22 Novembro 2016
“O papa continua parecendo invulnerável: embora seja evidente que a sua decisão de não reformar o Sínodo dos bispos, o fato de não ter querido conferir nem a este nem ao C9 poderes efetivos estimulou as tentações dos amotinados visíveis e invisíveis. Ele reage a golpes de Concílio e de evangelho: mas não usa meias palavras para ressaltar a veemência reacionária dos purpurados idosos.”
A opinião é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 20-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na reunião dos cardeais – o “consistório” – o pontífice discute com os seus irmãos as coisas de maior peso: entre estas “causae maiores” está a entrada de novos purpurados no colégio, que, há quase mil anos, elege o sucessor de Pedro. Francisco havia reunido, por isso, o consistório em andamento: em coincidência com o fim do Jubileu extraordinário do qual a carta Misericordia et misera traz o balanço.
Sobre a convocação do consistório, porém, abateu-se uma carta ao papa de quatro cardeais conservadores: que vai muito além de uma “crítica” ao seu magistério. De fato, expressar objeções é um direito de todos e é um dever para os cardeais. Mas pedir ao papa que “esclareça” algumas teses da sua exortação sobre o matrimônio (e uma entrevista de Burke que a “explica”) não é dissidência, expressada em favor das câmeras por homens rígidos: é um ato sutilmente subversivo, parte de um jogo potencialmente devastador, com mandantes desconhecidos, conduzido sobre o fio da história medieval.
Uma antiquíssima regra do Direito Canônico estabelece que, se o papa é “surpreendido ao desviar da fé” deixa de ser papa: sem outros passos, a menos que a sua resistência não force os cardeais ou o Concílio a depô-lo como herege. Hoje, a carta dos cardeais não diz que Francisco é “a fide devius”: mas levanta uma série de longas premissas, talvez voltadas a sondar os humores do colégio; e usando o léxico da Inquisição, pede que Francisco, como imputado, explique o que “realmente” queria dizer sobre os divorciados e assim por diante.
Francisco reagiu: e, como quando parece de improviso, foi muito duro. Ele foi pessoalmente à Rota, com um movimento explícito. Na entrevista de sexta-feira a Stefania Falasca, no jornal Avvenire, o papa explicou que aqueles que o atacam não entendem o coração do evangelho cristão. Ele pregou por muitas semanas sobre a divisão – e, nesse sábado, sobre a epidemia da inimizade que contagia a Igreja. E, além de se posicionar contra aqueles que protestam, também se posicionou contra todos aqueles que, nos dias deste consistório disseram ou dirão que “os quatro erraram, mas...”.
Porque eles são o problema, a área do “mas” que, nestes três anos, opôs ao papa um muro de borracha, que funcionou muito bem, do seu ponto de vista: criou em torno de Francisco uma solidão institucional que não fere a sua alma de jesuíta e não mina o seu sono piemontês, mas ganhou tempo, como quando na tourada se plantam as banderillas na coluna do touro. E agora ele pensa em voltar para a espada: neste caso, a espada doutrinária que há séculos estava no museu.
Francisco contra-atacou: colocando na frente daqueles que o acusam a reivindicação do evangelho. Mas ele, que não se sente sozinho por motivos teológicos – “só Deus basta” – saboreia a solidão institucional do combatente heroico e cansado.
O seus esforço reformador, de fato, não encontrou no episcopado uma resposta pronta: cai, por exemplo, nestes dias o aniversário do discurso de Florença, no qual examinou duramente a Igreja italiana, mas do qual derivavam mudanças tão imperceptíveis que é preciso ser bispo para se dar conta. A reforma da Cúria não encontrou a sua alma eclesiológica: e ainda se limita a reestruturar descrições de cargos e carreiras, sem que o diagnóstico profundo do qual nascia produza soluções profundas.
No povo e nas comunidades, Francisco obteve consenso: mas não uma verdadeira recepção da sua teologia do pobre; e tanto a xenofobia dos países católicos na Europa quanto a própria eleição do primeiro presidente estadunidense atacado de rosto aberto pelo papa – "Quem faz muros não é cristão”, disse ele sobre Trump – são uma prova disso.
O papa, portanto, continua parecendo invulnerável: embora seja evidente que a sua decisão de não reformar o Sínodo dos bispos, o fato de não ter querido conferir nem a este nem ao C9 poderes efetivos estimulou as tentações dos amotinados visíveis e invisíveis. Ele reage a golpes de Concílio e de evangelho: mas não usa meias palavras para ressaltar a veemência reacionária dos purpurados idosos. E que quem faz ataques como esse não é um “descontente” ou um “opositor”, mas alguém que visa a “dividir” a Igreja. O que, no Direito Canônico, é um crime punível.
No início do Jubileu, Francisco tinha pedido das autoridades gestos de clemência para com os detentos: clemência que ele, por primeiro, nunca aplicou aos seus imputados do processo chamado de Vatileaks. No fim do Jubileu, entende-se por quê: ele não via naquele processo um procedimento penal, mas um gesto pedagógico em relação aos adversários. Aqueles que estão tentando reduzi-lo a uma santa testemunha, que se identifica na vida do pobre e no destino dos vencidos. E que deram mais um passo a céu aberto. Arriscando muito.
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"Ele desvia da fé": a última investida dos inimigos do papa. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU