14 Junho 2018
“A última viagem do apóstolo Paulo pode realmente conferir imagem e alma às milhares de jornadas de tantos migrantes que hoje chegam ao Canal da Sicília”, escreve Rosanna Virgili, biblista e professora de exegese no Instituto Teológico Marchigiano (agregado à Pontifícia Universidade Lateranense), em artigo publicado por www.viandanti.org, 13-06-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ela, “causa impacto a identidade dos mares, das ilhas e das cidades de porto, e causa impacto a maneira como os navegantes chegaram às margens da ilha de Malta: quem nadando, quem se segurando aos restos do navio destruído pela tempestade, transformado em improvisadas jangadas . E, felizmente, os malteses em vez de rejeitá-los, ou pedir-lhes os documentos, primeiro os "acolheram com incomum humanidade", até mesmo acendendo uma fogueira para aquecê-los (cf. Atos 28,1ss.). Só mais tarde os malteses se preocuparam em saber quem eram essas pessoas (e se tinham ou não o direito a asilo ...)”.
O cardeal Bassetti (presidente da Conferência dos Bispos da Itália – CEI) há poucos dias em Roma pediu expressamente aos católicos para não ter medo de se envolver na política, aliás, para engajar-se com sentimentos de caridade e com espírito de serviço nessa tarefa moralmente inevitável para eles. Espero que esse convite encontre uma correspondência, tanto através de uma contribuição de palavras e reflexões, como de ações/gestos e decisões concretas.
A política - com uma P maiúscula, de que muitas vezes tem falado o Papa Francisco - é feita de amor e paixão, relações, discussões, escolhas em favor do bem de todos em um país; por isso sua primeira vocação é cuidar dos mais fracos e marginalizados no esforço para readmiti-los na assembleia dos cidadãos livres. Uma obra que exige uma vigilância assídua de tudo o que acontece e muda, vivida com sabedoria e confiança.
Para fazer isso, os cristãos têm uma grande vantagem: o legado da história e da Palavra. Algo que pode ser comparado ao que, para os antigos romanos, foi o mos maiorum, ou seja, a "tradição dos antepassados." A isso saldava-se a sua estabilidade política e estava condicionado o sucesso no futuro próximo e remoto.
Da mesma forma para os católicos as Escrituras, o Evangelho, junto com a tradição dos Padres, a doutrina e o mare magnum de testemunho que santos homens e mulheres doaram com extrema abundância, constituem um valor imenso que não deve ser deixado sem investimento.
Mesmo na política, na verdade, cada dia é um kairós, um tempo bom para apresentar "coisas novas e coisas antigas". E quem fez isso foi o cardeal Ravasi ao twittar um versículo no discurso escatológico de Jesus no Evangelho de Mateus: "Fui um estrangeiro e vocês não me acolheram", comentando sobre as decisões de nossos líderes em relação ao navio Aquarius. Por isso, nós cristãos italianos, gostaríamos de agradecê-lo, por ter compartilhado a pérola luminosa da Palavra na ocasião política oportuna. Isso é política, isto é, a caridade inteligente que fecunda a obra da política.
Quando o ministro do Interior responde dizendo-lhe que sempre carrega consigo um terço e mantém no bolso o Evangelho, ao mesmo tempo em que decide recusar - independente das razões mais ou menos legítimas, que ele alega - o desembarque de um barco cheio de migrantes sem nome nem documentos, o coração do cristão não pode deixar de ser se sentir sacudido e perceber um contraste, um conflito, um contraponto.
Se aqueles cristãos que ouvem todos os domingos o Evangelho na Igreja não percebem uma contradição polar, um rangido entre as palavras de Jesus e dos Apóstolos e aquelas do ministro Salvini, quer dizer que tanto as primeiras como as segundas estão passando superficialmente, não são levadas a sério. Que nem sequer está sendo levado em consideração o conteúdo real do Evangelho e nem as palavras do Ministro. O que acaba sendo desmascarado é, sim, a reação instintiva, o grito visceral que nasce do medo e da preguiça mental de tantos - como nós! - bons católicos.
O tema dos migrantes é, de fato, central para toda a nossa Bíblia. Abraão era um migrante, Moisés era um migrante, Paulo de Tarso foi o maior "migrante" do Novo Testamento. E também Pedro - nascido e crescido em Cafarnaum - foi morrer em Roma. Seria valioso para aqueles católicos que hoje queiram atender ao pedido do presidente dos bispos italianos, que eles releiam, em primeiro lugar, os Atos dos Apóstolos. E percebam como, desde a primeira página, os apóstolos foram chamados a deixar a província para alcançar "os confins da terra" para levar a "alegria do Evangelho" (Atos 1.8).
O cristianismo é uma fé universal; ele acolhe a ideia de ecumène que já tinha se desenvolvido amplamente na bacia do Mediterrâneo e a estende para além de todos os limites e fronteiras (de lugar, língua, cultura e religião), ensinando-a também - no futuro - aos povos "distantes", começando com aqueles do Norte...Estas são coisas que sabemos.
Mas a foto do que está acontecendo hoje com o Aquarius, ou com os outros navios que estavam - e estarão novamente amanhã! - em movimento no Mediterrâneo já foi "postada" nos últimos capítulos dos Atos dos Apóstolos (capítulos 27-28). Se não fossem da Sagrada Escritura, se pareceriam com páginas dos jornais de hoje!
Há navios que partem das costas do Oriente Próximo, da Síria, da antiga Fenícia, que se cruzam e trocam os passageiros, para que possam realizar a sua almejada viagem e o seu sonho. São pessoas de todas as origens e condições sociais: comerciantes e prisioneiros, pessoas sob custódia - como o próprio Paulo! - e pessoas que buscam uma vida melhor (cf. Atos 27).
A última viagem do apóstolo Paulo pode realmente conferir imagem e alma às milhares de jornadas de tantos migrantes que hoje chegam ao Canal da Sicília.
Causa impacto a identidade dos mares, das ilhas e das cidades de porto, e causa impacto a maneira como os navegantes chegaram às margens da ilha de Malta: quem nadando, quem se segurando aos restos do navio destruído pela tempestade, transformado em improvisadas jangadas . E, felizmente, os malteses em vez de rejeitá-los, ou pedir-lhes os documentos, primeiro os "acolheram com incomum humanidade", até mesmo acendendo uma fogueira para aquecê-los (cf. Atos 28,1ss.).
Só mais tarde os malteses se preocuparam em saber quem eram essas pessoas (e se tinham ou não o direito a asilo ...).
Foi justamente passando nos portos do sul, que estavam todos abertos, que o Evangelho chegou à nossa Itália, através do grande Apóstolo. Se em Malta tivessem se recusado a receber os estrangeiros naufragados, o Evangelho não teria chegado a eles e depois até nós. Se em Siracusa o porto tivesse sido fechado, Paulo não teria conseguido prosseguir. E o mesmo vale para Reggio, para Pozzuoli e para o porto de Roma.
Se na época do Paulo em Malta e na Itália houvesse ministros do Interior como Salvini, o próprio Salvini, hoje, não poderia carregar no bolso um Evangelho... Eu acredito que ele deva saber isso, mas, acima de tudo, quem deve saber somos nós, cristãos da Itália, que devemos saber "onde" nascemos e quem "nos" gerou para a fé!
Na época de Paulo, também Roma, em plena expansão imperial, tentou defender-se dos "estrangeiros". Sempre nos Atos é mencionado o decreto de Cláudio, uma lei que estabelecia a expulsão dos judeus da Urbe (cf. Atos 18,2). Pelo fato que aqueles estrangeiros se tornavam cada vez mais numerosos e reivindicaram direitos civis, Roma tentou expulsá-los. Mas o curso dos eventos é tortuoso... e, depois de poucos anos, vemos que outro judeu - precisamente Paulo - desembarca na capital do Império.
Lá ele ficará por dois anos em um quarto alugado, porque, evidentemente, até mesmo os direitos dos prisioneiros eram permitidos e respeitados. E justamente naquele pequeno local – que pertencia talvez ao estado imperial, hoje diríamos à prefeitura de Roma! - Paulo "evangelizava" (cf. 28,30).
(A propósito, é verdade que na Itália há quatro milhões de apartamentos vazios???).
Uma última curiosidade: o grande desejo do Apóstolo dos gentios era de, depois de ter conhecido Roma, chegar à Espanha, como atestado pela Carta aos Romanos (Rm 15:24). Por uma estranha ironia do destino se hoje estivesse no navio Aquário chegaria primeiro ao seu último destino sem - quem sabe! – jamais ter conhecido a eterna Roma.
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A bordo do Aquarius também estava Paulo de Tarso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU