26 Julho 2018
Como multiplicam-se, em muitos cantos do mundo, iniciativas para compartilhar cultura, comunicação, lutas e atitudes transformadoras. Por que Google e Facebook tentam sufocá-las.
O artigo é de Leonardo Foletto, jornalista, professor e pesquisador, doutor em comunicação pela UFRGS, publicado por Outras Palavras, 25-07-2018.
No final do texto passado, “Ressaca da Internet, espírito do tempo”, fiz algumas perguntas que podem guiar a busca por uma (re)invenção da internet, cada vez mais cerceada por grandes empresas privadas (Google, Facebook, Amazon, Microsoft, Apple) e pela vigilância, tanto de agências de espionagem ligadas a governos (vide NSA) como a realizada pelas mesmas empresas já mencionadas, que tem como modelo de negócios o comércio de dados. Repito aqui um dos questionamentos porque vai guiar a busca desse texto: de quais maneiras práticas os engenheiros de computação podem tornar o processamento da informação na internet mais descentralizado? Ou, visto de outro modo: quais são os jeitos de desmonopolizar o tráfego de informação nas redes? Falo aqui um pouco mais do maior gargalo: a infraestrutura.
Para você ler este texto, seja de um notebook, computador de mesa, celular ou tablet, o esquema costuma ser o seguinte: você adquire (ou toma emprestado, ou aluga por um tempo determinado, caso das ainda resistentes lan houses) um dispositivo que, a partir de um componente eletrônico – uma entrada de cabo de rede, uma placa wifi, um pequeno artefato que dá acesso às redes 3G, 4G ou 5G – permite a conexão a uma rede que chamamos de internet. No caso de wifi ou cabo, você (ou a pessoa que é dona de seu computador) contrata um plano de alguma das operadoras de telefonia que fazem esse serviço; esta vai ser responsável por ligar a rede criada na sua casa à internet através de uma porta disponibilizada na sua rua, e dessa porta a uma central local, regional e assim os seus dados vão circular em cabos de fibra ótica terrestres e submarinos ao redor do mundo. Se for a partir de uma rede 3,4 ou 5G, o seu dispositivo, a partir de um microcomponente de rede instalado nele, vai acessar uma determinada frequência emitida por diversas antenas, que vai permitir o acesso à mesma internet dos cabos. Com este aparato físico de ondas ou cabos por trás é que você vai ligar seu celular, notebook, computador de mesa, abrir um navegador e digitar “https://outraspalavras.org” ou “http://baixacultura.org” e ler esse texto, ou chegar a ele através de um e-mail, ou pelas redes sociais, principalmente Twitter, Facebook e WhatsApp – ainda a opção mais comum de entrada em alguns sites.
Uma opção alternativa (ou complementar) de infraestrutura de comunicação cada vez mais popular no mundo inteiro são as chamadas redes livres, que funcionam como grandes redes sem fio abertas, montadas a partir de um grupo de roteadores conectados entre si que propagam o tráfego entre usuários e também emitem serviços em banda larga a partir de pontos conectados à internet. É comum a utilização do protocolo de roteamento mesh, que oferece maior estabilidade à comunicação e também facilita sua expansão a áreas mais remotas, já que sempre é possível agregar novos nós à rede. Estas redes costumam funcionar de duas maneiras: se não têm nenhum ponto conectado à internet, funcionam como grandes intranets, onde os usuários têm acesso a uma rede comunitária offline e podem se comunicar entre si da maneira que quiserem e usufruir serviços nesta rede. Se um dos pontos tem acesso à internet, então se tornam opções mais baratas de conexão à internet – o que propicia a criação de pequenos provedores comunitários estruturados, uma opção real especialmente para lugares de difícil acesso onde as operadoras de internet não veem interesse em chegar ou chegam com serviços caros e ruins.
Uma das principais referências em nível mundial é a guifi.net, na Espanha. Criada a partir de 2004, é uma rede de telecomunicação comunitária e auto-organizada que conta com mais de 35 mil nós ativos e cobre cerca de 46 mil km de conexão sem fio nas regiões da Catalunha e València, com alguns nós chegando até a fronteira com a França, Andorra e outras regiões da Espanha, como as ilhas Baleares, Madrid, Andaluzia e País Basco. Começou como uma forma de ligar locais (casas, escritórios, propriedades rurais, até edifícios públicos) da zona rural de Osona, na Catalunha, que tinham dificuldades de acessar banda larga com qualidade, e a partir daí foi se expandindo para outras regiões, com nodos conectados à internet e outros não. Para além da infraestrutura técnica de conexão, uma das razões do sucesso de guifi.net foi a organização social da rede; com a expansão surgiu uma comunidade de voluntários, pequenos provedores, empresas e coletivos de usuários que se tornaram responsáveis pela manutenção da rede e criaram um ecossistema de funcionamento que teve o reconhecimento (e em alguns casos, apoio) dos órgãos públicos locais e estaduais. Hoje, há uma fundação por trás da comunidade – Fundació Privada per a la Xarxa Oberta, Lliure i Neutral guifi•net – que trabalha com o acesso às telecomunicações como um direito humano e é, ao mesmo tempo, uma entidade de voluntariado, uma ONG e uma operadora de telecomunicações constituída legalmente.
Há diversas outras iniciativas de redes livres também nas Américas. Rhizomatica começou em 2009, no México, e hoje desenvolve alternativas em telecomunicação por vários lugares do planeta tendo como critério a autonomia comunitária, auto-organização, infraestrutura descentralizada e engajamento crítico com a tecnologia. Como conta Bia Martins no site Em Rede, o apoio da Rhizomatica foi fundamental para a construção de uma rede de rádio com software livre na região de Oaxaca, no México, que atende 17 comunidades e conta atualmente com cerca de 3 mil usuários de serviço de telefonia móvel autônoma. Na Argentina, também desde 2009 existe AlterMundi, nascida em Córdoba, no vale de Paravachasca. Sua base inicial está em La Quintana, uma comunidade de 1000 habitantes que administra a rede a partir de uma assembleia presencial. No lado intranet das redes há serviços como portal, listas de e-mails, serviços de chat, streaming de uma rádio local e um repositório digital que guarda material audiovisual produzido pela comunidade. AlterMundi também teve pontos na região de Tigre, no delta do Rio da Prata. Na Colômbia, há a NetWork Bogotá, mais recente, de 2015, e com diversos nós espalhados pela região periférica da cidade.
Vídeos sobre o Altermundi, nova rede livre argentina:
No Brasil há uma cooperativa, a Coolab, que desde 2016 tem instalado redes em lugares de difícil acesso no país. Ela surge como uma iniciativa que agrega diversas pessoas envolvidas com projetos de telecomunicação comunitária, muitas delas antes agrupadas no portal Redes Livres. Alguns dos projetos de integrantes que hoje fazem parte da Coolab são a rede local (e conectada à internet) da Casa dos Meninos, zona sul de São Paulo; a Rede comunitária de Fumaça, em Resende (RJ), montada a partir de uma convocatória da Nuvem (Estação Rural de Arte e Tecnologia) na região ainda em julho de 2015; além de provedores comunitários no município de Campos (RJ), iniciativas de transmissão de rádio digital por ondas curtas na Amazônia e de redes em Porto Alegre e Santa Maria (RS). A partir de um prêmio no Desafio Equal Rating da Mozilla como projeto mais inovador, em 2017, a Coolab recebeu 30 mil dólares para fazer uma chamada pública de locais, entidades e pessoas interessadas em instalação da rede. O resultado foram mais de 50 inscrições e instalações de, até agora, pelo menos 5 redes livres, entre elas uma ligando quilombos e uma aldeia guarani no interior de Ubatuba; e uma em Juriti Velho, município paraense na fronteira com Amazonas. Em cada um destes locais, o objetivo é levar internet a uma comunidade ainda sem conexão, ampliar a área de um determinado ponto de acesso, distribuir uma conexão por meio de redes sem-fio (WiFi) em malha (mesh); criação de uma rede local sem fio (Intranet via wifi) com serviços diversos – armazenamento de arquivos, publicação, comunicação, gestão e outros serviços totalmente autônomos e independentes da Internet; e instalação de rede GSM para telefones celulares realizarem localmente chamadas de voz e mensagens de texto a custo marginal zero, com possibilidade de interconexão para chamadas externas com VoIP a tarifas módicas de atacado.
Sobre a Coolab, conversamos ano passado com Rodrigo Troian, integrante da cooperativa, no papo registrado abaixo, em que ele contou em detalhes como funciona o trabalho na montagem e manutenção destas redes.
Ainda que o acesso à Internet continue a depender de conexão com algum tipo de provedor público ou privado, portanto o mesmo esquema apontado anteriormente, as redes livres propiciam que comunidades inteiras se comuniquem correndo menos riscos de rastreamento. O monitoramento só atuaria na comunicação de alguém da rede com alguém de fora da rede – no caso, à internet. Não é uma imunidade total ao vigilantismo, mas na prática já representa uma liberdade de expressão um pouco maior em relação às redes normais de conexão. São também mais difíceis de vigiar porque os dados oscilam de maneira imprevisível entre os nós da rede, sem um polo centralizado. E, com a expansão dos nós, as redes livres podem funcionar como uma pequena internet, com os mesmos serviços oferecidos, como é o caso da AlterMundi, da Gufi.net e também da alemã Freifunk, uma das maiores do planeta.
Voltando à pergunta inicial desse texto, podemos dizer que as redes livres têm sido pequenas alternativas que estão a desmonopolizar o tráfego de informação nas redes. Há diversas questões ainda a resolver para estes projetos se tornarem mais robustos, e a primeira delas é a questão da sustentabilidade. Se a infraestrutura técnica para montar redes livres (basicamente antenas, cabos e roteadores) é de baixo custo, o problema recai para a organização social que vai gerir a rede, dialogar com outros nós e iniciativas semelhantes e cuidar da manutenção permanente da estrutura. Não à toa, as mais bem sucedidas redes globais desse tipo, como a Guifi.net, souberam construir um arranjo em que pessoas, entidades e poder público trabalham juntos para a manutenção, organização e o financiamento da rede. Desde que começou, estabelecer uma organização social também tem sido o foco das instalações da Coolab, que leva a cada nova rede construída pelo menos um responsável técnico e uma pessoa que vai fazer a articulação com a comunidade local para replicar os conhecimentos utilizados e manter a rede depois que a cooperativa fizer a instalação. Pequenas lojas de bairro, instituições de ensino, patrocinadores externos e um preço estipulado para cada usuário (sempre mais baixo que o das operadoras) são maneiras que a Network Bogotá, a AlterMundi e a Coolab tem encontrado para custear a infraestrutura social (e técnica) de manutenção de sua rede.
Outro entrave para a propagação das redes livres foi (ou está sendo) superado: a legislação. A criação de um provedor comunitário é permitida por lei no Brasil, embora não seja um processo tão simples e não visto com bons olhos pelas principais empresas de telefonia que operam no país, que sabemos ter um poder de lobby considerável no Congresso Nacional para alterar leis a seu favor. O já citado portal Rede Livre tem uma seção onde explica, passo a passo, todos os trâmites legais para operar dentro da lei atual.
Um terceiro e último ponto é o mais ameaçador e nos remete à ressaca do texto anterior: o poderio das grandes empresas de internet como Google e Facebook. Ambas já têm serviços, em fase final de teste ou em funcionamento, de estruturas técnicas que vão oferecer conexão à internet para comunidades distantes e de difícil penetração de provedores locais, como em regiões na África e na Ásia. Mesmo as muitas críticas que o Facebook recebeu com o Internet.org – projeto que visava oferecer alguns serviços da rede, escolhidos pela empresa, para locais com pouca infraestrutura – não foram suficientes para fazer o gigante do Vale do Silício desistir. Documentos obtidos em julho de 2018 pela Wired por meio de uma lei de acesso à informação dos Estados Unidos revelam que a companhia está trabalhando em um satélite para esse fim, chamado Athena. Já o Google tem o Project Loon, que leva a internet via balões a comunidades remotas ou locais com infraestrutura precária, como regiões de Porto Rico atingidas pelo furacão Maria em 2017 e o Quênia.
É fácil de prever que, mais do que “querer dar internet a quem não tem”, estas empresas buscam também ampliar seu quase monopólio do tráfego na internet para a questão da infraestrutura, hoje dominada por empresas de telefonia privadas ou por alguns serviços públicos. Fazem isso a partir de um discurso tentador; se você morasse numa localidade em que não chega sinal de internet, como não aceitar que uma empresa como estas ofereça esse serviço a um custo financeiro inicialmente baixo? As redes livres lutam contra gigantes que sabemos não serem fáceis de enfrentar, quanto mais derrotar.
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Redes livres, alternativa à Internet colonizada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU