17 Fevereiro 2017
"A tolerância é fundamentalmente a virtude que subjaz à democracia. Esta só funciona quando houver tolerância com as diferenças partidárias, ideológicas ou outras, todas elas reconhecidas como tais", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Eis o artigo.
Hoje no mundo e mesmo no Brasil impera muita intolerância, face a alguns partidos como o PT ou aos de base socialista e comunista. Intolerância severa, por vezes criminosa, que algumas igrejas neopentecostais alimentam e propagam contra as religiões afro-brasileiras, satanizando-as e até invadindo e danificando terreiros, como ocorreu na Bahia há alguns anos. Há intolerância que leva a crimes especialmente contra o grupo LGBT. Vítima de intolerância é também o Papa Francisco, atacado e caluniado até com cartazes espalhados pelos muros de Roma, porque se mostra misericordioso e acolhe a todos, especialmente os mais marginalizados, coisa que os conservadores não estão acostumados a ver nas figuras tradicionais dos papas.
O cristianismo das origens, da Tradição do Jesus histórico – contrariamente à intolerância da inquisição e de uma visão meramente doutrinária da fé – era extremamente tolerante. Jesus ensinou que devemos tolerar que o joio cresça junto com o trigo. Só na colheita far-se-á a separação. São Pedro, já feito apóstolo, seguia os costumes judeus: não podia entrar na casa de pagãos nem comer certos alimentos, pois isso o tornaria impuro. Mas, ao ser convidado por um oficial romano, de nome Cornélio, acabou visitando-o e constatou sua profunda piedade e seu cuidado pelos pobres. Então concluiu: ”Deus me mostrou que nenhum homem deve ser considerado profano e impuro; agora reconheço deveras que não há em Deus discriminação de pessoas mas lhe é agradável quem, em qualquer nação, tiver reverência face a Deus e praticar a justiça” (Atos 10,28-35).
Desse relato se deduz que o diálogo e o encontro entre as pessoas que buscam uma orientação religiosa, como no caso do oficial romano, invalidam o preconceito e o tabu de coibir algum contato com o diferente.
Do fato resulta também que Deus é encontrado infalivelmente lá onde “em qualquer nação houver reverência face ao Sagrado e se praticar a justiça”, pouco importa sua inscrição religiosa.
Ademais Jesus ensinou que a adoração a Deus vai para além dos templos, porque “os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade e são estes que o Pai deseja” (Jo,4,23). Existe, portanto, a religião do Espírito, quer dizer, todos os que vivem valores não materiais e são fiéis à verdade estão seguramente no caminho que conduz a Deus. Cada um, em sua cultura e tradição, vive à sua maneira, a vida espiritual e se orienta pela verdade. Este merece ser respeitado e positivamente tolerado.
Suspeito que não há maior tolerância do que esta atitude de Jesus, abandonada ao largo da história, pela Igreja-poder institucional (parte da Igreja-povo-de-Deus) que discriminou judeus, pagãos, hereges e tantos que levou à fogueira da Inquisição. No Brasil temos o caso clamoroso do Pe. Gabriel Malagrida (1689-1761), que missionou o norte do Brasil mas por razões políticas foi morto pela Inquisição em Lisboa por “garrote, e depois de morto, seja seu corpo queimado e reduzido a pó e cinza, para que dele e de sua sepultura não haja memória alguma”.
Eis um exemplo de completa intolerância, hoje atualizada pelo Estado Islâmico (EI), que degola a quem não se converte ao islamismo fundamentalista praticado por ele.
Enfim, que é a tolerância hoje tão violada?
Há, fundamentalmente, dois tipos de tolerância, uma passiva e outra ativa.
A tolerância passiva representa a atitude de quem permite a coexistência com o outro não porque o deseje e veja algum valor nisso, mas porque não o consegue evitar. Os diferentes se fazem, então, indiferentes entre si.
A tolerância ativa consiste na atitude de quem positivamente convive com o outro porque tem respeito a ele e consegue ver suas riquezas que sem o diferente jamais veria. Entrevê a possibilidades da partilha e da parceria e assim se enriquece em contato e na convivência com o outro.
Há um dado inegável: ninguém é igual ao outro, todos têm uma marca que diferencia. Por isso existe a biodiversidade, as milhares formas de vida. O mesmo e mais profundamente vale para o nível humano. Aqui as diferenças mostram a riqueza da única e mesma humanidade. Podemos ser humanos de muitas formas.
O ser humano deve ser tolerante como toda a realidade o é. A intolerância será sempre um desvio e uma patologia e assim deve ser considerada. Produz efeitos destrutivos por não acolher as diferenças.
A tolerância é fundamentalmente a virtude que subjaz à democracia. Esta só funciona quando houver tolerância com as diferenças partidárias, ideológicas ou outras, todas elas reconhecidas como tais. Junto com tolerância está a vontade de buscar convergências através do debate e da disposição ao compromisso que constitui a forma civilizada e pacífica de equacionar conflitos e oposições. Esse é um ideal ainda a ser buscado.
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A tolerância necessária e urgente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU