09 Mai 2017
"O imaginário do armário carece de nova significação e pode ser pensado à luz do respeito à dimensão de mistério constitutiva de cada ser humano, dimensão a exigir minha postura ética de reverência e de acolhida", escreve Omar Lucas Perrout Fortes de Sales, doutor em Teologia pela FAJE e doutorando em Filosofia pela UFMG.
Eis o artigo.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Caetano Veloso
A metáfora “sair do armário”, comumente utilizada como alusão à atitude de assumir publicamente a orientação sexual não configurada dentro dos padrões heteronormativos povoa há tempos o imaginário do coletivo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans) assim como o imaginário social acerca de tal grupo.
O presente artigo propõe a saída do armário como movimento fruto de exercício da autonomia e da emancipação do sujeito perante a realidade à sua volta. Ilumina positivamente o armário aqui retratado como a morada interior constitutiva e originante da identidade pessoal de cada ser humano.
Nesse intuito, não se fará menção à origem da expressão em jogo, tampouco se contestará os significados a ela já atribuídos. Urge propor abordagem humanizadora a valorizar o direito de se vivenciar e de se partilhar a intimidade pessoal de acordo com a autonomia do sujeito implicado.
No mundo globalizado habitado pela diversidade, a imagem evocada pela ideia da “saída do armário” carece de outras leituras e interpretações. No presente caso, não se trata de negar o significado já consolidado no uso corrente de tal expressão; antes de se propor e de se afirmar positivamente o armário, para tanto se ancorando na afirmação do exercício da autonomia do sujeito.
O armário pessoal configura-se como “lugar” no qual se guardam coisas novas e coisas velhas, ambas consideradas importantes para o sujeito. Tais coisas são as lembranças, as vivências, a historicidade, as escolhas (a autonomia enquanto a capacidade de se gerir suas escolhas e de orientar as próprias ações), os medos, os anseios, as luzes e sombras a desenhar o sujeito. De todos os itens citados merece particular atenção a historicidade do sujeito. Cada pessoa é fruto de sua historicidade, ou seja, do entorno no qual nasceu, no qual estudou, onde despertou a consciência de ser indivíduo distinto de outros, etc. As escolhas pessoais encontram-se condicionadas ao universo de possibilidades existentes. Um exemplo: na década de 1980 a internet não havia sido difundida no Brasil e desse modo, historicamente impossível de ser acessada.
Tal armário pode ser compreendido como a morada interior de cada pessoa, repleta de gavetas e compartimentos, alguns destes de caráter mais público e outros de caráter mais privado, de acordo com o modo de ser pessoal e com o quanto cada um pretende dar-se a revelar ao outro, a partir da compreensão possuída acerca de si. Aqui reside a dimensão relacional do armário:
1- Eu diante de minha realidade humano-existencial (minha morada interior);
2- Minha realidade humano-existencial perante o outro e os outros.
Nem sempre constitui atitude fácil o olhar para dentro de si e visitar esse armário aqui compreendido como intimidade. O meu “armário” é a minha intimidade. Sair do armário configura o lançar da minha intimidade para fora desse dentro racional, psíquico, afetivo, espiritual, cultural e histórico, caracterizados como minhas circunstâncias. O armário remete ao oculto e ao escuro, haja vista os armários das residências se encontrarem geralmente de portas fechadas. A intimidade, para além da dimensão de ocultamento, apresenta horizonte aberto de possibilidade, do vir-a-ser, da pertença e afirmação (e ou negação) daquilo que me constitui como pessoa. Pessoa vem do grego prósopon (máscara) recepcionado pelo latim como per-sonare (fazer soar a melodia da vida). Assim sendo, a intimidade pessoal congrega as melodias executadas ao longo do percurso existencial.
Ora, considerar o armário como intimidade permite a passagem de uma imagem estática a um modo atuante de ser e de se situar perante o mundo e também perante a construção da intimidade e da identidade. Inclusive da identidade e da intimidade que ainda escapam à apreensão de minha consciência. Afinal, a grande centralidade da razão apregoada pelo racionalismo encontra um de seus limites na descoberta do inconsciente. Não somos apenas razão e a nossa razão não nos determina plenamente. O inconsciente pode ser considerado como a intimidade da intimidade a saber: a intimidade ainda não devidamente acessada e ruminada.
O encontro do sujeito com o seu próprio eu implica a atitude de desnudamento de si para vir à tona o que se encontra por vezes amparado por cortinas, máscaras, mecanismos de defesa e, paradoxalmente, de proteção do eu interior e da intimidade constitutiva e determinante desse eu.
Essa viagem em busca de si requer habilidade e maturidade para se deparar com aquilo que faz com que o eu seja eu e não o outro. E muitas vezes essa intimidade pode apresentar surpresas e realidade/condição divergente da moralidade dominante, dos valores culturais e religiosos normatizados pela família e pela sociedade. Impõe-se aqui o dúplice desafio de acolher o próprio modo de ser e de abraçar até mesmo as limitações, a finitude, a caducidade, a impermanência à qual todo ser humano se encontra entrelaçado.
Acolher positivamente a própria intimidade, inclusive com as redes vivenciais causadoras de temor e de angústia, exige a acuidade de se abrir para situar-se amorosamente diante de si e abraçar generosamente os arranjos e os rearranjos historicamente possíveis de serem tecidos até o presente momento. Isso sem perder de vista o horizonte da possibilidade de mudança, de aprimoramento ou de afirmação da própria intimidade. A minha intimidade diz respeito inalienavelmente a mim; sou responsável por minhas escolhas e sobre estas recaem ônus e bônus gerados por minhas ações e posicionamentos.
A acolhida da intimidade possibilita o encontro, a familiaridade e a (re)conciliação com a morada interior enquanto processo constante de aprofundamento de si e de contato com a riqueza única de seu universo pessoal. Tal encontro acontece de acordo com as condições de possibilidade de o sujeito situar-se perante si e, desse modo, protagonizar a aventura do mergulho naquilo que se é. E, se for o caso, acolher e abraçar o que considera o negativo da vida. Vale ressaltar: o que é qualificado como negativo para x pode ser positivo para y, indiferente para z, pode ser tomado como negativo hoje e positivo amanhã, etc. Há de se assumir posicionamento receptivo diante da existência passível de constantes mudanças.
A saída do armário deve ser pensada como disposição do sujeito para dar-se a conhecer e como êxodo, ou seja, como movimento de saída de si em direção ao encontro com o outro mediante o ultrapassamento da tênue e significativa distância entre as alteridades. De outro modo, sair do armário apresenta-se como via propícia à instauração da revelação da intimidade pessoal e condição indispensável ao encontro assimétrico de intimidades. Cada pessoa revela sua intimidade em intensidades e níveis diferentes, de acordo com percursos e vivência. A assimetria desse encontro se deve ao fato de cada eixo da relação já possuir de antemão uma responsabilidade pelo outro. Responsabilidade esta a anteceder a própria liberdade do sujeito. Donde dizer não ao outro, negar a sua alteridade, constitui extermínio da intimidade e do modo de ser alheio e, inversamente, instaura afirmação ditatorial do meu eu.
A etimologia da categoria revelação radica-se ao termo latino revelatio, da qual provém. Nesse contexto, apresenta duplo significado: refere-se ao que simultaneamente se dá a conhecer e se oculta. Essa dialética de abertura e ocultamento encontra-se garantida pelo prefixo ‘re-’ presente nas palavras compostas e tem o sentido tanto de repetição de algo idêntico, quanto o de passagem para situação oposta. Desse modo, ‘re-velar’ demarca o ato da passagem do oculto para o manifesto, o qual não exclui o horizonte de uma reduplicação, de um permanecer do véu e, até mesmo inclui o colocar do véu justamente no ato em que este parecia já ter sido retirado.
Paradoxalmente, “sair do armário” alberga ainda uma reserva de sentido. A revelação da intimidade pessoal pressupõe o ocultamento de si e a preservação da morada interior não totalmente trazida à tona, tampouco conhecida em sua totalidade. O ato de censurar o outro por não “sair do armário” constitui violência contra a vivência da intimidade alheia e desrespeito para com o tempo necessário ao outro para narrar-se e revelar a sua intimidade, caso assim o queira. Claro, existe a possibilidade de o outro optar por não revelá-la. Considerar a não saída do armário como atitude enrustida do sujeito, sobretudo no tangente à orientação sexual, instaura atentado à dignidade da pessoa. A decisão de revelar a intimidade pessoal compete a cada um. E tal revelação não se dá na mesma medida para todos os indivíduos. Pode-se abrir a intimidade pessoal de um modo para o empregador, de outro para o cônjuge, de outro para o colega, de outro para o amigo, de outro para a família... Em todos os casos há de se garantir a autonomia do sujeito perante a (im)possibilidade da revelação da intimidade. Isso não se trata de assumir postura enrustida, mas de exercício de liberdade do sujeito inscrever ou não a sua intimidade junto à intimidade do outro. Anterior à curiosidade ou ao interesse pela intimidade alheia, sobrepõe-se a exigência de ocupar-se responsavelmente pela preservação da intimidade do outro e a da própria intimidade. Em perspectiva ampla, intimidade não se limita à orientação sexual (ou ao seu exercício); inclui também questões econômicas, políticas, religiosas, de saúde, de trabalho, ideológicas e etc. Nessa extensão da compreensão da morada interior (do “armário”), em maior ou em menor medida todos buscam garantir o direito à privacidade e à vivência de sua intimidade.
Deliberar espontaneamente sobre a revelação/partilha da intimidade pessoal caracteriza atitude primordial para a conquista da emancipação do sujeito perante o risco da ditadura do outro (ser humano, instituições, sociedade) diante do eu e perante a invasão arbitrária e violenta da morada interior de cada ser humano. A morada alheia eticamente exige a prática do cuidado e não de especulações ou proposições invasivas acerca da intimidade que não me pertence.
O imaginário do armário carece de nova significação e pode ser pensado à luz do respeito à dimensão de mistério constitutiva de cada ser humano, dimensão a exigir minha postura ética de reverência e de acolhida.
As portas do armário hão de se abrir de modo distinto junto aos atores envolvidos, em tempo oportuno e de acordo com o contexto no qual se inserem e em sintonia com o grau de confiança e de reciprocidade das intimidades em diálogo. Como exigência ética impõe-se o reconhecimento e a afirmação da diversidade, ou no mínimo, a atitude humana de permitir que outro seja verdadeiramente outro e não mera extensão ou reprodução de um modo de ser regado de pretensões totalizantes do meu eu.
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A “saída do armário” como possibilidade emancipativa de vivência autônoma da intimidade pessoal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU