05 Abril 2016
Os monges de Tibhirine se tornaram parte do destino do povo no qual quiseram "desaparecer". Em uma Igreja que, na época, se deleitava com o exagero papal, que premiava com as sedes episcopais o ativismo semipelagiano das submarcas católicas em competição entre si, aquela escolha tinha dotado a comunidade e o seu prior de uma clarividência incomparável.
A opinião é de Alberto Melloni, historiador da Igreja italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII de Bolonha. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 04-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A comunidade de Bose, de acordo com um uso litúrgico antigo, alinha desde sempre na sua oração duas séries de intercessões. Na primeira, reza-se pelo mundo assim como Deus o vê: com as suas Igrejas desunidas, os seus pastores e os seus soberanos, os seus fiéis. Na outra intercessão, deposita-se em Deus a memória daquilo que cada pessoa pode ver: a fragilidade da vida, a fidelidade intermitente de quem ama, e não por último a dor dos países em guerra. Países que, na linguagem da oração de Bose, eram e são lembrados com um termo técnico, teologicamente denso: "Situações".
Na primeira metade dos anos 1990, quem passasse pelo mosteiro na Serra de Ivrea, por isso, ouviria que se rezava muito, de joelhos, pela "situação na Argélia". A terra de Henri Teissier, o arcebispo de Argel (que a Igreja Católica se esqueceu de fazer cardeal). A Argélia de Pierre Lucien-Claverie, o bispo que morreu mártir em Oran. A Argélia dos mortos na guerra civil, que tinha em si causas e efeitos que hoje vemos melhor.
Esse país, de fato, tinha sofrido as repercussões das guerras que iniciaram dez anos antes na região que vai do Líbano ao Afeganistão. Lá, tinham se liberado energias de morte antes desconhecidas: os "freedom warriors" financiados por Reagan, que aprenderíamos a chamar de talibãs; os milicianos da "guerra imposta" do Iraque contra o Irã; os mercenários recrutados no Magrebe e mandados para combater nos desertos ou na Bósnia.
Os sobreviventes dessas guerras voltavam para casa como se tivessem usado uma cocaína teológica: prontos para matar para impôr um "estado islâmico", que, na realidade, era apenas um fascismo religioso, machista e obscurantista, indigno da grande cultura muçulmana.
Na Argélia, quem foi intérprete dessa utopia político-religiosa foi a Frente Islâmica de Salvação. A FIS ganhou as eleições do dia 26 de dezembro de 1991: mas a ascensão ao poder foi barrada por um golpe militar do dia 11 de janeiro seguinte. E a Frente passou para a luta armada, logo ultrapassado por outra formação, o Grupo Islâmico Armado, composto por militantes e sobreviventes mais inescrupulosos para fazer da guerra civil uma guerra de extermínio.
Os massacres do GIA do verão de 1997 em Hai Rais e Bentalha documentam a ferocidade com que vilarejos acusados de colaboracionismo com o exército eram exterminados: com crianças e adultos degolados pelos carrascos. Relatos mais fragmentados falam de burgos aniquilados pelo exército, com base em acusações genéricas de colaboracionismo com os islamistas. E deixaram poucos vestígios as prisões governamentais no deserto, das quais se saía morto ou sem alma.
Essa é a "situação" – em torno do qual se moveu um mundo feito de diplomatas, de traficantes, de espertalhões, de cínicos como aquele que vemos dançar ainda hoje em torno de tragédias internacionais semelhantes – lembrada nas orações de Bose. Mas mesmo dentro das fronteiras argelinas havia uma presença orante.
Havia a oração islâmica que colocava as mesmas palavras na boca dos carrascos e das vítimas. Havia a oração cristã que subia de uma igreja católica muito pequena, que saíra da descolonização com uma escolha de silêncio e de caridade que a mantinha próxima do destino do povo: como a oração que se elevava do mosteiro trapista de Tibhirine, fundado na montanha do Atlas, nos anos 1930.
Tibhirine fazia parte, no início, da política religiosa da França. Porém, depois da vitória da resistência e a independência, ele tinha se tornado o que é e deve ser todo cristão e, portanto, todo mosteiro: um nada doado, solidário com a vida simples dos tempos de paz e a vida triste dos tempos de guerra.
O superior do mosteiro trapista desde 1984 era o irmão Christian de Chergé, um francês. Jovem noviço anticolonialista, ele tinha sido enviado para a guerra na Argélia em 1961. Salvo por um amigo muçulmano durante um tiroteio, De Chergé se estabeleceu na Argélia libertada, tornou-se monge em Tibhirine em 1972 e, a partir de 1979, o círculo de diálogo islâmico-cristão Ribat es Salam (o "Vínculo da Paz" de Efésios 4).
Quando eclodiu a guerra civil, o prior e os seus irmãos decidiram permanecer na Argélia, embora fossem um alvo. Para incutir medo e provocar decisões internacionais vantajosas para os exércitos em luta, de fato, não bastavam os milhares de argelinos (no fim, 150 mil) que passaram pelas armas dos milicianos e dos militares: era necessário sangue europeu. E em Tibhirine havia.
Na noite entre os dias 26 e 27 de março de 20 anos atrás, alguns foram coletá-lo.
Sete dos nove monges, com idades entre 45 e 66 anos, foram capturados por um comando, aparentemente do GIA, e levados embora. Foram mortos: e os últimos "proprietários" dos sete reféns entregaram novamente, no dia 21 de maio, apenas as suas cabeças. Algo que levou a pensar, mais do que em uma decapitação "ritual", em um gesto estudado para esconder corpos que revelariam se os trapistas foram mortos em uma blitz fracassada ou em uma operação de serviços ou em um sequestro tramado para fingir uma libertação propagandística.
Assim, aqueles sete monges se tornaram parte não só da lista dos mártires de uma Igreja muitas vezes incerta para definir assim a morte crente ou da história do cinema (com Homens e deuses, de Xavier Beauvois).
Eles se tornaram parte do destino do povo no qual quiseram "desaparecer". Em uma Igreja que, na época, se deleitava com o exagero papal, que premiava com as sedes episcopais o ativismo semipelagiano das submarcas católicas em competição entre si, aquela escolha tinha dotado a comunidade e o seu prior de uma clarividência incomparável.
Um dos textos espirituais mais belos do século XX dá fé disso, ou seja, a carta-testamento do irmão Christian dirigida "ao irmão" que o mataria e esperado por esse monge douto e profundo.
Nesse testamento (reeditado no livro Più forti dell’odio, Ed. Qiqajon), o irmão Christian escreve que dar a vida permitirá que aqueles que creem no "Deus uno" contemplem com ele os Seus filhos do Islã como Ele os vê; que eles se regozijem no Espírito "cuja alegria secreta será sempre estabelecer a comunhão e restabelecer a semelhança, brincando com as diferenças".
Palavras assinadas com o sangue derramado quando alguém cortou o fio que liga a mente ao coração do ser humano: que pode ser um falcão, que pode ser uma pomba. Ou pode ser humano e se tornar um nada doado que, na prova, permanece solidário com o último.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Quem matou os homens de Deus, pregadores do diálogo? Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU