17 Agosto 2018
"Em uma época de frenesi como a atual, quando se fala com orgulho que é possível voar para Paris de Roma durante a manhã, ministrar uma palestra e voltar à noite (infelizmente, eu também já fiz isso), tecer o elogio de calma tranquila é uma provocação."
O artigo é de Gianfranco Ravasi, publicado originalmente por Il Sole 24 Ore e reproduzido por Settimana News, 14-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quem me deu para ler quando eu tinha vinte anos certamente queria vacinar-me contra um vício que honestamente eu nunca pratiquei, o último dos sete pecados capitais, que é a preguiça. Na verdade, eu fiquei fascinado por Oblomov, o protagonista do homônimo romance publicado pelo russo Ivan A. Goncharov em 1859.
O que o tornava tão agradável era a sua serenidade natural e bondade que lhe impedia romper o véu da inércia e do sono para olhar o fluxo turbulento dos eventos externos e dissolver a névoa dourada de seus sonhos. Para agitar a quietude plácida nem teria sucesso mesmo o animado vento primaveril da bela e jovem namorada Olga, muito menos o frenético dinamismo do amigo Stoltz para quem viver era trabalhar incessantemente.
Retomamos a apresentação do volume de
Jacques Leclerq, Elogio della pigrizia
(EDB, Bologna 2018, pp. 56, € 6,50),
assinada pelo cardeal Gianfranco Ravasi
para Il Sole 24 horas de 25 julho de 2018.
Ciente dessa remota experiência - que, anos mais tarde, reviveria encontrando a irritante apatia de Zeno, cuja "consciência" foi escavada por Italo Svevo - li com interesse muito mais sintético o Elogio della pigrizia (Elogio da Preguiça, em tradução livre), corajosamente proposto por um famoso moralista e sociólogo, um padre professor em Leuven, Jacques Leclercq (1891-1971), texto que foi proposto como lectio para a sua admissão entre os membros da Livre Academia da Bélgica (no apêndice do Elogio, o esboço de um retrato intenso de outro sociólogo importante Enzo Pace). Imediatamente ele enfatiza a “falta de lógica" de escolha porque é contraditório "se esforçar a burilar frases que se assentem com dificuldade, para cantar a doçura e a virtude da indolência", quando seria suficiente um telegrama de desculpas e agradecimento à Academia, permanecendo tranquilamente afundado em uma poltrona com um bom livro para ler.
Em uma época de frenesi como a atual, quando se fala com orgulho que é possível voar para Paris de Roma durante a manhã, ministrar uma palestra e voltar à noite (infelizmente, eu também já fiz isso), tecer o elogio de calma tranquila é uma provocação. As reuniões incessantes, os feriados em engarrafamentos com as mãos indignadas no volante, as visitas turísticas que incluem em um único dia museus, monumentos e igrejas, as filas insuportáveis nos mais variados guichês (antigamente, para os crentes, até mesmo no confessionário), o navegar incessante da rede ao longo das avenidas da infosfera, o fast food que transforma o almoço tranquilo tradicional em um engolir instantâneo, a visita ao parente doente olhando de soslaio para o relógio: a ladainha poderia continuar muito mais, violando, porém, a atual necessidade de uma "foto instantânea" para descrever os fenômenos sociais.
As páginas de Leclercq também são uma deliciosa sequência de quadros que mostram a beleza e a doçura geradas justamente a partir do exato contrário da lista (incompleta) formulada acima. Aqui, então, o trabalho incrustado de descanso (mesmo o Criador, de acordo com a Bíblia, precisa de um sábado e domingo festivos), os passeios parando para contemplar apenas um gramado ou um riacho, o ficar muito tempo na frente de uma tela de um museu ou no silêncio gótico de uma catedral, o deixar de lado o maço de jornais para acompanhar o enredo de uma história, o sentar-se sob uma árvore como Newton ou mergulhar em uma banheira como Arquimedes ou no terraço da casa para observar as estrelas como os Magos, o ouvir uma música ou até mesmo o silêncio, desligando o zumbido de Babel urbana ...
São muitos aqueles que, em reação a um fluxo frenético de atos, movimentos, emoções, compromissos, nos últimos tempos têm continuado e multiplicado esse elogio à lentidão, à calma, ao descanso, até mesmo à fleuma como antídoto da alma para a agitação, a rapidez, a velocidade, o utilitarismo ("tempo é dinheiro"). Por outro lado, contra o estresse e hiperatividade Pascal em seus Pensamentos não hesitava em advertir que "a verdadeira felicidade está apenas no repouso e não no tumulto" pelo que se deveria reservar pelo menos "uma hora durante o dia para pensar em si mesmos "(No. 139). Já em 8ª d.C. de seu exílio sombrio no Mar Negro, Ovídio consolou-se dizendo que "os ócios nutrem o corpo e pastoreiam a alma" (Epistulae ex Ponto I, 4, 21). Dito isto, porém, devemos também nos perguntar: então a preguiça não é mais um vício capital, mas uma virtude cardeal?
Pois bem, eu acho que no arco-íris lexical de que está dotada a língua italiana poder-se-ia selecionar melhor, porque "preguiçoso" é derivado do verbo latino piget que denota o verdadeiro incômodo em se empenhar. Na prática, ele remete ao indolente, ao malandro, ao ocioso, ao desocupado que muito pouco têm em comum com a tranquilidade, a lentidão reflexiva, a calma, o sossego, a ponderação. A preguiça, ao contrário, é a variação da acídia: na tradição do ascetismo cristão oriental a akedia era um pecado grave porque levava a um afrouxamento das defesas contra os vícios, a um desânimo que empurrava a abandonar a subida íngreme e repleta de obstáculos dos preceitos evangélicos, adaptando-se ao vale sombreado da indiferença, da mediocridade e da indolência.
Por isso, a virtude que Leclercq exalta não é preguiça feita de ignorância, da apatia, de desinteresse, de narcolepsia, mas o que Plínio, o Jovem definia como o dulce otium operoso (Epistulae I, 9, 6), levando em conta que o verbo latino vacare não remete a um feriado inerte, mas a um "empenho" em uma obra. O livro bíblico dos Provérbios é todo entrelaçado com retratos de preguiçoso marcados com veemência e sarcasmo: no entanto, era em um contexto que - como ainda acontece hoje, talvez por razões geoclimáticas –amava a contemplação, o descanso, o ritmo lento. Até mesmo Jesus exalta o servo que soube investir o capital de talentos que lhe fora confiado, ao contrário do preguiçoso que só os guardou enterrando-os (Mateus 25,14-30).
São Paulo, então, que certamente não era preguiçoso (basta seguir suas viagens nos Atos dos Apóstolos), confessa aos cristãos de Tessalônica "nunca ter vivido ociosamente, comendo pão de graça, mas ter trabalhado com esforço dia e noite”. Portanto, sua regra é clara: "Quem não quiser trabalhar, não coma também." (2Tessalonicenses 3,7-10). Uma regra que aparece inclusive na Constituição soviética de 1918 e no hino Comunista Bandeira Vermelha: "E nós faremos como a Rússia, que não trabalha não come." E como esquecer a música Quem não trabalha não faz amor de Adriano Celentano? Em conclusão, se a lentidão calma e pacata pode ser uma bela virtude a elogiar, a preguiça acidiosa permanece um vício a ser condenado, como Dante faz em relação ao seu vizinho de casa, o luthier preguiçoso Belacqua por "meneio tão lento e voz tão lerda” (Purgatório IV, 132).
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Uma bela virtude a ser elogiada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU