era apenas um “código” de referência, mas também uma “lâmpada para os passos” no caminho da vida (Salmo 119, 105).
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Bíblia: entre sangue, violência, eros e arte. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU