05 Abril 2018
"No conjunto, uma imagem das amizades entre as mulheres que nada tem a invejar ao poder criativo das amizades masculinas: uma força irresistível, capaz de governar o mundo e de mudá-lo", escreve Anna Foa, historiadora, escritora, intelectual da religião judaica e professora da American University of Rome, em artigo publicado no caderno Mulheres Igreja Mundo do jornal L'Osservatore Romano, 03-04-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por muitos séculos a amizade foi considerada um fato unicamente masculino, um sentimento "superior", catártico, que eleva o espírito: Aquiles e Pátroclo, Euríalo e Niso, mas também David e Jónatas, a literatura e o próprio texto bíblico oferecem exemplos famosos. As mulheres ficavam rigorosamente excluídas, a sua amizade não era digna de nota, nem para ser narrada e sublimada em poemas e cantos. Mesmo quando o cristianismo introduziu uma concepção mais igualitária da relação entre os gêneros, filósofos e escritores continuaram a depender da grande tradição clássica em que, especialmente no mundo grego, eram apenas os homens a enobrecer nas escolas e nos simpósios os seus afetos rigorosamente masculinos. Um espaço para as amizades femininas abria-se, no entanto, nos conventos, tanto na irmandade entre as freiras como em casos excepcionais de laços entre as mulheres fora do comum, que permanecem confiados a sua correspondência, como Clara de Assis e Inês de Praga aqui analisado por Gabriella Zarri.
A reavaliação das amizades femininas, além dos estereótipos sobre a superficialidade das mulheres, e a interpretação de seu vínculos em termos de "afinidades eletivas", de elevação espiritual e cultural, são mais recentes e talvez ainda não totalmente consideradas. Este número tenta selecionar alguns momentos desse reconhecimento: além de Clara de Assis, as amizades espirituais de Chiara Lubich com suas companheiras; o vínculo no horror do campo de concentração entre duas mulheres excepcionais, Grete Buber-Neumann e Milena Jesenska, a Milena de Kafka; as amizades femininas através da imagem cinematográfica, uma janela extraordinária que revela nem tanto as sombras quanto as ambiguidades com que ainda são percebidas pelo olhar masculino. No conjunto, uma imagem das amizades entre as mulheres que nada tem a invejar ao poder criativo das amizades masculinas: uma força irresistível, capaz de governar o mundo e de mudá-lo.
"Nós nos conhecemos no campo de concentração feminino de Ravensbrück. Milena ficara sabendo das minhas tribulações por uma mulher alemã que tinham vindo para o campo viajando no mesmo comboio. (...) Apresentou-se para mim durante a caminhada das "recém-chegadas", ao longo do estreito caminho entre o fundo dos pavilhões e o alto muro do campo encimada por um arame farpado eletrificado, o muro que nos separava de liberdade. Quando se apresentou disse: "Milena de Praga". Assim começava, em um campo de concentração, a amizade entre duas mulheres excepcionais, Margarete Buber-Neumann e Milena Jesenska, uma amizade destinada a durar, no campo, até a morte de Milena em 1944. Margarete Buber-Neumann (Grete) acabou sobrevivendo e para recordá-la escreveu a biografia da amiga, lançada em 1977. Porque Milena Jesenska era aquela a que Kafka tinha dedicado as cartas para Milena. E Milena havia, por ocasião da morte de Kafka, escrito um belíssimo texto em sua memória.
Milena foi uma jornalista e escritora de Praga, nascida em 1896. Quando morreu, em Ravensbrück tinha quarenta e sete anos. Margarete era três anos mais jovem, era uma judia alemã, comunista. Ela havia se casado com o filho de Martin Buber (daí o sobrenome Buber), com quem teve duas filhas e de quem havia se divorciado em 1929. Margarete, naquela fase da sua vida, havia sido uma comunista ferrenha, e inclusive as razões de sua separação de Buber estavam ligadas ao afastamento dele do partido comunista, e em nome de sua ideologia havia perdido as filhas, que tinham sido entregues à sogra e, em 1938, emigraram para a Palestina.
Após seu divórcio de Buber, Margarete havia se casado com um político comunista, Heinz Neumann. Em 1933, fugiram para a Espanha, depois para a Suíça, e para a União Soviética. Eles viviam em Moscou, no Hotel Lux, o lugar onde moravam os comunistas estrangeiros. Aqui, em 1937, já em pleno clima dos grandes expurgos, Neumann foi preso pela polícia e fuzilado. No ano seguinte, também Margarete foi presa e condenada a cinco anos no gulag. Ela foi enviada para o Cazaquistão, no campo de Karaganda. Dois anos mais tarde, a União Soviética já ligada à Alemanha pelo pacto Ribbentrop-Molotov, entregou aos nazistas todos os refugiados alemães, judeus ou comunistas. "Ficamos parados, mantendo nossos olhos focados no lado oposto da ponte ferroviária que marcava a fronteira entre a zona polonesa ocupada pelos alemães e aquela ocupada pelos russos. Do outro lado, um militar veio se dirigindo na nossa direção a passos lentos.
Quando chegou mais perto, reconheci a boina dos SS", conta Margarete Buber-Neumann. Foi assim que na ponte de Brest Litovsk foi entregue aos nazistas que a enviaram para Ravensbrück, campo feminino inaugurado em 1939.
Milena Jesenska foi uma das figuras mais conhecidas na intelligentsia de Praga, uma espécie de duende cheio de vida, cortejada e amada por muitos, não só por Kafka, com quem teve uma história infeliz e apaixonada. Ela também entrou, como muitos outros intelectuais, no Partido Comunista, mas separou-se cedo e foi expulsa em 1936. Foi uma jornalista de sucesso, escrevendo para a revista de maior prestígio da política e da cultura "Prítomnos". Seus artigos de 1938-1939, nos oferecem um olhar lúcido sobre os acontecimentos da Checoslováquia, sobre a traição das democracias em Mônaco e sobre a invasão. Ela tinha uma filha, Jana Honza. Com a invasão, Milena se ligou à resistência. Mas foi presa em novembro de 1939. Um ano depois foi enviada para Ravensbrück, onde entrou como prisioneira política. Acabou ficando ali por quatro anos, até sua morte.
Foi, portanto, no campo de concentração de Ravensbrück que as duas mulheres se conheceram. Era um campo de concentração apenas para mulheres que ficou em funcionamento de 1939 até 1945 a cerca de cem quilômetros ao norte de Berlim, e que inicialmente abrigava duas mil mulheres, todas prisioneiras políticas alemãs e austríacas, mas chegou a contar com mais de quarenta e cinco mil. Exceto por alguns momentos, especialmente no período final, as prisioneiras eram principalmente políticas, antissociais, ciganas e mulheres acusadas de manter relações com judeus conspurcando a raça. As judias não superavam o 10 por cento. O número de mulheres que morreram ali oscila, de acordo com os historiadores, entre trinta e noventa mil. O número de mulheres que foram detidas supera o cem mil. A partir do outono de 1944, quando as câmaras de gás de Auschwitz pararam de funcionar, o campo foi equipado com uma, talvez duas, câmaras de gás e funcionou como um campo de extermínio. Ravensbrück foi libertado pelo Exército Vermelho em 30 de abril de 1945.
Como chefe do bloco do galpão das Testemunhas de Jeová, Grete carregava no braço uma faixa verde que lhe permitia certa liberdade de movimento. Milena, recém-chegada e colocada no bloco das recém-chegadas podia dar um curto passeio ao dia, e foi graças a essa circunstância que as duas prisioneiras começaram a se ver todos os dias, ao longo do estreito caminho que separava os galpões das recém-chegadas do muro do campo, alto e eletrificado, um caminho que Milena tinha apelidado de "o muro das lamentações". Milena questionou longamente Grete sobre sua história na Rússia de Stalin, sua relação com o comunismo.
Era uma história que a interessava muito como jornalista, mas também pessoalmente, porque ela, como Grete, tinha passado pela ideologia comunista e agora estava sendo boicotada pelas presas políticas comunistas e considerada traidora. É uma história trágica, esta da persistência dos ódios e das excomunhões, mesmo em campos de concentração, nas prisões, no exílio, que atingiu todo o universo comunista da época, nos terríveis tempos dos expurgos de Stalin e do acordo entre a União Soviética e a Alemanha, mas também depois. Não vamos esquecer que Stalin ordenou a deportação para o gulag da maioria dos soldados e oficiais do Exército Vermelho que sobreviveu aos campos de concentração, considerados "suspeitos" de traição.
A partir desses longos discursos do início de sua amizade nasceu um projeto para escrever um livro juntas depois de libertadas do campo, um livro sobre as duas experiências, o gulag e o campo de concentração. Elas o teriam chamado de "A era dos campos de concentração". Precisou passar meio século para tal projeto, idealizado por elas, se tornasse possível. Assim começou sua amizade, que durou até a morte de Milena, e que se tornou para as duas presas uma verdadeira razão para viver no horror do campo. "Quando estávamos juntas - escreve Grete - Milena e eu conseguíamos tolerar o insuportável presente. Mas por causa de sua força e sua exclusividade, a nossa amizade se tornou muito mais, se transformou em protesto aberto contra a degradação. Os SS poderiam nos proibir qualquer coisa, nos degradar a números, ameaçar de morte, submeter nos à escravidão, mas nos sentimentos que sentíamos uma pela outra, Milena e eu éramos livres, intocáveis".
Aproveitando a posição de maior liberdade de Grete, as duas mulheres se encontraram quase todos os dias, falaram e contaram suas histórias. Grete ajudou Milena, toda empenhada em apoiar tanto quanto possível as mais fracas, as mais necessitadas, um traço este muito forte de seu caráter que não a abandonou nem mesmo no campo de concentração. A amizade tornou-se cada vez mais estreita, enquanto ao seu redor o campo ficava cada mais duro, com o enorme aumento de prisioneiras, os experimentos médicos e, por fim, a partir de 1944, a construção de uma câmara de gás. As amizades femininas no campo eram muito importantes, nos relata Grete. Entre as políticas, as relações de amizades, apesar de intensas, restavam geralmente no plano platônico, entre as antissociais e as criminosas assumiam um caráter lésbico, reprimido violentamente pelos SS.
Mesmo no campo, onde era uma das coisas proibidas, Milena escrevia: poemas, cartas para Grete, que depois tinha que destruir para sua grande dor para evitar que fossem descobertos. Milena escrevia com facilidade, também escreveu uma página de introdução ao livro que elas planejavam escrever juntas. Nada sobreviveu do que foi escrito em Ravensbrueck. No inverno de 1943-1944 Milena ficou muito doente. Grete conseguia vê-la por alguns minutos todos os dias, às escondidas, e às vezes, levar-lhe algo para comer. Ele morreu em 17 de maio de 1944 e, portanto, não teve tempo de ver a transformação, no outono de 1944, do campo em um campo de extermínio, com a construção da câmara de gás para onde, como doente, certamente teria sido enviada.
Grete sobreviveu e, em 1949, contou a sua prisão no gulag testemunhando em favor de Viktor Kravenko no processo que em Paris opôs o escritor russo, autor do livro Escolhi a liberdade, à revista comunista "Les Lettres Françaises". Muitos anos mais tarde escreveu o livro sobre Milena, um tributo extraordinário à amiga perdida. Ela morreu em 1989, o ano da queda do Muro de Berlim.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Amigas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU