01 Dezembro 2016
"A conclusão é clara: o 'capital natural' não é uma forma realista de integrar a natureza na economia ou fazer seu valor tangível. Esta é uma ilusão que agrava e legitima a crise ambiental. E se alguns acreditam no seu potencial, a maioria dos investidores que dirigem o atual sistema econômico sabe muito bem que falar de 'capital natural' é ilusório", escrevem Bram Büscher e Robert Fletcher, professores de Sociologia do Desenvolvimento e Mudança, Universidade de Wageningen, em artigo publicado por Eco21 e republicado por Envolverde, 29-11-2016.
Eis o artigo.
Ao longo dos últimos dez anos, uma rede cada dia mais forte de stakeholders estratégicos e organizações não governamentais com influência e atuação internacional promoveu a ideia de um “capital natural”. Essa seria a chave para o desenvolvimento sustentável, em particular para expressar questões de conservação em termos que economistas, políticos e CEOs entendem.
No recente Congresso Mundial de Conservação, realizado pela IUCN no Havaí, o “capital natural” esteve onipresente no lançamento do Protocolo do Capital Natural e o anúncio de uma nova coalizão que visa desenvolver a financeirização da conservação.
No site do Fórum do Capital Natural, o conceito é descrito nestes simples termos: “A comida que comemos, a água que bebemos e os materiais que usamos para produzir combustível, equipamentos ou medicamentos”. Este exemplo é fundamentado na suposição de que o conceito do “capital natural” pode se tornar a base para uma economia sustentável. Mas dois argumentos principais deste programa (que a natureza pode ser vista como um capital e de prestação de serviços e que o capital pode se tornar a base para uma economia sustentável) estão baseados em enganos; enganos que agravarão os efeitos negativos da nossa economia de crescimento globalizado, e não combatê-los.
Certificar como “capital natural” o alimento que comemos e a água que bebemos só tem sentido no contexto de um crescimento econômico que não é nosso. Nesse contexto, tudo deve ser considerado um “capital”. Em seguida, é necessário clarificar o verdadeiro significado dessa palavra. Na linguagem cotidiana e de acordo com algumas teorias econômicas, o capital é muitas vezes visto como um “estoque” ou como um conjunto de ativos. Mas, é preciso ver o capital como um processo, uma dinâmica.
Trata-se de investir dinheiro (ou valores) para ganhar mais dinheiro (ou valores). Em suma, o capital é o valor em movimento.
O capital num sistema de economia capitalista, nunca é investido para render nada. O objetivo é sempre obter mais dinheiro ou valores, muito além do que fora investido inicialmente. Caso contrário, não seria capital.
Segue-se que o deslizamento do conceito de “natureza” para o de “capital natural” não é uma mudança de terminologia inocente, que consiste na utilização de um novo termo para significar a mesma coisa. É mais uma reconceitualização, de uma reavaliação fundamental da natureza. Para os defensores do “capital natural”, a natureza trabalha para o crescimento capitalista. Isso foi então chamado de “crescimento verde” o que é um eufemismo adocicado.
Se o deslizamento do conceito de “natureza” ao do “capital natural” é um problema, é também porque ele pressupõe que as diferentes formas do capital – humano, financeiro, natural – são equivalentes e intercambiáveis.
Na prática – embora os partidários do “capital natural” o neguem enfaticamente – isso significa que tudo pode ser expresso numa unidade comum e quantitativa: dinheiro. Mas os elementos naturais, inerentemente complexos, qualitativos e heterogêneos, como esses mesmos adeptos reconhecem, não podem resultar em unidades monetárias quantitativas e homogêneas.
Além disso, existe uma contradição fundamental entre a natureza ilimitada do dinheiro (sempre pode gerar mais dinheiro) e os limites do “capital natural” (nem sempre se pode transformar o “capital natural” em capital monetário).
