15 Setembro 2017
"Se a cultura secular pós-moderna mudou profundamente a imagem do homem e do mundo, também precisamos de uma nova imagem de Deus e da Igreja".
O comentário é de Andrea Lebra, publicado por Settimana News, 06-09-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se alguém tem respostas para todas as perguntas, eis que esta é a prova de que Deus não está com ele. Isso significa que é um falso profeta, que usa a religião para si mesmo. Os grandes líderes do povo de Deus, como Moisés, sempre deixaram espaço para as dúvidas. É preciso deixar espaço ao Senhor, não para as nossas certezas. (Papa Francisco, A minha porta está sempre aberta. Uma conversa com Antonio Spadaro, Rizzoli, Milão, 2013, pp. 97).
"A gente só tinha se questionado sobre o que queríamos realmente fazer de nossas vidas. Ele respondeu: Eu gostaria de me tornar um santo - e eu acredito que tenha se tornado: a resposta naquele momento me causou uma forte impressão. No entanto eu resolvi contradizê-lo, e disse mais ou menos isso: eu gostaria de aprender a acreditar”.
Este é um trecho de uma carta que Dietrich Bonhoeffer escreveu em 21 de julho de 1944 ao seu amigo Eberhard Bethge [1] relatando uma conversa que teve, durante a sua estadia no Union Theological Seminary em Nova Iorque (setembro 1930-junho 1931), com o pastor francês Jean Lassere.
Incredulità
Francesco Cosentino
Cittadella | 184 Páginas
€ 11,73
O projeto de vida de Bonhoeffer "Eu gostaria de aprender a acreditar", voltou à minha memória durante e depois da leitura de Incredulità (‘Descrença’), publicado recentemente pela editora Cittadella. [2]
O autor, Francesco Cosentino, professor de teologia fundamental na Gregoriana, já no passado brindou-nos com reflexões estimulantes [3] sobre o "dizer Deus" na pós-modernidade, destacando a necessidade e urgência de purificar as suas imagens. Na verdade, ele é "firmemente convencido de que a banalização do nome de Deus e do uso que fazem dele muitos cristãos e muitas Igrejas continuam a ser um dos motivos invocados pelo ateísmo contemporâneo ou, pelo menos, que responde por uma reação negativa contra a fé cristã" (p. 8). [4]
O novo livro do prof. Cosentino aborda, com uma linguagem clara e acessível também para quem não é teólogo, uma temática de grande significação e atualidade.
Foi publicado dentro da série da Cittadella "As palavras da fé", com curadoria de Giovanni Ancona, Giacomo Canobbio e Armando Matteo.
Isso imediatamente nos informa que "fé e descrença estão próximas" (p. 5). "Há um descrente em cada crente" (p. 8). Até mesmo o crente mais convicto tem a consciência de estar como se suspenso entre a luz da fé e a penumbra da dúvida. "O caminho da fé sempre viaja na semiescuridão" (p. 14). A pouca fé ou descrença é uma experiência constitutiva também do discípulo (p. 39).
A relação dialética entre a fé e a descrença é uma consequência do mistério da Encarnação que nos recorda a paradoxalidade do cristianismo: falar de Deus significa sempre fala do humano e para o humano. Falar de Deus é falar dos sonhos, dos desejos, das fragilidades, das contradições e da inquietude do ser humano "e, portanto, também de sua descrença" (p. 7).
A viagem fascinante de Francesco Cosentino nos caminhos de descrença como palavra da fé desdobra-se em três etapas principais, que constituem os três capítulos do livro. A relação entre a fé e descrença é ilustrada de um ponto de vista bíblico (primeiro capítulo), histórico-filosófico (segundo capítulo) e existencial-pastoral (terceiro capítulo).
As Sagradas Escrituras judaicas e cristãs prospectam uma abordagem não superficial para o tema da relação entre fé e descrença. O Deus da Revelação, mesmo quando se coloca amorosamente no encalço dos seres humanos para dialogar com eles, continua a ser um Deus totalmente outro e um Deus escondido.
Na proibição das Escrituras hebraicas para produzir imagens de Deus [5] está contido um convite implícito a olhar para além, para abrir o coração para uma confiança que transcende o sensível e imediato, para reconhecer a inefabilidade do mistério de Deus, que se recusa a dizer seu nome a Moisés, [6] e mostrar o seu rosto. Ao mesmo tempo, porém, através de Moisés, ele é revelado como o Deus de compaixão e do compartilhamento, da proximidade e da história (p. 16-17), que "vê" e "conhece"[7] os sofrimentos dos seres humanos e desce do alto de sua transcendência para apoiá-los em seu caminho para a liberdade, a responsabilidade e a consciência.
Quanto às Escrituras cristãs, o Evangelho, mesmo representando a revelação máxima e definitiva de Deus, porque se identifica com a vicissitude humana de Jesus de Nazaré "acolhe em si mesmo a matriz judaica do discurso sobre a transcendência e inefabilidade de Deus" (p. 17).
São particularmente interessantes as considerações do autor no tema da descrença entendida como idolatria: tema recorrente na Escritura e em toda experiência religiosa, que atesta o esforço do coração humano para “suportar e gerenciar a distância e a diversidade de Deus" (p. 23).
A idolatria substitui o Deus vivo e verdadeiro de Israel e de Jesus Cristo com um deus reconfortante e desresponsabilizante, invocado para justificar as preguiças interiores ou para legitimar as convicções intelectuais (p. 26).
Passar do ídolo a Deus significa passar de um deus que acalma e narcotiza as consciências ao Deus que inquieta e responsabiliza. "Criamos novos ídolos. O culto do antigo bezerro de ouro (Ex 32,1-35) encontrou uma nova e impiedosa versão no fetichismo do dinheiro ou na ditadura de uma economia sem rosto e sem um propósito verdadeiramente humano".[8]
No segundo capítulo é apresentada uma longa discussão sobre a palavra "descrença" nas várias formas de ateísmo.
Nos confrontos com o ateísmo, entendido como um sistema filosófico de pensamento bem organizado e estruturado, Cosentino coloca-se de forma respeitosa e dialogante (pp. 48-85). Referindo-se à crítica ao cristianismo proposta por ateus rigorosos da modernidade como Feuerbach, Marx, Freud o Nietzsche, ele evidencia como esta tem sido e continua a ser capaz de desafiar a fé cristã em muitos aspectos e lançar provocações sobre o anúncio de um Deus muitas vezes apresentado em detrimento da humanidade (p. 72), ou seja, do desejo de uma vida mais livre e mais feliz (p. 77) e, mais ainda, da alegria em geral (p. 82).
O autor, em seguida, concentra-se naquela forma de descrença que hoje assumiu a característica de indiferença religiosa. A visão dominante da pós-modernidade parece ser de uma vida que se despede das 'grandes narrativas', que não tem grandes paixões e ideais, sonhos e utopias, mas que muitas vezes é achatada na apatia, na resignação, na banalidade do cotidiano e na veneração dos ídolos do consumismo e do entretenimento (pp. 86-91). Ao contrário do ateísmo radical, "a indiferença simplesmente não se inquieta e não atribui ao problema religioso qualquer tipo de relevância e consideração. Este é um desafio para os nossos dias, que o cristianismo e a Igreja não podem ignorar" (p. 91).
Quanto às formas contemporâneas de neoateísmo, que se move em um terreno polêmico e agressivo, quase burlesco e goliardo, por vezes violentamente anticlerical e enfadonhamente carregado de slogans (pp. 91-97), o juízo de Francesco Cosentino é totalmente taxativo "o novo ateísmo parece querer fugir de qualquer possibilidade de diálogo, preferindo abraçar argumentos às vezes bastante obsoletos, apoiando-os com espírito de controvérsia para elevar o confronto e desqualificar qualquer um que tenha opinião diferente. Muitas vezes, os argumentos desse novo ateísmo apresentam-se na forma de pura banalidade, alicerçados em si mesmos e totalmente fechados (...) ao confronto, descambando assim para uma qualidade intelectual bastante baixa" (p. 97).
A profunda convicção do docente de Teologia Fundamental da Gregoriana, já explicitada em outros escritos anteriores de sua autoria, é que, em muitas formas de ateísmo ou de indiferença religiosa, exista um referimento a um deus hostil, tirânico, opressor, "tapa-buracos", substancialmente anti-humano. É o mesmo Deus que também os cristãos rejeitam (ou devem rejeitar), para se abrirem com admiração ao verdadeiro rosto de Deus revelado pelo Senhor Jesus. [9]
O terceiro capítulo do ensaio oferece insights de grande atualidade sobre as mudanças ocorridas nas últimas décadas e as possibilidades de uma evangelização sempre "nova" apta a alimentar os questionamentos e os desejos dos homens e das mulheres da contemporaneidade e "despertar a demanda de Deus" (p. 110). Isso é feito, valorizando a rica tradição teológica do século XX - de Edward Schillebeeck a Karl Rahner, de Johann Baptist Metz a Henri de Lubac - que trouxe à luz o caráter provocativo que a descrença apresenta ao cristianismo, tentando, simultaneamente, fazer emergir a beleza do Evangelho como projeto de plena humanização (p.103).
Se a cultura secular pós-moderna mudou profundamente a imagem do homem e do mundo, também precisamos de uma nova imagem de Deus e da Igreja.
"A relação entre fé e descrença precisa se abordada como relação fé/cultura finalmente entendida evangelicamente: estar no mundo com simpatia e com espírito de discernimento crítico-profético" (p. 100).
Isso comporta, para cada comunidade crente, estar na complexidade da pós-modernidade sem sofrê-la, estar nos conflitos sem exorcizá-los com respostas cômodas, estar na ambiguidade sem rejeitá-la (p. 100); contribuindo assim para criar as disposições para que o Evangelho seja ouvido e aceito como tal - isto é, como a boa e envolvente mensagem de Jesus de Nazaré - até mesmo pelas mulheres e homens de hoje. "A Igreja pretende anunciar que a fé em Cristo é oportunidade e possibilidade libertadora para a qualidade da existência humana e das suas relações inter-humanas; não se trata, pois, de uma transmissão de simples conteúdos, de abstratas verdades ou de mandamentos a serem observados, mas da iniciação àquele encontro pessoal com Deus (grifo do autor, ndr), que inaugura uma nova qualidade das relações consigo mesmo e com os outros, tornando-se assim arte de viver e possibilidade, para a existência, de ter sucesso de uma forma verdadeiramente humana" (p. 146).
Enquanto palavra da fé, portanto, a descrença é "palavra crítica que coloca em teste a fé e, paradoxalmente, pode torná-la profética e inquieta, a ponto de abrir uma brecha na dúvida daquele que ainda não cruzou o seu limiar" (p. 167).
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Referências:
[1] Dietrich Bonhoeffer, Resistenza e resa, Editrice Queriniana, Brescia, 2002, p. 504.
[2] Francesco Cosentino, Incredulità, Cittadella Editrice, Assis, 2017.
[3] Francesco Cosentino, Un Dio possibile. Cristianesimo, immaginazione e “morte di Dio”, Cittadella Editrice, Assis, 2009; Id., Immaginare Dio. Provocazioni postmoderne al cristianesimo, Cittadella Editrice, Assis, 2010; Id., Il Dio in cammino. La rivelazione di Dio tra dono e chiamata, Ed. Tau Editrice, Todi, 2011; Id., Sui sentieri di Dio. Mappe della nuova evangelizzazione, Edizioni San Paolo, Cinisello B. (MI) 2012. Cf. Settimana n. 18 de 5 de maio de 2013, Un Dio che sa danzare.
[4] Como relembra a encíclica Gaudium et spes, n. 19: "Pelo que os crentes podem ter tido parte não pequena na gênese do ateísmo, na medida em que, pela negligência na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião" (GS 19).
[5] Ex 20,1-4. [6] Ex 3,13-15. [7] Ex 3.7.
[8] Papa Francisco Evangelii Gaudium, n. 35.
[9] João 1:18 ( "Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou.") e João 14,8 ( "Quem me viu, viu o Pai").
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"Gostaria de aprender a acreditar" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU