13 Setembro 2016
Em um novo conjunto de entrevistas, o Papa Emérito Bento XVI revela que ele se encontrava entre os que estavam insatisfeitos com o ensinamento de 1968 do Papa Paulo VI que proibia os católicos de usar métodos artificiais para o controle de natalidade.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada por National Catholic Reporter, 12-09-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em livro publicado sexta-feira passada, 9 de setembro, na Itália o pontífice emérito afirma que, embora concordasse com as conclusões a que Paulo chegara na encíclica Humanae Vitae, ele via problemas na argumentação.
“Na situação em que eu então me encontrava, dentro e no contexto do pensamento teológico em que eu estava, a Humanae Vitae foi um texto difícil para mim”, declara Bento no livro a ser publicado nos EUA em 3 de novembro pela Bloomsbury sob o título “Last Testament: In His Own Words”. (No original italiano, “Ultime Conversazioni”. A obra não contém versão portuguesa.)
“Estava bem claro que o que era dito era essencialmente válido, mas o raciocínio, para nós naquele momento, e para mim também, não estava satisfatório”, afirma Bento XVI.
“Eu estava à procura de um ponto de vista antropológico abrangente”, continua ele. “Na verdade, era [o Papa] João Paulo II quem iria complementar o ponto de vista da lei natural da encíclica com uma visão personalista”.
O novo livro se baseia em conversas que Bento teve com o jornalista alemão Peter Seewald, com quem também publicou uma entrevista em formato de livro durante o seu papado. Na introdução, Seewald diz que as entrevistas foram conduzidas “um pouco antes e depois” da renúncia em 2013 de Bento e que o papa emérito deu sua aprovação final ao texto.
A menção de Bento sobre suas lutas com a carta encíclica de 1968 é uma entre uma série de revelações feitas no livro, em particular no tocante ao papel do papa emérito no Concílio Vaticano II e em sua interpretação posterior.
Em 1968, o Pe. Joseph Ratzinger – mais tarde, bispo, cardeal e então Papa Bento XVI – servia como catedrático de teologia dogmática na Universidade de Tubingen, na Alemanha. Anteriormente ele tinha atuado no Concílio como perito (assessor teológico) para o cardeal de Colônia, Joseph Frings.
A certa altura do livro, Bento menciona escrever um discurso que pediram que Frings desse na dianteira do Concílio em Gênova, em 1961, e que fora vista na época como um caminho progressista para a reforma católica. Bento descreve a gravação que fez em fitas de áudio onde delineava argumentos teológicos a Frings, então quase cego, para ele ouvir.
Seewald pergunta sobre esse discurso de 1961 e o ponto de vista de Ratzinger durante o Concílio, dizendo: “A que campo o senhor pertencia na época, o progressista?”
“Na verdade, eu diria que sim”, responde Bento. “Na época, progressista não significava que se estava rompendo com a fé, mas que se queria compreendê-la melhor e, mais precisamente, como se a vive desde as suas origens”.
Bento então diz que as percepções do Concílio Vaticano II se alteraram ao longo das décadas.
“Os bispos queriam renovar a fé, aprofundá-la”, afirma o pontífice emérito. “No entanto, outras forças estavam trabalhando com um poder cada vez maior, em particular os jornalistas, que interpretavam muitas coisas de uma maneira completamente nova”.
“As pessoas acabaram se perguntando: ‘Sim, se os bispos podem mudar tudo, por que não podemos todos nós também?’”, diz Bento. “A liturgia começou a desmoronar, e a cair nas preferências pessoais”.
“Nesse tocante, em breve se pôde ver que o que era desejado originalmente estava sendo conduzido a uma direção diferente”, continua ele. “Desde 1965 sinto que isto seja uma missão: deixar claro o que nós genuinamente queríamos e o que não queríamos”.
Seewald pergunta em seguida se Bento tem “dores de consciência” por sua parte ter argumentado pela reforma da Igreja no Concílio.
“O Cardeal Frings mais tarde teve dores intensas de consciência”, responde o papa emérito. “Porém ele sempre teve a consciência de que aquilo que, de fato, havíamos dito e apresentado era o certo, e que também tinha de acontecer”.
“Nós lidamos corretamente com as coisas, mesmo se nós não tenhamos avaliado corretamente as consequências políticas e as reais repercussões”, continua Bento no livro. “Pensava-se demasiado sobre temas teólogos na época, e não se refletia sobre como estas coisas iriam se desdobrar”.
“Em si, era um momento especial na Igreja, quando se estava simplesmente à espera de alguma coisa nova, uma renovação, uma renovação do todo”, afirma Bento. “Não era algo que deveria vir apenas de Roma, mas um encontro novo com toda a Igreja. Nesse tocante o momento estava próximo”.
No começo do livro, Bento relembra o seu ponto de vista teológico quando era seminarista no final da década de 1940 e início da de 1950.
“Eu queria sair do tomismo clássico”, diz o papa emérito ao se referir às escolas de pensamento que aderem estritamente aos ensinamentos do teólogo do século XIII São Tomás de Aquino.
“Tínhamos uma visão de futuro”, afirma Bento sobre si mesmo e seus colegas. “Queríamos renovar a teologia a partir da base, e assim formar a Igreja na novidade e na vitalidade”.
“Na época, todos tínhamos um certo desprezo pelo século XIX; ele era moda então”, continua. “Queríamos uma nova era de piedade, que se formasse a partir da liturgia, de sua sobriedade e de sua grandeza, que estivesse ancorada nas fontes originais – e que fosse nova e contemporânea exatamente por causa disso”.
Bento diz que, pelo menos inicialmente, ele preferia Santo Agostinho, do século IV, a São Tomás.
“A luta pessoal que Agostinho manifesta realmente para mim”, diz o papa emérito. “De modo geral, os escritos de Tomás eram obras didáticas e um tanto quanto impessoais”.
Agostinho luta contra si mesmo, e com efeito continua assim após a sua conversão. E é isso o que torna o assunto interessante e bonito”, complementa.
Seewald pergunta a Bento sobre um lema que apareceu no convite para a primeira missa celebrada por ele após a ordenação sacerdotal: “Não temos o domínio sobre a vossa fé, somos cooperadores de vosso gozo”.
A resposta de Bento soa como se ela tivesse sido dada pelo seu sucessor, o Papa Francisco.
“Como parte de uma compreensão contemporânea do sacerdócio, não só estávamos conscientes de que o clericalismo é errado e que o padre é sempre um servo como também fazíamos um grande esforço interior no sentido de não nos colocarmos num pedestal”, afirma o ex-pontífice.
“Eu nem sequer me atreveria a me apresentar como ‘reverendo’”, diz ele. “Estarmos cientes de que não éramos senhores, e sim servos, foi para mim algo não só tranquilizador, mas também pessoalmente importante como a base sobre a qual eu poderia receber a ordenação”.
“Esta declaração no convite manifestava uma motivação central para mim”, continua ele. “Era um motivo que eu encontrei em vários textos das lições e leituras da Sagrada Escritura, e que expressava algo muito importante para mim”.
Ao falar sobre uma palestra importante em 1957, Bento mostra um lado muito decisivo.
Descrevendo a sua habilitação – palestra avaliada feita em países europeus por acadêmicos em busca de poder palestrar publicamente –, o ex-papa diz que o seu fracasso “parecia inevitável” porque um de seus avaliadores tinha “um ponto de vista menos do que amigável” dele.
Embora tenha sido aprovado na palestra, Bento diz que o avaliador fez marcações sobre todo o seu texto previamente preparado.
Seewald pergunta se este texto, com as marcações, ainda existe.
“Eu o queimei”, responde Bento, acrescentando: “No forno”.
Bento também fala de suas relações com teólogos famosos de seu tempo. Diz que os que mais apreciava eram o jesuíta francês Pe. Henri de Lubac e o jesuíta suíço Pe. Hans Urs von Balthasar.
Perguntado sobre a sua relação com o famoso teólogo suíço Pe. Hans Küng, Bento XVI afirma: “O caminho teológico dele simplesmente tomou um outro rumo, e ele se ficou cada vez mais radical”.
“Eu não poderia me juntar a isso, eu não tinha permissão”, continua Bento. “Não sei dizer por que na época eu fui identificado por ele como inimigo”.
Seewald questiona se Bento em algum momento decidiu “escolher um outro lado” dos debates teológicos na relação com Küng.
“Eu via que a teologia não era mais a interpretação da fé da Igreja Católica, porém eu estava imaginando como ela poderia e deveria ser, por seus próprios méritos”, responde Bento. “Para mim, aquela teologia era incompatível com ser um teólogo católico”.
Mais adiante no livro, Seewald pergunta a Bento sobre o período em que atuou como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé sob o papado de João Paulo II. Em particular, o entrevistador questiona sobre a declaração feita no ano 2000 pela CDF chamada Dominus Iesus, que levantou uma polêmica ao afirmar que as igrejas protestantes não são “igrejas em sentido próprio”.
Seewald pergunta se Bento escreveu por si mesmo este documento.
“Eu deliberadamente nunca escrevi nenhum dos documentos da Congregação por mim próprio, para que a minha opinião não viesse à tona, caso contrário eu estaria tentando disseminar e reforçar a minha própria teologia em particular”, responde o papa emérito.
“Um documento assim deve crescer organicamente, da base dos departamentos relevantes responsáveis”, continua ele. “É claro que eu fui um colega de trabalho, e fiz algumas reelaborações críticas, etc. Mas não escrevi nenhum dos documentos por mim mesmo, inclusive Dominus Iesus”.
Bento também fala sobre o seu livro de 1992 intitulado “Catecismo da Igreja Católica”.
“Na época, mais e mais as pessoas se perguntavam: ‘Será que a Igreja ainda possui um conjunto homogêneo de doutrinas?’”, afirma o ex-pontífice. “Elas não sabiam mais no que a Igreja realmente acredita”.
“Havia algumas tendências muito fortes, com pessoas realmente boas nelas, dizendo: não se consegue produzir mais um catecismo”, segundo Bento. “Eu disse: Ou nós ainda temos algo a dizer, caso em que se deve ser capaz descrevê-lo – ou nada mais temos a dizer”.
“Nesse sentido, fiz de mim próprio o defensor da ideia, com a convicção de que devemos estar em uma posição para dizer o que a Igreja acredita e ensina hoje”, continua.
Bento igualmente fala de sua vida na Alemanha e fornece novos detalhes sobre como ele e sua família lidavam com o regime nazista nas décadas de 1930 e 1940. Menciona um tio, Alois, que era padre e que fora reportado a autoridades locais em 1936 como sendo contra o regime.
“Estava muito claro para nós que um clérigo deveria ser contra os nazistas”, diz o ex-papa. “O nosso pai era tão contra eles que não é possível imaginar que alguém na família pudesse apoiá-los”.
“Em geral, a atmosfera era opressora”, afirma Bento. “Sabíamos que no longo prazo a Igreja deveria desaparecer. Não mais deveria haver sacerdócio algum. Isto estava claro para nós: eu não tenho futuro algum nesta sociedade”.
“A perspectiva nazista era particularmente terrível para mim, na medida em que o esporte foi transformado em matéria obrigatória para terminar os estudos, e se não fôssemos bons nos esportes não concluíamos o colégio”, continua ele.
Perguntado se sabia sobre os campos de concentração, Bento responde que a sua família sabia do campo de Dachau, no sul da Alemanha. O ex-papa então explica que, antes da guerra, o seu pai tinha enviado tecidos que necessitavam de costura a uma empresa em outra cidade. A empresa pertencia a um judeu.
“Quando os nazistas a confiscaram e o novo proprietário anunciou que tudo iria continuar como antes, [o meu pai] disse: ‘Não, eu não vou ficar com o que um homem tirou de um outro’”, diz Bento. “Ele nunca comprou dessa firma de novo”.
Bento descreve como foi forçado ao serviço militar do Reich durante a guerra, onde foi designado a ajudar na construção de um muro na fronteira entre a Alemanha e a Hungria.
“Eu era ruim no trabalho com a pá, com certeza”, afirma ele. “Havia umas pessoas capazes, uns rapazes que haviam nascido na fazendo, pessoas que fariam aquele serviço de modo adequado. O Führer certamente não se beneficiou do meu trabalho”.
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Bento XVI revela insatisfação com “Humanae Vitae” de Paulo VI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU