03 Mai 2016
Entre os milagres mais recorrentes da era digital, pode-se incluir uma espécie de ubiquidade tecnológica. Marquei um horário com Paul Knitter (foto) para uma conversa e em preparação para uma reflexão para o "Átrio dos Gentios". Ele dos Estados Unidos; eu, da Europa.
A reportagem é de Gabriele Palasciano, publicada no sítio do Pontifício Conselho para a Cultura, 15-03-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por meio do computador, Paul temeu não ser visto claramente. Eu o tranquilizei: eu o vejo, e bem! Mas entrevia também na tela uma espécie de nimbo luminoso ao redor da sua cabeça, que o tornava semelhante a um daqueles filósofos neoplatônicos retratados assim nos pergaminhos e nas tábuas de madeira da antiguidade. Digo a ele que se assemelha a Plotino. Em resposta, Paul sorri às gargalhadas, simpático e caloroso como um verdadeiro norte-americano. Depois, me repreende por não ter ficado na tradição cristã e por não ter chamado aquele brilho de "auréola".
Brincadeiras à parte, o nosso diálogo supera os limites geográficos e as fronteiras políticas, logo toca assunto de grande atualidade, mas a trama de fundo é constituída pelo Discurso de Regensburg do Papa Bento XVI.
Em cerca de duas horas de debate, não faltaram ocasiões para ler a atualidade partindo do texto do papa: os desafios representados pelo terrorismo, o pluralismo religioso e a urgência do diálogo intercultural. Na sua simplicidade, Paul não parece aquilo que efetivamente é: um gigante mundial da teologia e do diálogo entre as culturas e entre as religiões.
Aluno de Karl Rahner, depois dos estudos de teologia católica e protestante em Roma, Münster e Marburg, Paul Knitter lecionou na Xavier University de Cincinnati e, em seguida, foi nomeado Paul Tillich Professor of Theology, World Religions and Culture do Union Theological Seminary de Nova York, prestigiosa instituição acadêmica afiliada à Columbia University.
São inúmeras as suas publicações, que constituem verdadeiros marcos no âmbito do estudo tanto do diálogo quanto do pluralismo teológico-religioso. Das edições em língua italiana, recordamos: Senza Buddha non potrei essere cristiano (Fazi Editore, 2011), Introduzione alle teologie delle religioni (Queriniana, 2005), Una terra: molte religioni. Dialogo interreligioso e responsabilità globale (Cittadella, 1998), Nessun altro nome? Un esame critico degli atteggiamenti cristiani verso le religioni mondiali (Queriniana, 1991).
O professor me lembra logo de duas coisas. Primeiro: o seu respeito pelo teólogo Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI. Segundo: as suas divergências de opinião. As perspectivas teológicas dos dois estão a anos-luz de distância. Trata-se de duas galáxias muito distantes.
Porém, talvez um pouco por ironia do destino ou da Providência, elas se encontram em um ponto bem preciso: a vontade de se colocar em jogo e de se abrir ao mundo. Os propósitos de Knitter são claros e refletem, ao menos para quem conhece os seus escritos, a continuação lógica do seu pensamento.
O Discurso de Regensburg é considerado, nas suas características salientes, "como teólogo". Além de tudo, os seus propósitos são claros: o mundo espera das religiões, do cristianismo e do Islã em particular, uma mudança no plano ético e intelectual. Isso só é possível na colaboração entre as religiões em prol da criação e das criaturas, renunciando ao superseccionismo – como ele define – inerente às religiões, particularmente às monoteístas.
Eis a entrevista.
Professor Knitter, o breve trecho de estrada que estamos indo percorrer nesta entrevista está repleto de complexidades. A polissemia da palavra é evidenciada pela semiótica. Podemos imaginar também qual é a riqueza de significados e de interpretações que até mesmo frases ou textos apresentam. No nosso caso, pensamos em um discurso teológico, de alta densidade intelectual, e escrito por um teólogo do calibre de Joseph Ratzinger. Quantos significados ele encerrou e quantas interpretações contrastantes foram dadas ao Regensburger Rede! Depois dos atentados de Paris, diversos intelectuais europeus desejaram uma releitura crítica daquele texto... Aconteceu a mesma coisa nos Estados Unidos?
Na verdade, eu não constatei a presença de uma reflexão sobre o Discurso de Regensburg. Muito menos captei a presença de uma orientação da discussão pública nessa direção. Nos Estados Unidos, não se fala muito da alocução de Bento XVI. No centro das discussões, encontra-se especialmente o tema das próximas eleições presidenciais. Lê-se muito nos jornais sobre a ameaça representada pelo Islã, que é sentida de maneira muito forte. Quero enfatizar este ponto: não se tem tanto medo do terrorismo de matriz islâmica, mas sim do Islã em si mesmo.
Algum tempo atrás, uma professora de teologia comparada da Universidade de Cambridge me confessou o seu ceticismo sobre a eficácia e a positividade de uma releitura do texto de Bento XVI. O senhor acredita que se interrogar justamente sobre aquele documento depois de uma década, obviamente de forma crítica, representa uma tentativa de reabrir velhas feridas ou considera isso como algo positivo?
Estou convencido de que voltar a uma leitura crítica desse texto representa algo positivo. Acho importante, porque as feridas ainda estão presentes e devemos considerá-las atentamente. Trata-se de feridas históricas, econômicas e políticas entre Islã e cristianismo, entre Oriente e Ocidente. Elas têm, ao mesmo tempo, raízes históricas e teológicas. Eu diria que essas feridas afundam as suas raízes em uma teologia perigosa. Esta última, por sua vez, não as cicatriza, mas as mantém abertas, criando ainda mais dor. Por essa razão, eu sou da opinião de que é importante se interrogar especialmente sobre essa reflexão teológica que provoca as feridas econômicas, políticas e culturais. Eu acrescentaria que a teologia desempenha um papel importante e indiscutível na relação entre cristianismo e Islã.
O que representou e ainda representa, para o senhor, o Discurso de Regensburg?
Pessoalmente, considero que o discurso de Joseph Ratzinger representa uma orientação ou, se quisermos, uma tendência típica de alguns teólogos, que consiste em identificar e em evidenciar a presença de elementos negativos nas outras tradições religiosas e a presença de elementos positivos na própria religião. Talvez se trate de um processo que ocorre inconscientemente. Nesse caso, Ratzinger acentuava a necessidade para a teologia cristã de conciliar fé e razão. A fé e a razão devem estar de acordo. Fides et ratio não podem se contradizer. Esse é um elemento central não tanto na teologia protestante, quanto, em vez disso, na católica e anglicana.
No entanto, é preciso reconhecer que, na teologia muçulmana, existe a possibilidade – ou mesmo, segundo alguns, o perigo – de que a soberania de Deus possa transcender a razão humana a ponto de contradizê-la. Os muçulmanos acentuam muito a superioridade, a transcendência e o mistério de Deus. Eles fazem isso de maneira tal a induzir muitos teólogos muçulmanos a reconhecerem que essa transcendência pode ir além da nossa capacidade de compreensão. É a esse aspecto que Ratzinger se referia no seu discurso. Mas eu me pergunto por que ele – que também não é um especialista em teologia muçulmana, assim como, aliás, eu também não sou – não fez referência, sequer minimamente, a um movimento da história do Islã que acentuou a importância da razão humana. Trata-se do mutazilismo. A partir do século IX e até o seu desaparecimento no século XIII, os teólogos mutazilitas insistiam na conciliação e no acordo entre razão e fé.
As minhas perguntas são categóricas: por que o papa não falou disso? Por que não reconheceu esse aspecto, esse fato histórico da teologia muçulmana? Tudo isso me leva a pensar que estamos diante de uma dinâmica tipicamente humana, e que consiste em reconhecer e em ressaltar o que há de positivo na própria tradição religiosa, a sermos mais abertos e disponíveis ao próprio mundo religioso. Em vez disso, sublinhamos os elementos negativos presentes nas outras religiões. Nesse caso, parece-me justamente que o papa acabou sendo tão humano quanto todos nós.
Que perguntas afloraram na sua mente durante a sua leitura?
Do meu ponto de vista, a pergunta principal diz respeito a um tema muito difícil e delicado. Lendo o Discurso de Regensburg, detendo-me particularmente em algumas das suas partes, eu pensei no papel que a supremacia religiosa ou uma concepção superseccionista continua tendo no discurso teológico – e talvez também nas relações políticas entre cristãos e muçulmanos. Detenho-me na palavra "supremacia". Nos Estados Unidos, falamos muitas vezes de supremacia "branca" ou "cultural". O que quero dizer aplicando esse conceito ao cristianismo e ao Islã? Quero evidenciar o fato de que estamos diante de duas tradições religiosas que podemos descrever, principalmente, como superseccionistas. Estou ciente de estar utilizando um termo muito forte e quero fazer isso com cautela.
Cerca de 50 anos depois da morte de Jesus, o cristianismo acreditou que era o cumprimento do judaísmo, ou seja, que podia substituí-lo. A religião cristã se percebia como o "novo Israel", que substituía o velho povo de Deus. Posteriormente, o Islã também acreditou que era o cumprimento do judaísmo e do cristianismo. Estamos na presença de uma teologia da substituição. Portanto, ambas as religiões acreditam direta, implícita ou não intencionalmente que, por vontade de Deus, a própria religião é exclusiva, principal e final. Para os cristãos, Jesus é o único Filho de Deus. Para os muçulmanos, Maomé é o selo da profecia, o último dos profetas. Portanto, os cristãos e os muçulmanos se comportam com essa atitude, ou seja, de acreditar que são, de acordo com a vontade de Deus, a religião superior e suprema. Mesmo quando não usam tais expressões, a sua atitude ou a sua disposição interior é essa.
Tudo isso influi no modo de se comportar diante das outras religiões. Tal atitude influi imensamente na nossa relação com os outros. Parece-me que justamente a atitude de supremacia desempenhou um papel principal na maneira pela qual Ratzinger se aproximou do Islã. Portanto, estamos na presença de uma questão muito difícil, porque se trata da cristologia e da profetologia. Para mim, assim como para outras teólogas e teólogos cristãos, tudo isso é um desafio. A cristologia é um desafio. O desafio é o de compreender a identidade e o papel de Jesus, de ser fiel à revelação central e universal recebida em Cristo e, ao mesmo tempo, ficar atento e aberto àquilo que o Espírito está atualizando e revelando nas outras religiões. Nós devemos captar e nos deparar com esse desafio para poder avançar no diálogo com o Islã e com as outras religiões. Isso significa que devemos levar ainda mais a sério a pergunta que Jesus dirigiu aos seus discípulos em Cesareia de Filipe: "E vocês, quem dizem que eu sou?".
Estou interessado em saber como o senhor, um teólogo do pluralismo religioso, lê aquele texto, particularmente qual é a sua chave de leitura...
A minha chave interpretativa global é a da necessidade do diálogo inter-religioso. A urgência é que as religiões atuais, incluindo também as primitivas, indígenas e todas as outras comunidades, entrem em relação para cooperar, para debater e para resolver os problemas da humanidade. Essa forma de diálogo é um imperativo ético fundamentado na razão e na fé. A razão humana indica claramente a verdade daquilo que Hans Küng disse: "Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não há diálogo entre as religiões sem uma pesquisa sobre os fundamentos das religiões".
Portanto, todo discurso e toda declaração – com todo o respeito devido à liberdade de opinião dos representantes das religiões – que não ajudem tal diálogo não podem ser aceitos, à luz do imperativo ético. E me parece que – com todo o respeito por Ratzinger – o seu discurso não ajudou o diálogo inter-religioso. Naturalmente, o debate deve ser fundamentado na verdade, naquilo que nós pensamos que seja a verdade, mas devemos estar atentos e ser prudentes na maneira como a expressamos. Eu considero que a maneira na qual Ratzinger se expressou em Regensburg precisava de uma dose maior de caridade cristã. De modo particular, havia a necessidade de um maior respeito pelos muçulmanos. A caridade deve fazer parte do discurso inter-religioso.
Porém, o Papa Bento XVI, como o senhor já mencionou, queria dar vida ao diálogo entre as religiões sobre o fundamento da razão... Ele queria servir àquele imperativo ético, fundamentado na razão, para o diálogo. Portanto, o senhor considera que o papa manifestou um comportamento pouco disponível ao debate que ele queria promover, colocando-se sobre um pedestal como pertencente à religião detentora do Logos?
Parece-me que é precisamente isso. Eu estou perfeitamente de acordo com o papa sobre o fato de que o papel da razão, no discurso inter-religioso, é de vital importância. Estou de acordo como norte-americano e como cristão. Insistindo na razão, ele declarou que o uso da violência não é aceitável por parte da religião. Estou em sintonia com os seus pontos de vista. Porém, desejaria, de sua parte, um reconhecimento do papel da violência na história cristã e de como tantos cristãos justificaram a revelação recorrendo à violência. Isso também teria sido usar a razão. No entanto, os dois elementos de difícil compreensão na minha leitura do discurso de Ratzinger e que me impressionaram negativamente são o pensamento de que a razão não se reveste de um papel determinante na teologia muçulmana e a citação de Manuel II Paleólogo.
Qual é o centro do discurso?
Volto para uma impressão minha. Eu suponho que Ratzinger escreveu esse discurso motivado pela necessidade de mostrar e de provar a superioridade da própria religião e a inferioridade da outra. Provavelmente, ele não pretendia fazer isso de maneira intencional. Porém, parece-me que o espírito do discurso, ao menos quando se trata expressamente do Islã, é o de mostrar a superioridade do cristianismo em relação ao Islã. Lembre-se, especificamente, da leitura data à razão e à violência. Também me parece que isso representa uma atitude semelhante a certas declarações que Ratzinger tinha proferido antes de ser eleito papa. Refiro-me sobretudo à concepção pela qual o Islã não pode fazer parte da cultura europeia, não pode ser incluído na civilização europeia, porque porta consigo elementos que contradizem os valores fundamentais do Ocidente. Eu sou da opinião de que, no passado, quando ele se detinha sobre a unidade entre religião e política no Islã, ele pretendia afirmar que tudo isso contradiz os valores políticos da civilização europeia. Eu não vou entrar nos detalhes dessa questão. Ao contrário, limito-me a lembrar que existem declarações e ideias ratzingerianas sobre o Islã que remontam ao período que precede a eleição ao sólio pontifício. Portanto, são essas perspectivas que continuavam influenciando o pontífice no Discurso de Regensburg.
O texto também se ocupa da relação especial que intercorre entre helenismo e cristianismo. Pode-se dizer, com uma certa cautela crítica, que, para Ratzinger, o helenismo adquiriu um direito de cidadania irrevogável no mundo cristão. Assim, ele parte do Logos. Mas o senhor compartilha a interpretação ratzingeriana do Logos? Considera-a limitada? Percebe-a como fortemente limitadora para o diálogo inter-religioso do cristianismo e, especificamente, para a elaboração de uma teologia cristã das religiões à altura dos tempos modernos? Ou é um bom trampolim de lançamento?
Naturalmente, a teologia do Logos, desde o princípio, particularmente com a doutrina patrística dos logói spermatikói, teve um lugar privilegiado no desenvolvimento de uma teologia das religiões. Logos significa que a revelação é universal, que Deus se revela na história e em todo o universo. No entanto, na teologia cristã, existe uma tendência a querer limitar a potencialidade do Logos apenas a Cristo como sua encarnação, promovendo, com isso, uma compreensão da encarnação que exclui a possibilidade de uma realidade universal. Também se fala de criação, segundo uma teologia mais franciscana do que agostiniana.
Haveria um ponto que eu gostaria de discutir com o Papa Bento XVI: como podemos entender melhor, a partir de ponto de vista intelectual e atual, a teologia do Logos? Agora, me detenho sobre um aspecto da sua pergunta e que diz respeito ao helenismo. O meu comentário sobre o modo como você formulou a pergunta sobre a "cidadania irrevogável" do helenismo no cristianismo – que também significa europeísmo, imperialismo – é muito direto: eu alimento a convicção de que Bento XVI e também João Paulo II insistiam na centralidade da cultura europeia. Eu não compartilho, de modo algum, essa concepção. A minha resposta é simples e consiste em afirmar que cada experiência religiosa ou cada revelação divina deve se expressar em uma cultura específica. Isso é evidente.
De fato, a revelação, sem uma expressão cultural, não tem valor ou significado para os seres humanos. No entanto, a revelação nunca se limita à cultura primária que a expressa, muito menos está vinculada a essa cultura particular. Com efeito, se a revelação se limitasse a uma cultura, nós não poderíamos continuar a ação missionária. A missão não teria sentido, porque queremos compartilhar essa revelação. E, para poder ser capaz de compartilhar a revelação dada em Jesus – que era um homem de cultura e de religião judaicas –, é necessário fazer uma tradução, uma nova encarnação cultural da própria revelação nas outras culturas. Portanto, o helenismo requer e mantém um papel principal, mas, para utilizar a sua expressão, ele constitui um "trampolim de lançamento", isto é, começamos com aquela cultura concreta e, depois, a superamos. Precisamos dessa cultura para poder entender profundamente a revelação original. Em um segundo momento, a partir do horizonte helenístico, do ponto de vista da cultura europeia, é preciso ir mais longe. É justamente isso que Karl Rahner afirmou sobre o Concílio Vaticano II: "Finalmente, a Igreja Católica tornou-se uma Igreja mundial. Demo-nos conta de que a religião católica não era católica, mas romana e europeia. Agora, devemos continuar com a Encarnação".
Vimos que o Logos se refere à relação da religião com a razão contra a violência. O propósito de Bento XVI lhe parece ser uma tentativa de afirmar a supremacia da mensagem cristã a despeito de outras tradições religiosas da humanidade. Volto sobre esse ponto crucial. Fiquei impressionado com o fato, por exemplo, de que, na lectio, não é nem mencionada uma dinâmica histórica: recebemos, Aristóteles também, de estudiosos árabes e muçulmanos...
Para mim, assim como para outros teólogos, parece que Ratzinger não se dá conta das dinâmicas que existem na história das religiões. Refiro-me de modo particular ao fato de que todas as religiões influenciaram as outras. Isso ocorreu de maneira profunda e contínua. Não existe uma religião à parte e sem contatos ou influências com as outras. O meu comentário a tudo isso é constituído pela referência a um célebre discurso proferido nos anos 1950 no Union Theological Seminary de Nova York. A conferência era do rabino Abraham Heschel e se intitulava "Nenhuma religião é uma ilha". Razão pela qual o fato de manter a supremacia de uma certa religião sem considerar a contribuição de outras tradições é algo que não encontra fundamento algum na história.
Percebe-se que, para Ratzinger, o ódio e o fanatismo religioso representam patologias da religião, irracionais e contrárias a Deus. Como o senhor já disse, a lectio papal continha uma dramática citação do imperador bizantino Manuel II Paleólogo: "Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé e encontrarás apenas coisas más e desumanas tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava". As reações indignadas a essa citação, extrapolada do seu contexto, foram não só compostas, mas também violentas. A imprensa internacional, a árabe, os parlamentos ou as assembleias de governo de alguns países muçulmanos, a Irmandade Muçulmana, etc. assumiram uma atitude de condenação da intervenção do papa. Penso ainda no aiatolá Ali Khamenei, para o qual as palavras do bispo de Roma representavam "um elo da cadeia do complô israelense-estadunidense para alimentar o choque entre religiões" e afirmações para incrementar a "conspiração dos cruzados". Em suma: parecia que algo havia "rompido" no diálogo entre cristianismo e Islã...
Como eu já referi, essa citação representa, para mim, um mistério. Antes de fazer menção a essa frase, no seu discurso em alemão, Ratzinger reconhecia explicitamente que a forma de se expressar do imperador bizantino é dura e inaceitável. Eu percorri as páginas de um dicionário bilíngue alemão-italiano e encontrei a palavra italiana correspondente à alemã: "brusco". Depois de reconhecer que essa sentença era inaceitável, ele a citava, portanto, a utilizava e, de certa forma, a aceitava. Não consigo compreender como ele pôde fazer uma coisa dessas. Não quero adentrar em uma análise teologicamente psicológica de Ratzinger, embora volte a reiterar que a minha impressão é que, para ele, o Islã representava uma religião, ao mesmo tempo, inferior e perigosa, portanto, uma ameaça para a civilização europeia. Considero que só a utilização de tal citação, depois de reconhecer também a sua inaceitabilidade, representa um mistério, algo incompreensível. Trata-se de algo ainda mais incompreensível se considerarmos que Ratzinger é um homem de grande intelecto e de grande sensibilidade. Em síntese, o fato de ter usado tal expressão tão forte e brusca se encaixa na categoria do mistério.
Professor Knitter, o senhor afirmou em um de seus escritos que a teologia pode desempenhar um papel duplo, falando particularmente das relações islamo-cristãs. Por um lado, ela pode dividir, agravando as realidades políticas e econômicas, tornando-se um instrumento a serviço do terrorismo e da violência. Por outro lado, a teologia pode servir a uma causa maior, ou seja, a da reconciliação e da paz. Que causa o senhor acredita que o discurso teológico de Ratzinger seguiu no contexto de Regensburg?
Infelizmente, e isso me parece evidente a partir das reações em diversas partes do mundo, embora não intencionalmente, o seu discurso alimentou o conflito entre cristianismo e Islã. Ele não pretendia provocar tudo isso, mas os resultados foram esses. Um conflito baseado ainda em uma teologia do superseccionismo. Por isso, o principal desafio para a teologia cristã – quero falar apenas da teologia da minha Igreja e da minha comunidade – é saber como desenvolver e restabelecer uma teologia, uma compreensão das outras religiões que possa manter, sustentar e promover um diálogo mais eficaz. Tendo essa perspectiva, todo teólogo ou teóloga deve se empenhar nessa causa, abrindo-se e mantendo o compromisso com o evangelho, com o Logos e com o Espírito universal.
Em dezembro de 2009, cerca de três anos depois da alocução de Regensburg, o senhor foi convidado para dar uma lectio magistralis sobre "Islã e Ocidente" no centro intelectual por antonomásia do mundo muçulmano sunita, a Universidade de Al-Azhar do Cairo. Foi justamente diante daquela instituição que foram levantadas as faixas em que se definiam as palavras de Ratzinger como "uma extensão da guerra de Bush contra o Islã". E foram os ulemás da mesma universidade que ameaçaram fechar a comissão para o diálogo com Roma. Lendo o texto da sua conferência – publicado como artigo intitulado Islam and Christianity sibling rivalries and sibling possibilities –, chama a atenção que o senhor foi ao Egito como teólogo cristão e falou com plena liberdade da identidade cristã e muçulmana, retraçando até mesmo os elementos de comunalidade entre as fés abraâmicas...
Tratou-se de uma experiência única e muito interessante. O convite em si mesmo foi uma surpresa. Quando cheguei ao Cairo, precisamente à Universidade de Al-Azhar, eu estava na companhia de outros teólogos e intelectuais norte-americanos e europeus de religião cristã. Logo intuímos uma coisa: tratava-se de um convite que nos tinha sido dirigido para nos criticar. Os sábios muçulmanos estavam prontos para fazer objeções aos nossos discursos ou às nossas observações sobre os problemas que existem entre Ocidente e Oriente, entre cristianismo e Islã. A atmosfera era bastante negativa. Mas, por meio das nossas alocuções, também por meio das nossas tentativas de diálogo com os teólogos muçulmanos, a atmosfera mudou, tornando-se positiva e intelectualmente estimulante. A atitude de reserva e de hostilidade por parte dos sábios muçulmanos em relação aos teólogos cristãos mudou no momento em que nós, cristãos, reconhecemos o estado em que os muçulmanos se encontram, ou seja, o de não serem respeitados e de serem ameaçados.
Nós reconhecemos expressamente os danos criados pelo poder do Ocidente e do cristianismo depois da queda do Império Otomano. Foi só depois de nos termos apresentado com uma atitude de humildade, dando a entender que tínhamos ido ao Egito para amadurecer uma compreensão recíproca, para nos entender melhor, que tudo mudou. O fato de se querer ouvir reciprocamente foi determinante. Depois de três intervenções proferidas por teólogos norte-americanos, os fechamentos iniciais se transformaram em aberturas; o espírito de hostilidade, em espírito de diálogo. Entre os convidados, também estava a historiadora das religiões Karen Armstrong. Depois de ouvir um discurso, Armstrong afirmou que estávamos prontos para reconhecer um dado importante, ou seja, que a realidade tinha mudado. Esse reconhecimento foi muito emocionante para mim.
Se o senhor me permite, também chama a atenção outro elemento. Apesar da atualidade que a lectio de Regensburg, para melhor ou para pior, desempenhou na discussão, justamente naqueles anos, e tratando-se de uma intervenção sobre o tema da relação do Islã com o cristianismo, fico surpreso com a ausência de uma referência a Regensburg. Discutindo sobre a singularidade e a unicidade de Cristo, o senhor cita a Dominus Iesus, como texto elaborado pelo "meu papa, Bento XVI [...] quando ele ainda era o cardeal Joseph Ratzinger". Seguindo a lógica do seu discurso, intui-se que o seu interesse, naquele espaço, era outro. No entanto, no conjunto, a citação do Discurso de Regensburg poderia ter encontrado uma colocação, mas não foi assim. Professor Knitter, tratou-se de uma omissão voluntária e meditada?
Essa pergunta não só é muito interessante, mas também é importante. Se assim posso dizer, ela me levou a fazer um exame de consciência. Eu diria que seguramente foi uma omissão, mas não exatamente meditada. Eu não queria tocar em um ponto tão sensível e explosivo como o Discurso de Regensburg. No entanto, eu queria indicar o problema do superseccionismo – embora alguns, pouco antes da apresentação, tinham me aconselhado a não entrar muito na matéria. Eu queria indicar um fundamento teológico pelo qual Ratzinger podia utilizar uma citação "brusca". Eu queria indicar esse fundamento teológico na sua convicção de que o Islã é uma religião inferior e perigosa. Por isso, apresentei aos teólogos e aos professores muçulmanos o fundamento sobre o qual Ratzinger insistia no passado, ou seja, o da unicitas Christi, da unicidade de Cristo, portanto, de uma unicidade na Sua revelação e salvação. Essa é, na minha opinião, a razão pela qual o papa tinha uma atitude negativa que, dentre outras coisas, o levou a citar aquela frase de Manuel II Paleólogo, nos seus Diálogos. Tratava-se de uma motivação teológica. Há outro aspecto dessa omissão. Talvez, inconscientemente, eu tivesse medo de citar aquele texto. Na universidade de Al-Azhar, o clima, como eu já disse, já estava bastante tenso, e, inicialmente, era pouca a disponibilidade ao diálogo. Porém, neste instante, ouvindo e respondendo à sua pergunta, faço uma consideração. Eu acho que teria sido melhor se eu tivesse falado da alocução de Regensburg. Lamento não ter feito isso!
Por que razão?
Porque se trataria de outra demonstração de humildade e de honestidade. Uma demonstração que eu mesmo – assim como outros tantos teólogos norte-americanos ou não – não concordo com aquilo que o "meu" papa disse na cidade alemã. Por exemplo, a atmosfera mudou quando eu afirmei claramente que não concordava com o então presidente estadunidense George Bush. Quando eu disse isso e acrescentei que outros cidadãos estadunidenses não concordavam com a sua política, tudo isso mudou a atmosfera. A humildade e a honestidade são dois elementos importantes para o diálogo inter-religioso.
A última pergunta quer condensar o conjunto dessas reflexões. O que resta, para o senhor, de Regensburg, dez anos depois? Quais o senhor acredita que são as orientações a seguir para construir juntos um mundo de paz e de justiça, seguindo o chamado – que o senhor reconhece como comum, apesar das diferenças – de Deus?
É uma pergunta difícil, mas prática. Eu respondo com uma citação do Alcorão, tirada da Sura 5, 48, e quero comentar brevemente esse texto. A passagem em questão afirma: "A cada um de vós – diz Alá – temos ditado uma lei e uma norma; e se Deus quisesse, teria feito de vós uma só nação; porém, fez-vos como sois, para testar-vos quanto àquilo que vos concedeu. Emulai-vos, pois, na benevolência, porque todos vós retornareis a Deus, o Qual vos inteirará das vossas divergências" [na tradução de Samir El Hayek].
Esta é uma recomendação muito prática. As religiões devem pôr de lado as suas insistências na superioridade, na autoridade e devem começar a cooperar juntas nas coisas que são importantes para toda a humanidade. As religiões devem colaborar para enfrentar a ameaça representada pela injustiça, pela pobreza ou pelo problema ecológico. São problemas que necessitam da cooperação de todas as tradições religiosas da humanidade. O diálogo inter-religioso não deve começar pelas diversas teologias, mas pela amizade solidária.
Através da solidariedade, sobre o seu fundamento, as religiões podem entrar também no discurso teológico, mas, antes de tudo, é preciso dialogar com a humanidade. O Papa Francisco chamou todas as religiões a cooperarem pela salvação do mundo. Nós, seres humanos, devem "emular-nos" em boas obras. Podemos pôr de lado as questões teológicas para abordá-los em um segundo momento. A minha esperança é que, ao nos comportarmos dessa maneira, podemos ir além do Discurso de Regensburg, porém, seguindo a intuição e a diretriz de Joseph Ratzinger. Essa diretriz ratzingeriana consiste em um diálogo entre as religiões, enraizado profundamente na razão e em uma ética comum para o bem-estar de todos.
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Ratzinger e o discurso de Regensburg, 10 anos depois. Entrevista com Paul Knitter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU