07 Novembro 2017
Massas de imigrantes sujos, barbudos e esfarrapados, com rostos turvos de dar medo, invadem a região mais próspera do país. Invadem a cidade entoando uma música beduína. Trazem doenças, corrupção, luxúria e criminalidade. Quem os convidou foi um estrangeiro, imigrante como eles, um clandestino que bajulou os governantes. Ele conseguiu até com que fosse nomeado ministro, enchendo os habitantes locais de impostos. Será punido com a fúria do povo, enforcado dentro de uma jaula de ferro, apenas depois de outro malfeito, o estupro de uma jovenzinha local.
A reportagem é de Siegmund Ginzberg, publicada no jornal La Repubblica, 02-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
São imagens do filme Jud Süss, de Veit Harlan. Foi um dos maiores sucessos de todos os tempos nas telas alemãs. De 1940 a 1943, teve mais de 20 milhões de telespectadores.
Ele estreou da Mostra de Cinema de Veneza. “Não hesitamos em dizer que, se isso for propaganda, então seja bem-vinda a propaganda... um filme de perfeita unidade e equilíbrio... de estupefaciente maestria é o episódio em que Süss violenta a menina...”, escreveu um jovem crítico na época com 28 anos de idade. Chamava-se Michelangelo Antonioni.
De fato, o filme é bem-feito. Em muitos aspectos, é uma obra-prima. Uma obra-prima de incitação ao ódio.
Ele foi encomendado ou, melhor, produzido por Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler. E tornou-se uma das mais formidáveis promoções publicitárias para o extermínio. Persuasão em massa, muito mais do que literária, como as “Bagatelas por um massacre”, de Cèline... Foi projetado simultaneamente em cerca de 20 cinemas de Berlim, em centenas de salas em todo o Reich.
Ir vê-lo tornou-se obrigatório para os membros da Juventude Hitleriana, praticamente todos os jovens alemães. E, depois, em todas as capitais ocupadas e até mesmo em alguns países neutros. Ele foi dublado em russo e ucraniano. Projetaram-no também em Auschwitz. Para encorajar os carrascos e destruir a moral das vítimas.
“Vocês tinham que ver a cara dos prisioneiros no dia seguinte!”, um dos guardas testemunharia no processo ocorrido em 1961.
A imprensa do Reich tinha instruções precisas. O filme não devia ser apresentado como propaganda antissemita, mas como “representação objetiva dos judeus”. Eles se esforçavam para fazê-lo passar como reconstrução fiel de fatos históricos: a ascensão, o processo, a condenação e a execução do conselheiro financeiro do Duque de Württemberg em meados do século XVIII. “Fatos que realmente aconteceram”, afirmavam as manchetes.
O filme começa com uma fictícia “página de história” sobre “como o judeu Süss ingressou em Stuttgart”, contornando as antigas proibições de imigração. Continua-se mostrando como, depois, ele atraiu uma maré de outros migrantes, que entram em Stuttgart “como gafanhotos”, entoando o “Canto do Camelo”, melodia composta por um sionista que emigrou para a Palestina da Ucrânia.
Processado depois da guerra, Harlan se defendeu defendendo que o seu filme não chamava a exterminar os judeus, mas “apenas” a fazê-los ir embora da Europa. Goebbels rejeitara um primeiro roteiro, talvez porque fosse descaradamente antissemita demais. Ele queria, acima de tudo, dar a impressão de autenticidade. O diretor conseguiu até fazer com que judeus chegassem a Praga. Foram-lhe necessários comparsas com “autênticos” traços judaicos.
Dos cerca de 200 recrutados, apenas um sobreviveu. Ele teria se vangloriado de ter obtido efeitos “realmente demoníacos” com aquelas fisionomias. Estavam tão consoantes com o estereótipo que Goebbels considerou oportuno divulgar, por ocasião da estreia, um comunicado em que se esclarecia que nenhum dos atores tinha “sangue judeu”.
Werner Krauss, que no filme interpretava a maioria dos judeus e rabinos, se vangloriou de ser tão bom como ator que não precisou recorrer a um nariz postiço.
Foi Goebbels pessoalmente que indicou para o papel de Süss o prestigiado Ferdinand Marian, um sedutor nato, ídolo das espectadoras. Passando por cima do fato de ter se casado (e depois se divorciado) com uma pianista judia, com quem também tiveram uma filha. O resultado é que, na maior parte do filme, o personagem apontado para o ódio não se distingue mais por sinais exteriores. Tirando a barba mal feita, os cachos, o cafetã desgastado, a quipá, ele assume a aparência de um refinado cavalheiro da corte. É um imigrante perfeitamente integrado. É um judeu mascarado e, portanto, mais perigoso. É a prova da necessidade de forçar os judeus a exibirem a estrela amarela.
Outro dos filmes da mesma série antissemita promovida pelo Partido Nazista, o documentário Der Ewige Jude, “O eterno judeu”, recorria a dados, tabelas, animações, sobreposições de migrantes e ratos imundos, filmados até na degradação humana dos guetos da Polônia ocupada para ilustrar como era perniciosa a invasão da Europa por parte da raça proveniente do Oriente Médio. Com alguns retoques, poderia passar por um documentário estilo Liga Norte sobre refugiados e terroristas de hoje.
Jud Süss é um filme muito mais assassino. Precisamente porque finge não ser grosseiro. A peça forte, como em quase todos os linchamentos e os pogroms, é a violência sexual perpetrada pelo estrangeiro escuro contra a sua vítima branca. No filme, ela é interpretada nada menos do que pela nova esposa sueca do diretor, muito loira e com um rosto de anjo. Ela é cobiçada pelo judeu, se suicida depois de ter sido desonrada.
A introdução do estupro é totalmente gratuita. Não há, em nenhuma outra das cerca de 200 versões diferentes (na forma de obra literária, teatral, musical, fílmica ou radiofônica), precedentes da história. Em Jud Süss de Lion Feuchtwanger, de 1925, assim como no filme britânico do mesmo título que foi feito a partir dele em 1934, quem morre, enquanto tenta escapar de uma tentativa de estupro por parte do catolicíssimo duque, é a filha de Süss. No relato que o romântico Wilhelm Hauff escrevera um século antes, quem se suicida, traída pelo namorado ariano, é a irmã judia de Süss.
Estereótipos sobre os judeus também abundam em todas essas outras versões, mas Süss é a vítima. Vítima dos preconceitos, dos jogos de poder, do feroz conflito entre católicos e protestantes, em que os judeus se encontraram no meio como vasos de argila.
A descoberta nazista consiste em tomar um caso autêntico, que se presta como poucos outros para o romance, o enforcamento do conselheiro financeiro do Duque de Württemberg em 1738, e manipulá-lo para obter o máximo de efeito de ódio.
Na realidade, os juízes originais também haviam tentado pôr no meio a relação proibida entre o judeu e mulheres alemãs (com as leis raciais nazistas de Nuremberg, ele se tornaria passível de morte novamente). Mas sem sucesso. Tanto que a condenação foi emitida por genérica Präpotenz (abuso de poder), e não, como se pretendo no filme, com base em uma antiga e esquecida lei contra as relações entre judeus e não judeus.
O filme, como outras produções nazistas, na Alemanha de hoje, continua sendo proibido. Na Itália, encontra-se na íntegra na internet. Estou convencido de que deveria ser mostrado nas escolas como exemplo de como se pode construir um linchamento epocal com base em fake news.
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O que nos ensina o filme mais racista já produzido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU