06 Julho 2016
Elie Wiesel tinha assumido sobre si o fardo doloroso do testemunho, mesmo sabendo que nunca poderia realmente comunicar o que tinha acontecido no campo de concentração: "Porque se trata de algo que transcende as palavras". Velejando bem mais alto nos céus em relação à mesquinhez negacionista, que se apega a qualquer incongruência (verdadeira ou imaginária) para desvalorizar o valor das testemunhas da Shoah, o escritor que morreu no último sábado na sua casa em Nova York sabia, assim como sabiam Primo Levi e as outras grandes vozes que sobreviveram àquele buraco negro da história que foi Auschwitz, que dele "não é possível nenhuma descrição: é indescritível".
A reportagem é de Edoardo Castagna, publicada no jornal Avvenire, 05-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Literalmente. Wiesel escreve isso no seu diálogo com o rabino Josy Eisenberg, Giobbe o Dio nella tempesta (Ed. Sei), uma obra menos conhecida do que outras da riquíssima produção do prêmio Nobel da Paz de 1986, mas que contém alguns dos núcleos mais profundos da sua reflexão sobre o campo de concentração e, a partir daí, sobre a condição humana inteira.
"A vítima tem vergonha de ser vítima", sintetiza Wiesel: seja porque não soube se opor ao mal que investia contra ela, seja porque é tocada pela dúvida de ter, de algum modo, merecido a própria "punição".
É imediato o paralelismo com Levi: "Era a vergonha que os alemães não conheceram, aquela que o justo sente diante da culpa cometida por outrem, e que ele sente remorso de que exista, que tenha sido introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas que existem" (La tregua).
Levi e Wiesel, dentre as mais altas consciências do atormentado século XX europeu, souberam vasculhar até o fundo o abismo ético e existencial aberto por Auschwitz; um abismo que não admite desvios, que impõe uma inderrogável reflexão sobre a condição humana e que, mesmo assim, não encontra as palavras nem os pensamentos que seriam necessários para reconstruir um horizonte de sentido.
Wiesel, então, recorre à figura bíblica de Jó, que "torna-se o Judeu, nosso contemporâneo; a sua história é precisamente a nossa, a dos Judeus da Europa oriental. Primeiro, o Judeu foi privado dos seus bens. Depois, da sua casa, em seguida da família. E, por último, ficou sozinho, trancado na própria solidão. Uma solidão absoluta, irrevogável, sem remédio".
Mas, no campo de concentração, até mesmo quando os rabinos mais piedosos se rendem, quando a interrogação chega ao desespero, justamente então se abre a fresta através da qual pode ser recriado o espaço para a fé.
Em Auschwitz e Buchenwald, onde ele ficou preso entre 1944 e 1945, Wiesel permaneceu pregado ao incessante lamento de Jó: "Como posso acreditar, como é possível acreditar nesse Deus de misericórdia?" (La notte).
No entanto, justamente nessa formulação da pergunta, já é possível entrever, implicitamente, a evolução que o seu pensamento sofreria no pós-guerra. "Eu posso protestar contra Ele", dissera na entrevista publicada no jornal Avvenire, em 2008. "Pressioná-lo com perguntas e até mesmo gritar: 'Onde estás?'. Mas não posso me divorciar d'Ele. Eu ainda tenho fé, mas uma fé ferida para sempre".
Depois da libertação, durante o seu trabalho sobre a memória do povo judeu, Wiesel tinha recuperado da Cabala o conceito de "Zimzum", a "retirada divina": "É preciso que Deus se afaste – escrevia – para que a vida se descerre".
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Elie Wiesel e o abismo do século XX - Instituto Humanitas Unisinos - IHU