25 Novembro 2016
“Sendo fiel ao chamado do Pai a ser outro Cristo, Ellacuría subiu à cruz. Contam que Ellacuría voltou de Barcelona a San Salvador levado por uma paixão: o Reino. Contam que voltou a El Salvador e foi levado pelo Pai Reino Adentro”, escreve o jesuíta José María Segura, SJ, diretor do Serviço Jesuíta a Migrantes (SJM) – Valência, em artigo publicado no sítio do Apostolado Social da Conferência de Provinciais Jesuítas da América Latina, 23-11-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Contam que Ellacuría subiu à cruz. Contam que estava em Barcelona. Que tinha ido dar uma série de conferências e receber um prêmio da Fundação Comín, outorgado à UCA (Universidade Centro-Americana). Que chegaram notícias de que a situação em El Salvador era extremamente delicada. Que inclusive seu provincial insistiu para que não voltasse...
Contam que Ellacuría voltou a San Salvador consciente do risco que corria..., mas lhe impelia o princípio da misericórdia e a necessidade de tratar de continuar mediando pela paz.
Contam que Ellacuría negociou e se reuniu com o governo e os “guerrilheiros”, com gangues, com bispos, filósofos e com quem precisava para tratar de mediar em favor da paz. Contam que isso lhe custou a vida.
Contam que Ellacuría subiu à cruz.
E não é de estranhar. Não está desarmonia com a vida doada de um homem de Deus que sonhou e defendeu a Civilização da Pobreza, esse mundo, essa cultura, em que as sociedades pauperizadas pelo norte opulento tomariam as rédeas, e seriam o centro das políticas e os programas de “desenvolvimento”. [...] Não é incomum que fosse eliminado pelo “poder deste mundo” aquele que criticou a ideologização: a geração de discursos ideológicos que se colocavam a serviço do poder e quem advertiu dos mecanismos que as instituições utilizam para perpetuar a si próprias.
É próprio de um mártir da misericórdia assumir sobre si a violência que tanto e tão lucidamente criticou, tanto por parte do estado como por parte da “revolução”. É consequência de uma vida historicizada de quem animou a própria Igreja a exercer a suspeita da historicização: que estruturas e arrazoados estão inevitavelmente condicionados pelas circunstâncias históricas e são, portanto, revisáveis? Que os poderosos viram como inimigo e o executaram.
Ellacuría inevitavelmente chocou com o poder estabelecido, ao qual questionou por manter o povo simples oprimido. Proclamou a necessidade de uma libertação integral das pessoas, que incluía a libertação da pobreza e do pecado. Proclamou ao mesmo tempo e destiempo que é necessário baixar os crucificados das cruzes. Que no povo salvadorenho, que nos pobres da terra, Cristo continuava sendo crucificado. Denunciou que esta situação não era casual, que havia instituições e poderes deste mundo que lucravam com esta situação e as chamou de estruturas de pecado. Como profeta, falou das ideologias de morte, as do deus dinheiro, do poder, do prestígio, a que sacrificam as vidas dos pobres de Javé.
Sem dúvida, como profeta, apóstolo e pastor da misericórdia política, a que é levada a sério no Evangelho, que brota do princípio misericórdia, que leva a mobilizar todos os recursos intelectuais e pastorais pelo bem dos crucificados da história, e que sabe que a utopia do Reino ou é encarnada ou é espelhismo vazio, viu chegar e assumiu seu destino de profeta. Com sua inteligência sensível, que fez dos pequenos do Pai o “locus” não só de sua teologia e filosofia, mas de sua vida, acabaria se tornando responsável e encarregado da realidade crucificada de seu povo até se tornar um com ela, até se deixar fisgar por esse “mais da realidade” que não poderia ser outra a não ser a de Cristo Crucificado.
Quem em “Por qué muere Jesús e por qué o matan” escreveu: “A luta pelo reino de Deus supõe necessariamente uma luta a favor do homem injustamente oprimido; esta luta deve, necessariamente, levar ao enfrentamento com os responsáveis pela opressão. Por isso morreu”. Quem, ano após ano, pediu nos Exercícios Espirituais “ser colocado com o Filho”, viu como Deus Pai lhe fez ser filho com o Filho, ao modo do Filho. Assim dizia o próprio Ellacuría no citado texto:
“A celebração da morte de Jesus até que volte não se realiza adequadamente em uma celebração cultural e mistérica, nem em uma vivência interior da fé, mas precisa ser a celebração crente de uma vida que segue os passos de quem foi morto violentamente por aqueles que não aceitam os caminhos de Deus, tal como foram revelados em Jesus”.
Assim, sendo fiel ao chamado do Pai a ser outro Cristo, Ellacuría subiu à cruz. Contam que Ellacuría voltou de Barcelona a San Salvador levado por uma paixão: o Reino. Contam que voltou a El Salvador e foi levado pelo Pai Reino Adentro.
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