O conceito de “capital natural” é, portanto, intrinsecamente antiecológico e tem muito pouco a ver com a valorização da natureza ou com o fato de fazer o seu valor tangível. Esta é uma forma de exploração da natureza que tem como objetivo promover e legitimar uma economia em declínio.
O outro postulado dos partidários do capital natural consiste em afirmar que ele permite lançar as bases para uma sociedade sustentável. Na prática, no entanto, é claro que a maioria das empresas e governos não querem investir num “capital natural”. Assim, mesmo que se colem etiquetas de preços nos elementos naturais – sabendo que é impossível determinar o valor total da natureza – uma recente pesquisa mostra que os mercados dedicados ao “capital natural” e aos serviços dos ecossistemas estão falidos. Na realidade, não são de forma alguma mercados, mas sim subsídios disfarçados.
Além disso, os investimentos privados a favor do “capital natural” são insignificantes em comparação com os investimentos em atividades econômicas não sustentáveis. Estas atividades são muito mais rentáveis, e são uma forma do capital onde o “valor em movimento” é mais eficiente.
Quando o Governo do Equador, por exemplo, solicitou a empresas do país que conservassem a área protegida do Parque Nacional Yasuní, as promessas de investimento permaneceram bem abaixo do que se esperava e as aplicações financeiras reais foram ainda muito menores do que fora anunciado. Resultado: o país agora permite que as empresas perfurem o Parque para extrair petróleo.
Além disso, afirmar que o “capital natural” ajuda a tornar tangível o valor da natureza é um argumento hipócrita. O valor da natureza é perfeitamente visível para os investidores: eles sabem que a destruição é muito mais rentável do que investir para salvar a natureza.
De forma alarmante, o “capital natural” leva à destruição da natureza, sob o pretexto de protegê-la. Os programas baseados no “capital natural” geralmente oferecem compensar a destruição da natureza, e esta destruição gera os fundos necessários para investir na sua conservação. De acordo com a lógica do “capital natural”, os investimentos em atividades econômicas não sustentáveis são “compensados” pelos investimentos equivalentes em atividades econômicas sustentáveis.
Em teoria, esta prática deve resultar em nenhuma perda líquida – ou melhor, ainda, com um impacto líquido positivo sobre a natureza e a biodiversidade. Na verdade, ela leva a uma contradição insustentável ao induzir que a natureza só pode ser preservada se primeiro for destruída.
Mas, como mencionado, há um problema virtual porque os investimentos reais na conservação do “capital natural” são insignificantes. Pior ainda, as empresas costumam investir muito mais dinheiro em poderosos lobbies para manter a regulamentação ambiental com o mínimo controle, regulamentações e normas possíveis. Se eles sinceramente acreditassem na rentabilidade da conservação, teriam menos vontade de continuar com esse lobby.
A conclusão é clara: o “capital natural” não é uma forma realista de integrar a natureza na economia ou fazer seu valor tangível. Esta é uma ilusão que agrava e legitima a crise ambiental. E se alguns acreditam no seu potencial, a maioria dos investidores que dirigem o atual sistema econômico sabe muito bem que falar de “capital natural” é ilusório.
Entretanto, fazendo a promoção deste conceito, eles também sabem que questões mais importantes sobre a lógica do sistema econômico vigente e sobre aqueles que se beneficiam, não serão formuladas.
Não é hora de sair de uma economia baseada no fetichismo de um crescimento que não é sustentável? Não deveríamos considerar a construção de uma economia centrada no ser humano, na natureza e na igualdade, em vez de insistir num investimento financeiro destinado a criar cada vez mais riqueza? Não podemos apostar numa economia centrada na qualidade de vida, em vez da quantidade do crescimento?
Com um pouco de imaginação, as respostas a estas perguntas não são apenas simples, mas também pragmáticas, lógicas e verdadeiramente sustentáveis.
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A falácia do capital natural - Instituto Humanitas Unisinos - IHU