21 Outubro 2016
A história de Alasane Kourouma, 20, poderia ter sido mais um relato de amor com final trágico.
Ao desembarcar do navio Aquarius, operado pelas organizações humanitárias Médicos Sem Fronteiras e SOS Mediterranee, com seu filho bebê e outros 240 migrantes africanos, a jovem de Conacri (Guiné) ainda não sabia se conseguiria se reencontrar com o marido, que migrara na frente.
A reportagem é de André Liohn, publicada por portal Uol, 21-10-2016.
Mas o certo era que a esperança do reencontro tinha sobrevivido a um grande obstáculo: o mar Mediterrâneo.
Do Aquarius e de uma lancha de resgate, a reportagem da Folha acompanhou a operação que levou ao resgate de Alasane e outros 118 homens, 19 mulheres e 30 crianças —sete delas com menos de cinco anos de idade— no bote que deixou a África.
Alasane se casou há dois anos com Sekou Kourouma, a quem conhecia desde criança. Ela conta que os primeiros meses depois do casamento foram os melhores de sua vida, mas logo seu país enfrentaria uma grande epidemia de ebola.
Locais públicos, escolas, bares, restaurantes e postos de trabalho foram fechados; mais de 2.500 pessoas morreram. Alasane descobriu que estava grávida, e Sekou entendeu que seus rendimentos não seriam suficientes para sustentar a família.
Depois de descartarem alternativas, Sekou decidiu partir, tentar, como outros amigos, chegar até a Itália e, lá, encontrar um trabalho que pudesse garantir melhores condições de vida.
Alasane nunca recebeu qualquer noticia de seu marido desde que se viram pela última vez. Não sabe onde ele está e, muitas vezes, durante sua viagem, sonhou que encontraria o corpo morto do marido no deserto.
Durante os meses da viagem, ela testemunhou todos os perigos e sadismos da rota escolhida por milhares de africanos.
Recorda-se especialmente do dia em que o grupo com que ela viajava foi sequestrado no deserto líbio. Os sequestradores torturavam todos e, além de os roubar, exigiam que seus familiares enviassem dinheiro.
Alasane havia fugido de Conacri. A família de seu marido não a aceitava, e seus pais exigiam que ela esquecesse Sekou e se casasse novamente. O nascimento do filho, hoje com um ano e meio, reforçou o amor que sentia; apenas a fuga parecia ser a solução.
Ela não podia contatar nenhum familiar para pedir dinheiro e, várias vezes, foi torturada com choques elétricos que cessavam apenas depois que os torturadores não aguentavam mais ouvir o choro assustado do bebê, que presenciava as agressões contra a mãe.
Um dia, transportaram-na até uma casa onde estavam outros africanos, em sua maioria homens jovens, de diversas nacionalidades. Também havia mulheres e crianças.
De noite, foram levados a uma praia. Com o mar calmo, todos começaram a subir em um pequeno barco; primeiro, as mulheres com suas crianças, que se sentavam no centro, e depois os homens, que se sentavam nas bordas. A lua cheia iluminava a noite e o horizonte à frente. De manhã, todos entenderam que a África havia sido deixada para trás.
Navegaram desorientados durante todo o dia, a água terminou logo, e alguns homens começaram a discutir por espaço. Seu bebê praticamente não chorou e, talvez por causa do calor e do sol forte, tenha se sentido fraco e dormido praticamente o tempo todo.
A segunda noite havia apenas começado quando avistaram luzes, que cresciam lentamente. Era o navio Aquarius. Alasane teve certeza que ela e seu filho seriam salvos.
A operação de salvamento do bote começou às 19h20, do último domingo (16). Duas lanchas de resgate foram colocadas no mar e se dirigiram até o bote que transportava Alasane, o bebê e outras 166 pessoas.
As maiores ondas chegavam a dois metros de altura, e o vento soprava a 16 nós. A equipe havia feito outro resgate durante a tarde, e a moral da tripulação era boa.
No bote, os migrantes estavam nervosos: as crianças choravam e alguns homens discutiam entre si.
O chefe da missão afastou uma das lanchas salva-vidas várias vezes, para demonstrar que o resgate começaria apenas depois que todos estivessem calmos —o movimento excessivo e desordenado poderia desequilibrar o bote e, assim, todos cairiam no mar e possivelmente se afogariam.
Na segunda lancha, uma mulher gritava em um megafone dizendo que todos deveriam se manter calmos e sentados, enquanto distribuía coletes salva-vidas.
Mulheres e crianças tinham prioridade, e o primeiro migrante a ser resgatado foi um bebê de não mais de dois anos.
O embarque de todos no navio Aquarius levou três horas. Eles choravam, riam, se abraçavam, ficavam em grupos ou sozinhos. Alguns ainda tinham forças para conversar, mas a maioria estava exausta e, depois de receber um kit com roupas, cobertor e biscoitos com rações de emergência, podiam optar por um banho. Em pouco tempo, estavam quase todos dormindo.
Os refugiados homens ocuparam todo o deck posterior e as laterais do barco. Mulheres e crianças foram acomodadas em uma sala interna, mas todos, sem exceção, dormiam no chão.
A tripulação do navio se reveza para garantir o funcionamento do resgate e a segurança dos migrantes.
Por volta das 2h de segunda (17), um dos migrantes caiu desmaiado, e a médica a bordo foi chamada. Com o espaço completamente tomado por quem dormia no chão, a médica começou a reanimação, que não surtia efeito.
Outros membros da equipe foram chamados: dois homens grandes se revezaram, forçando violentamente o peito do homem. Cerca de 40 minutos depois, o migrante foi declarado morto.
O Aquarius não possui freezer suficientemente grande para acomodar um corpo, e migrantes mortos em resgate são transportados no deck frontal do navio —que chegou a transportar em uma única viagem 22 corpos, colocados em sacos mortuários e enrolados em cobertores constantemente umedecidos na tentativa de manter a temperatura o mais baixo possível.
A equipe passa o dia seguinte navegando a cerca de 32 km de distância da costa da Líbia, em uma região entre as cidades de Trípoli e Al-Khums.
Em agosto, naquela região, outro navio dos Médicos Sem Fronteiras foi atacado por homens armados, que ocuparam o barco se identificando como membros da guarda costeira da Líbia.
A importância humanitária do resgate de refugiados no Mediterrâneo é indiscutível, mas o grande número de migrantes preparados para arriscar suas vidas no mar não atrai somente boas intenções.
As operações de resgate transformaram-se num negócio de centenas de milhões de euros e, assim como os próprios refugiados, as embarcações de diversas organizações que operam no Mediterrâneo estão expostas aos riscos.
O dia termina sem nenhum novo resgate, e a tripulação decide retornar à Itália para desembarcar os refugiados a bordo. A viagem de volta leva 37 horas.
Nesse tempo, os migrantes dormiram a maior parte do tempo. Alguns deram sinais de enjoo, e outros começaram a ficar doentes. Passaram as duas noites seguintes amontoados no barco, com o frio aumentando com a aproximação da Europa.
Um jovem de 24 anos foi identificado com febre acima de 40 graus e medicado. Tremia descontroladamente, mas mesmo assim não pode ser acomodado em uma cama e terminou a viagem deitado no chão, separando seu corpo do metal apenas por uma coberta de algodão cru.
O barco ancora em Catânia, ilha da Sicília, às 9h de quarta-feira (19). Todos são recebidos por uma estrutura pronta para o desembarque dos refugiados. Médicos, policiais e voluntários da Cruz Vermelha italiana levaram quatro horas para receber a todos.
Depois dos doentes, Alasane foi a primeira a desembarcar. Em solo europeu, tem inicio uma nova fase: a busca pelo amado Sekou.
Histórias como a de Alasane se multiplicam. Apenas nesta quinta-feira (20), 1.400 pessoas foram resgatadas na mesma região.
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Resgate de refugiados africanos no Mediterrâneo tem choro, risos e morte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU