15 Dezembro 2017
Distintos entre si, fordismo e toyotismo tinham algo em comum: a oferta, aos trabalhadores, de compensações parciais. O novo arranjo “produtivo” é retrocesso puro.
A opinião é de Marco Antonio Gonsales de Oliveira, Doutor em Administração (PUC-SP) e professor da Universidade São Judas Tadeu, Rodrigo Bombonati de Souza Moraes, mestre e doutor em administração e professor na Faculdade Drummond e no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, e Rogério de Souza, publicada por Outras Palavras, 13-12-2017.
No início do século XX, a Ford inovou as relações de trabalho ao implementar salários melhores e controle ideológico: um modo de produção que combinava a gerência racional e científica aliada a um sistema de remuneração mais agressivo, oferecendo salários acima da média e um conjunto de benefícios até então desconhecidos do mundo industrial.
Uma das expectativas do fundador era que os próprios trabalhadores pudessem comprar os veículos que produziam. Além disso, esses trabalhadores precisavam seguir o perfil desejado pela empresa, o modelo subjetivo proposto por ela. Para tanto, os funcionários da Ford Motor Company deveriam comprovar que seguiam um estilo de vida condizente com a empresa e aprovado por um departamento especializado que examinaria a vida privada dos trabalhadores, impondo valores como fidelidade conjugal, estabilidade familiar e emocional, repulsa ao álcool e à vida boêmia, apego à religião e ao patriotismo.
Décadas depois, sem desprezar as escolas que lhe antecederam, a Toyota do pós-guerra inovou e recuperou a capacidade flexível da produção artesanal, regulada pela demanda (just in time), sem perder a capacidade da produção em massa, além de promover um novo projeto de engajamento. O paradigma da administração toyotista ou flexível valeu-se do sentimento de pertencimento a um grupo que parecia ser, no Japão dos anos 1970, ainda mais forte do que a acepção de individualidade. Para perpetuar tal harmonia nas relações entre empresa e trabalhador, principalmente nos países ocidentais, essa prática sabiamente recorreu à escola das Relações Humanas e disseminou as ideias da gestão participativa, da cooperação, do consenso, da integração e da participação, além da retórica da valorização dos grupos informais. Quem fiscaliza o produto e corrobora o seu aperfeiçoamento é o próprio trabalhador, transformado em colaborador que faz parte de uma equipe e é responsável e responsabilizado diretamente pelos resultados da empresa.
Nesse contexto, foram de suma importância para o desenvolvimento dos conceitos do toyotismo as escolas da Administração Estratégica, hegemônica no final dos anos 1970, e o seu conceito de core business, e também a Administração Empreendedora, dominante no final da década de 1980, que estimulou e profissionalizou uma vasta rede de micro e pequenos negócios, preparando-os para servirem às grandes corporações.
Não há nenhuma novidade na busca capitalista pelo resultado — a busca racional pelo lucro, segundo Weber (2004). O fordismo, sob as condições de racionalização propiciadas pelo desenvolvimento tecnológico no início do século XX, principalmente nos EUA, tornou-se o pioneiro na articulação entre coerção capitalista e consentimento da classe trabalhadora. De certo modo, o modelo flexível deu continuidade ao processo de racionalização capitalista com os novos avanços tecnológicos do início da década de 1970, principalmente por meio da tecnologia da informação e da comunicação, que possibilitaram a reestruturação organizacional. Os entusiastas desses modelos flexíveis de gestão, como John Naisbitt (1982) e Alvin Toffler (1980), acreditavam que a superação do fordismo pelos conceitos do toyotismo nos levaria a uma sociedade mais democrática para além dos muros e das paredes das grandes fábricas.
Hoje, no entanto, a realidade daqueles que vivem do trabalho evidencia que tais previsões estavam equivocadas e que o que temos é uma sociedade mais desigual do que no período fordista, seja nos países centrais ou periféricos, com raras exceções. Em outras palavras, o toyotismo, como uma das frentes fundamentais do avanço do neoliberalismo, especializou-se em reestruturar e exteriorizar sem perder o foco no objetivo principal da empresa, a partir da cooptação dos trabalhadores e do gerenciamento de uma vasta rede de terceirizados. Logrou-se atribuir ritmos intensos em condições precárias de trabalho sem a total consciência do trabalhador e de grande parte da rede de terceiros.
Depois da gestão fordista e toyotista, é a vez de a empresa Uber emprestar o seu nome para denominarmos o novo paradigma da gestão contemporânea: a empresa uberizada.
Nesse novo processo de reestruturação organizacional, as empresas inovam a partir de conceitos da economia de plataforma, também conhecida como economia compartilhada e economia do bico.
Na realidade, um processo de radicalização do projeto toyotista de ajuste à demanda, exteriorização do trabalho e subjetivação. Se o modelo japonês logrou em transformar o trabalhador em colaborador, agora, por meio dos conceitos da economia do compartilhamento, eis que surge o consumidor, colaborador e chefe: uma nova morfologia do trabalho que borra as fronteiras entre consumo e trabalho, entre o que é trabalho e o que não é, entre trabalhador e consumidor, entre o trabalho e o bico (Abílio, 2017), entre trabalhador-empreendedor.
Um modelo que se espalha por todo o mundo são as milhares de iniciativas como a TaskRabbit, a Zazcar, a Parkingaki, a Holidog e a famosa Airbnb. Essa última, uma empresa que presta serviço para pernoite e que nunca construiu um hotel nem mesmo contratou um profissional de turismo, já é a maior rede de prestação desse tipo de serviço no mundo. Fundada em 2009, a empresa oferece 1,2 milhão de vagas por noite, 500 mil vagas a mais do que a maior rede de hotéis do mundo, a InterContinental (Slee, 2017). Já a norte-americana Taskrabbit, conhecida por oferecer serviços rápidos domésticos e para escritórios, como montagem de móveis, limpeza, pequenas reformas entre outros, não para de aumentar o seu número de clientes. No Brasil, a Zazcar tem feito sucesso: mesmo sem nunca ter comprado um automóvel, oferece carros de aluguel de pessoas que não estão sendo utilizados – veículos on demand, segundo a própria empresa. A Parkingaki faz o mesmo, não possui estacionamento e também não contrata nenhum manobrista, mas oferece, “em um click”, vagas em garagens para locação mensal ou de apenas algumas horas. Outra conhecida empresa brasileira presente na economia do compartilhamento é a Holidog. A organização é uma espécie de Airbnb para cachorros, onde você pode encontrar pessoas dispostas a receber e hospedar o seu “amigão” enquanto você viaja.
São empresas que se beneficiam de forma criativa dos avanços tecnológicos, promovidos e guiados pelo capital, “destroem” mercados tradicionais através de estratégias que consideram apenas a ética dos negócios, sem levar em conta as relações, inclusive legais, que estabelecem com as comunidades onde estão inseridas, sejam com os seus concorrentes, consumidores, fornecedores ou trabalhadores.
No âmbito do consumo, os chamarizes das empresas da economia do compartilhamento, como apontou a pesquisa, já não tão recente, da PWC, realizada em 2015 nos EUA, são: o preço, a eficiência e sua “pegada” ecológica. Segundo a PWC, 44% dos americanos já estavam familiarizados com o termo da economia do compartilhamento. Destes, 86% confirmaram o menor custo dos serviços e produtos oferecidos pelas empresas uberizadas. Já 83% respaldaram os benefícios e a eficiência dos serviços prestados, e 76% concordaram que a economia compartilhada é uma opção “mais ecológica” ante o mercado tradicional. Afinal, para que uma furadeira se o que precisamos são apenas furos? Para que um carro se o que precisamos é apenas nos deslocar?
Por outro lado, as empresas uberizadas logram a conquista de corações e mentes amargurados da classe trabalhadora, os partners – desempregados ou empregados precarizados em busca de um complemento para a sua renda ou de um ambiente menos despótico. As empresas da economia do compartilhamento navegam nas oportunidades que a sociedade do trabalho, em crise, oferece: consumidores em busca de baixo preço e trabalhadores em situação de desespero.
A economia compartilhada não é apenas um modelo organizacional, é um conceito e uma ferramenta que pode ser apropriado por qualquer empresa em qualquer setor – indústria ou serviço, tradicionais ou digitais. É uma plataforma digital que ultrapassa a esfera da comunicação (sites, blogs, e-mail, mensagens de texto e redes sociais) e da venda (e-commerce) e se insere na contribuição e na cooperação da fabricação do produto ou da prestação do serviço.
Mesmo empresas tradicionais da era digital como a Microsoft oferecem aos seus consumidores ajuda de outros clientes experts que trabalham gratuitamente para a empresa. Rádios, jornais e TVs solicitam informações e notícias dos seus próprios ouvintes, leitores e telespectadores, como, por exemplo, a revista norte-americana Time. A revista cede espaços em seu site para que os clientes colaboradores gratuitamente contribuam com conteúdo. Em 2007, a gigante farmacêutica Novartis utilizou o conceito de open innovation, promovido por Henry Chesbrough, da Universidade de Berkeley, para avançar em suas pesquisas sobre a diabetes tipo 2. O laboratório disponibilizou grande parte da sua pesquisa de três anos para domínio público e solicitou em contrapartida e gratuitamente o trabalho de cientistas e empresas do mundo todo (Tapscott, Willians, 2010).
Para que contratar profissionais se temos milhares de pessoas disponíveis para trabalhar gratuitamente ou quase? Essa é uma prática conhecida e já amplamente explorada há décadas pelos bancos e pelas fábricas de móveis, em que tais empresas transferem parte do trabalho para o cliente, seja por meio do sistema internet banking ou do ‘monte você mesmo’ o seu mobiliário, criado pela empresa de móveis sueca Ikea. As tradicionais e conhecidas Natura e Avon, entre tantas outras empresas, nunca contrataram um profissional de vendas, utilizam-se das suas próprias clientes como “consultoras” (na prática, simplesmente vendedoras) (Abílio, 2017).
Outra antiga do mundo digital, a Amazon, cada vez mais se insere na economia do compartilhamento por meio de empresas como a Flex, um serviço de entregas que usa pessoas comuns, e não funcionários treinados, para entregar caixas e pacotes nos EUA. Ela também lançou o Home Services, que localiza encanadores, pintores, montadores de móveis, entre outros serviços. Outro serviço na linha da economia do compartilhamento é a loja online Handmade at Amazon, em que produtos artesanais e caseiros são ofertados e distribuídos (Scholz, 2017). A indústria não fica atrás no processo de reestruturação, exteriorização e comprometimento dos consumidores. A impressora 3D promete transformar o setor industrial. Assim, além de montarmos os móveis em casa, a impressora 3D permitirá a finalização de inúmeros produtos em nossas próprias residências. Steve Vincent (2011) denominou esse tipo de trabalho de voluntary emotional labour (trabalho voluntário emocional).
A terceirização e a produção em rede foram para o toyotismo o que novo consumidor, agora, como parceiro empreendedor, está sendo para as empresas uberizadas: a possibilidade de se reduzir ainda mais o custo da mão de obra. As constantes reestruturações organizacionais transformam a morfologia do trabalho, e dos seus resultados derivam as principais implicações para a degradação das condições de vida, dada a precarização crescente das condições de trabalho. São reestruturações que se inserem na própria dinâmica do capitalismo do século XXI. Portanto, as novas formas de organizar e de remunerar a força de trabalho fazem com que a regularidade do assalariamento formal e a garantia dos direitos sociais e trabalhistas sejam reduzidas drasticamente (Abílio, 2017; Fleming, 2017; Pochmann, 2017) e nos obriguem a indagar: que tempos são esses em que ser explorado e ter um trabalho formal tornou-se um privilégio?
Rafael Zanata (2017), Trebor Scholz (2017), Tom Slee (2017), entre outros, entendem que as plataformas de compartilhamento não são novidades, são apenas grandes classificados digitais, em que pessoas que precisam de um bem ou serviço encontram os que possam oferecê-los por intermédio de grandes empresas. Portanto, o intermediário que possibilita esse encontro de troca deveria ser o menos importante nesse elo. Para contrapor essa lógica, os autores propõem que os/as próprios/as trabalhadores e trabalhadoras desenvolvam as suas plataformas, com a ajuda de prefeituras, sindicatos e iniciativas autônomas. Já são centenas de trabalhadores e trabalhadoras que desenvolvem o que chamam de cooperativismo de plataforma, valendo-se da autogestão e do cooperativismo.
O cooperativismo de plataforma pretende ressignificar os conceitos de inovação, tecnologia e eficiência tendo em vista o benefício de todos, e não de poucos proprietários e acionistas. Tal proposta assemelha-se à Economia Solidária, desenvolvida no Brasil pelo economista Paul Singer. São plataformas como a de serviço de transporte realizado pela Transunion Car Service de Newark, a Bliive, em São Paulo, e a Coopify, de Nova York, na conexão entre pessoas da mesma comunidade com o objetivo de trocar competências e conhecimentos, a Cooperative Cleaning, de Nova York, onde as trabalhadoras da limpeza residencial e comercial criaram a sua própria plataforma, ou mesmo, a La’Zooz, de Tel Aviv, que atua na oferta de caronas dentro da cidade. São diversos exemplos de iniciativas similares pelo mundo como contrapeso aos modelos de negócios da Uber, Airbnb e tantas outras.
Um contrapeso importante, mas não nos iludamos. As cooperativas e as empresas autogestionárias, no sistema capitalista, sofrem inúmeras desvantagens que não caberia levantá- las neste momento. Não é difícil perceber que também na economia compartilhada a alternativa pelo cooperativismo será, assim como no mercado tradicional, importante, mas de pequena expressão. São alternativas à heterogestão que podem também se beneficiar das plataformas de compartilhamento. São importantes à resistência ao capital, mas não são suficientes para que sejam consideradas constitutivas de mudanças na estrutura de reprodução sociometabólicas do capital (Mészáros, 2002).
Destarte, o modelo que se alastra mundo afora é o da Uber, pois dá sequência à lógica da reestruturação contínua do sistema capitalista que permite a momentânea superação das suas crises, propiciando novamente o excedente de capital. No entanto, as relações de trabalho nas organizações fordistas, e mesmo nas toyotistas, valorizam, no limite, o trabalhador e a garantia de uma dose de direitos, com destaque para a previdência social. O uberismo marca o retorno das condições de trabalho semelhantes àquelas praticadas antes das conquistas da classe trabalhadora. Ou seja, estamos diante da recapitulação da economia de bico – um “negócio da China” para os “neopatrões”.
Abílio, L. C. (2017) Uberização traz ao debate a relação entre precarização do trabalho e tecnologia. IHU-Online 503.
Mészáros, I. (2002) Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo.
Morozov, E. (2015) Resistir à uberização do mundo.
Naisbitt, J. (1980) Megatendências. As dez grandes transformações ocorrendo na sociedade moderna. Tradução: José E. Mendonça. Amana.
PWC (2015). The sharing economy. Consume Intelligence Series.
Scholz, T. (2017) Cooperativismo de plataforma. Tradução: Rafael A. F. Zanatta. Editora Elefante, Autonomia Literária & Fundação Rosa Luxemburgo.
Slee, T. (2017) Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução João Peres. Editora Elefante.
Tapscott, D. Willians, A. D. (2010). Macrowikinomics: new solutions for a connected planet.
Toffler, A. (1980) A terceira onda. A morte do industrialismo e o nascimento de uma nova civilização. Tradução: João Távora. Record.
Vincent, S. (2011) The emotional labour process: An essay on the economy of feelings. Human Relations 64(10): 1369–1392.
Weber, M. (2004) A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras
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Luta de classes na era do Uber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU