24 Abril 2018
"A CPT Nacional e a CPT Bahia vêm a público reafirmar os dados divulgados pela Pastoral na última segunda-feira (16) e as avaliações acerca da impunidade que se mantém nos crimes contra os povos do campo. Os dados de assassinatos e julgamentos apresentados pela CPT, entre os anos de 1985 e 2017, revelam esse cenário de descaso do judiciário" A nota é publicada por CPT, 20-04-2018.
A Comissão Pastoral da Terra / Regional Bahia e Nacional vem a público esclarecer o contexto das afirmações dadas em entrevista ao “Bahia Notícias”, no dia 17 de abril de 2018 (“No de mortes no campo sobre 150%; perdas de quilombolas chamam à atenção”), por Ruben Siqueira, seu assessor na Bahia e membro da Coordenação Nacional Executiva da entidade. A afirmação de que o processo de apuração estava parado, com inquéritos falhos e sem prisões de reais culpados, na verdade se referia genericamente à tendência histórica de impunidade deste tipo de crime contra os povos do campo, mais uma vez comprovada, conforme consta na publicação pela CPT, no dia 16 de abril de 2018, dos dados de apuração, julgamentos e condenações destes crimes desde 1985, que acompanhou a divulgação dos dados de assassinatos por conflitos agrários no país no ano passado. Aí consta que de 1.438 casos, com 1.904 vítimas, “apenas 113 foram julgados, o que corresponde a 8% dos casos, em que 31 mandantes dos assassinatos e 94 executores foram condenados”. Os casos dos nove quilombolas mortos na Bahia em 2017, ao que tudo indica, estão indo em direção semelhante ou sendo conduzidos sem investigar a real motivação dos crimes. Senão, vejamos:
Ocorrido em 06 de agosto de 2017, foi o massacre de seis quilombolas da comunidade de Iúna, no município de Lençóis, onde no dia 16 do mês anterior já havia sido assassinado Lindomar Fernandes Martins, liderança da comunidade em processo de reconhecimento e regularização como remanescente de quilombo. Os seis quilombolas são Adeilton Brito de Souza, Amauri Pereira Silva, Cosme Rosário da Conceição, Gildásio Bispo das Neves, Marcos Pereira Silva e Valdir Pereira Silva. O inquérito policial foi concluído apressadamente e apontou como única e exclusiva motivação disputa entre traficantes de drogas.
Desde a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em 20 de novembro de 2015, confirmando o pleito da comunidade, suas terras vinham sendo cobiçadas por pessoas de fora da comunidade, entre as quais algumas vinculadas ao tráfico de drogas. Mera coincidência? No caso de Lindomar, inicialmente, alegou-se a hipótese de latrocínio ou mesmo crime passional, sem menção ao tráfico. Após o massacre dos seis companheiros seus, tendo o tráfico apontado como a causa, este também passou a ser apresentado pela Polícia Civil como a motivação de seu assassinato.
Segundo reportagem do Correio 24 horas (“Apontado como causa de chacina, tráfico atormenta quilombolas em Lençóis”), haveria indícios de envolvimento no tráfico apenas em relação a um dos seis assassinados. As prisões efetuadas decorrentes do inquérito foram relacionadas apenas a esta hipótese. Neste contexto, sem garantias de proteção, as testemunhas não estão seguras em dizer o que realmente sabem. A condução do inquérito, a partir de então, descartou as demais linhas de investigação, principalmente no que se refere à disputa das terras que estaria fazendo convergir interesses do tráfico, de fazendeiros e de empresas. Após a chacina, as famílias permanecem amedrontadas, muitas abandonaram o território. A escola, após ser reaberta por um breve período, foi novamente fechada.
Trata-se do assassinato de José Raimundo Mota de Souza Júnior, em 13 de julho de 2017, na comunidade quilombola de Jiboia, em Antônio Gonçalves. O líder da comunidade e do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) teve a cabeça destruída por 10 tiros, com características típicas de execução e crime de mando, modus operandi de grupos de extermínio. Júnior, como era conhecido, havia se afastado da militância pública em 2016, justamente em razão de sucessivas ameaças que vinha recebendo. Dedicava-se à produção de alimentos agroecológicos na sua roça junto com os irmãos, o que fazia quando foi morto.
Inicialmente, segundo o delegado responsável, todas as linhas de investigação estavam sendo consideradas. Recentemente foi decretado sigilo sobre o inquérito policial e passou-se a afirmar, sem nenhum fundamento concreto apresentado, que a causa da execução estaria também relacionada a disputa do tráfico. Entretanto, em ofício à Superintendência de Diretos Humanos da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), o Incra aponta que havia um clima de ameaças e intimidações a lideranças da comunidade, inclusive o Júnior, desde que um determinado fazendeiro supostamente adquiriu uma área de terra dentro do território demarcado como quilombola conforme o RTID publicado em 22 de dezembro de 2016. A partir de então, a Polícia Civil não forneceu mais informações sobre o caso nem apontou a autoria do crime até o presente momento.
“Binho do Quilombo”, como era conhecido Flavio Gabriel Pacifico dos Santos, da comunidade de Pitanga dos Palmares, no município de Simões Filho, foi morto com mais de 10 tiros, em 19 de setembro de 2017. O líder quilombola estava dentro do seu carro, próximo à escola onde fora deixar o filho, quando foi abordado por homens em um veículo branco. Após as apurações iniciais, foram expedidos dois mandados de prisão contra suspeitos de serem os executores. Em 20/12, um deles, Leandro Pereira da Silva, o “Léo”, foi preso temporariamente, tendo sido liberado no início deste mês de abril. Segundo a Polícia Civil, as investigações em torno do caso continuam, mas ainda não há informações sobre a motivação do crime…
O aumento vertiginoso de assassinatos de camponeses em conflitos agrários, no Brasil e na Bahia, especificamente de quilombolas em nosso estado, e a volta dos massacres como uma das forma destes crimes, no contexto atual do país, levantam sérias questões para as autoridades e sinalizam alertas muito preocupantes para as comunidades violentadas, outras em situações semelhantes e entidades e pessoas que as apoiam. Poderosos interesses atuam sem freios numa ainda mais voraz busca pela terra como mero ativo econômico, supervalorizado no mercado global. Para isto contam com decisivo apoio do Estado: facilitações legais, subsídios financeiros, leniência quanto aos crimes cometidos e criminalização das lutas de resistência e de suas lideranças. Não ficam fora nem vinculações com crime organizado – tráfico, lavagem de dinheiro etc.
Aqui, na morte impiedosa e vil dos mais fracos, destituídos de todo direito, até do fundamental à vida, a face mais cruel da crise política e social – crise de destino como nação – em que a minoria de poder mergulha cada vez mais o Brasil. Mas não os deterão, nem a nós com eles, pois contamos com a luz e a força daquele que disse a verdade: “o que vocês fizeram a algum dos meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizeram” (Mateus 25,40).
Salvador, Bahia, 20 de abril de 2018.
Coordenação Nacional Executiva da CPT
Coordenação Regional da CPT Bahia
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Nota Pública da CPT sobre apuração dos assassinatos de quilombolas na Bahia em 2017 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU