03 Mai 2016
O Ministério da Justiça publicou, em 20 de abril, a portaria declaratória da Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, no Mato Grosso, com 411 mil hectares, junto de várias outras terras que estavam na gaveta e começam a ser declaradas e homologadas pelo governo após a votação do golpe no Congresso.
A reportagem é de Felipe Milanez, publicada por CartaCapital, 30-04-2016.
Esta TI, ao contrário das outras, é para o usufruto exclusivo de um povo que vive em isolamento voluntário, pelo menos um grupo que fala a língua tupi Kawahiva. Pelo fato de os indígenas viverem em “isolamento” como uma estratégia de resistência, por muito tempo grileiros e madeireiros alegavam que eles seriam “inexistentes”. Neste caso, uma imagem valeu mais do que mil ofensas racistas aos indígenas: o registro audiovisual feito pelo sertanista da Funai Jair Candor.
Em uma expedição coordenada por Candor, em julho de 2011, ele conseguiu filmar um grupo dos Kawahiva caminhando tranquilamente pela floresta, a poucos metros dele.
São possivelmente as imagens mais espetaculares registradas de um povo em isolamento, e podem ser vistas no site Youtube.
Tais imagens deveriam ter tido divulgação imediata em razão da vulnerabilidade em que estes indígenas se encontram, entre outros fatores por estarem em Colniza (MT), um dos municípios mais violentos do Brasil, e serem sobreviventes de um genocídio pelos madeireiros da região. Entretanto, as imagens foram colocadas na gaveta por dois anos pelo coordenador da área da Funai, Carlos Travassos, que liberou as imagens, em 2013, para a TV Globo.
Com o trabalho de campo de sertanistas experientes como Candor, Rieli Franciscato e Altair Algayer, foi possível não apenas comprovar, por imagens, a existência dos indígenas, como identificar o território ocupado por esse grupo que vive em isolamento voluntário sem a necessidade de ter sido feito um contato.
A antiga restrição de uso feita pela Funai, provisória, era de 116 mil hectares, e havia sido feita logo após a confirmação da existência dos indigenas, no início da década. Os dados coletados em diversas expedições dos sertanistas permitiram a revisão destes limites na elaboração do estudo da TI, com o tamanho atual que foi declarado pelo Ministério da Justiça.
Esse trabalho de campo, fundamental na defesa dos direitos indígenas, liderado por sertanistas, também serviu para desmontar uma tese difamatória que surgiu nos corredores da Funai a partir de uma conturbada e criticada reforma do órgão feita em 2010: a tese de que há um “novo indigenismo” em oposição a um “velho sertanismo”, que acabou por quase promover uma descontinuidade histórica das lutas em defesa dos direitos dos povos indígenas por parte dos servidores da fundação.
Esse processo difamatório serviu para desqualificar o trabalho de servidores, promover processos administrativos a quem pensasse de forma diferente e crítica da gestão do momento, assédio moral de servidores, perseguições.
Especificamente na área de índios isolados, Carlos Travassos, atual coordenador da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Contato Recente, era um dos agentes que vinha promovendo esses conflitos internos, conforme foi mostrado em reportagem publicada em novembro do ano passado na CartaCapital.
A gestão de Travassos, conforme declarou o sertanista Antenor Vaz ao site AmazôniaReal, “preferiu isolar-se das bases, apoiar a discussão em Brasília e fortalecer instituições não governamentais em busca de recursos financeiros externos (à Funai) sem a participação dos que trabalham em campo. Hoje existem ONGs, financiadas pelo BNDES para trabalhar com povos isolados.”
Recentemente, Travassos apresentou um pedido de exoneração à presidência da Funai após uma crise no Vale do Javari, envolvendo indígenas Matis e isolados do povo Korubo, que resultou em “pelo menos” (a expressão é da Funai) 10 mortes, sendo oito de indígenas Korubo em isolamento.
O movimento indígena chegou a denunciar à ONU o coordenador da CGIIRC, e a Funai publicou uma famigerada “nota de repúdio” contra os indígenas.
No caso da TI Kawahiva do Rio Pardo, a notícia da demarcação é para se comemorar. Em meio à profunda crise política que o País atravessa, resta imaginar formas de resistência.
As imagens feitas por Jair Candor, cuja foto que ilustra esse texto é um frame do vídeo que ele registrou, são resultado de um profundo conhecimento da floresta, dos povos indígenas, e de uma dedicação extraordinária à defesa dos direitos dos povos indígenas.
No livro Memórias Sertanistas (Sesc, 2015, veja aqui), Candor relata com detalhes como foram feitas as imagens durante a expedição realizada em julho de 2011. Leia abaixo:
O encontro com os índios isolados, por Jair Candor
Quando começamos a encontrar os vestígios, montamos um acampamento e deixamos a nossa tralha. Mais leves, fomos mais rápido e achamos bastante tocaia, um tipo de espera, um esconderijo onde eles ficam imitando algum bicho para caçar. Achamos muita madeira derrubada por eles, sova, que é uma árvore frutífera, uma fruta muito boa. Aí, andamos mais um pouco e escutamos eles conversando em um tapiri, ali perto. Tinha dado uma chuva, e eles estavam parados conversando.
Eu levava um facão e um machado, deixei lá, em cima do toco, e falei para voltarmos para o nosso barraco. Deixamos o facão, o machado e fomos para o barraco.
No outro dia, pegamos a nossa tralha, desmontamos o acampamento. Eu falei: “Vamos subir beirando o Piranha. Se a gente tiver um encontro com eles, beleza. Se não tiver, vamos fazer um levantamento de informação e vamos embora”. E aí fomos. Passamos no tapiri – eles já não estavam mais no tapiri. O fogo estava aceso, estava toda a tralha deles lá. O machado e o facão que a gente deixou, eles tinham pegado.
Passamos pelo tapiri e andamos um bocado. Paramos num determinado ponto, que eu já nem acreditava que a gente ia encontrar mais eles. Porque a gente já tinha passado pelo tapiri. Falei: “Devem estar para trás”. Pouco depois a gente escutou eles vindo, conversando. Aí a gente não teve nem muito tempo assim, também, para se camuflar, se esconder e tal. Eu só falei para os meninos: “Vocês deitem no chão e vamos ficar calados. Ninguém reage, ninguém, não quero ninguém pegando arma, ninguém fazendo movimento brusco nenhum. Vamos ficar de boa”.
Liguei a câmera, os meninos se camuflaram um pouquinho. Aí foi passando. Passando, passando, passando. Passou oito, aí, na nona pessoa, o menininho que estava nas costas da mulher foi quem me viu. O menino falou com ela, ela entendeu. “Olha, mãe, tem branco me olhando.” Aí [ela] correu. Eu tentei gritar, chamei ela ainda, falando palavras na língua [dela], que éramos amigos. Ela parou lá, deu uma olhada. Respondeu [com um] resmungo e foi embora.
Registrei tudo isso. Filmei esse encontro, muito perto deles. Não temos mais o que provar que esses índios existem, que vivem nessa terra indígena, e que ela precisa ser demarcada. Eu, hoje, fico me perguntando: o que é que ainda falta para se demarcar a terra Kawahiva do Rio Pardo?
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Por trás de uma demarcação, a poderosa imagem dos índios isolados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU