03 Abril 2016
É preciso pensar que a salvação sempre esteve disponível aos seres humanos, quer pertençam a qualquer religião ou não religião, porque está ligada ao bem e à justiça.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 26-03-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"A Igreja ficou 200 anos para trás", declarou o cardeal Martini na última entrevista, mas eu acho que esse atraso eclesiástico é a expressão de um atraso mais preocupante do cristianismo como tal, cada vez mais incapaz de sustentar o seu anúncio fundamental. O problema é o centro da fé cristã, isto é, a salvação. Como pensá-la? Qual é a sua especificidade?
Roger Haight, jesuíta estadunidense, descreve a situação assim: "O significado da salvação permanece evasivo; todo cristão comprometido sabe o que é a salvação, contanto que não se peça para explicá-la". Não há religião sem salvação; há religiões sem Deus, mas nenhuma sem salvação.
Para o cristianismo, a salvação surge da Páscoa de Cristo, sobre a qual lê-se no Catecismo católico: "Existe um duplo aspecto no mistério pascal: pela sua morte, Cristo liberta-nos do pecado; pela sua ressurreição, abre-nos o acesso a uma nova vida" (art. 654). Esse é o centro da mensagem: a salvação como redenção operada por Cristo.
O conceito de redenção é desconhecido às outras religiões: Moisés, Buda, Confúcio, Maomé são legisladores, mestres, profetas, sábios, não redentores, ou seja, não são eles que dão a salvação, que, em vez disso, é obtida pelos fiéis seguindo os seus ensinamentos. O cristianismo se distingue porque considera a humanidade corrompida pelo pecado original e incapaz de méritos espirituais, e, portanto, anuncia a salvação como algo operado gratuitamente por Deus por meio da redenção obtida por Cristo...
A cada ano, a Páscoa é a solene celebração desse evento. Examinando a história dessa doutrina, vê-se que o primeiro a formulá-la foi São Paulo. Ele escreve: "Todos pecaram e estão privados da glória de Deus, mas se justificaram gratuitamente pela sua graça, mediante a redenção realizada por meio de Jesus Cristo. Deus o destinou a ser vítima que, mediante seu próprio sangue, nos consegue o perdão" (Romanos 3, 23-25).
Paulo afirma que a morte de Cristo foi querida diretamente por Deus e, em outros lugares, acrescenta: "Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós" (2Coríntios 5, 21).
Lendo os seus escritos em ordem cronológica, porém, descobre-se que nem sempre São Paulo pensava assim. Na sua carta mais antiga, de fato, ele não fala da morte-ressurreição de Cristo como de um ato redentor, nem do evento salvífico como já ocorrido. Ao contrário, para ele, a salvação ainda deve ser implementada. Eis como: "A uma ordem, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do céu. Então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, que estivermos ainda na terra, seremos arrebatados junto com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor" (1Tessalonicenses 4, 16-17).
Paulo escreve que Cristo morreu "por nós", mas não faz com que a salvação dependa dessa morte. A prova é que ele não considera esta última como querida por Deus (como, em vez disso, defenderá mais tarde), mas pelos judeus, como aparece a partir destas palavras destinadas a alimentar o antissemitismo ao longo dos séculos: "Os judeus mataram o Senhor Jesus e os profetas, e agora nos perseguem. Desagradam a Deus e são inimigos de todo mundo" (1Tessalonicenses 2, 15). Aqui não há um plano de Deus que manda o Filho para morrer; em vez disso, há a inimizade dos judeus que mataram Jesus, que, porém, foi ressuscitado por Deus em uma clara demonstração da mutação da história que se realizará com o seu retorno iminente. A mesma abordagem é encontrada em 1Coríntios.
São Paulo logo muda de perspectiva, e é fácil entender o porquê: a falta da vinda de Cristo o induz a colocar o centro focal não mais no futuro, mas no passado: Cristo é o salvador não porque vai voltar vitorioso, mas porque morreu se oferecendo ao Pai e nos reconciliar com Ele com o Seu sangue. Cristo se torna, assim, o redentor crucificado.
É nessa luz que, 20 anos depois, são compostos os Evangelhos. Eles, porém, relatando também o pensamento de Jesus, permitem levantar a questão decisiva: Jesus pensava a salvação como redenção, ou, como judeu observante, Ele a ligava ao responsável exercício da liberdade?
Há textos evangélicos alinhados com a teologia da redenção, por exemplo, quando Jesus diz ter vindo "para dar a própria vida em resgate por muitos" (Marcos 10, 45), ou quando, na última ceia, pronuncia as conhecidas palavras: "Este é o meu sangue da aliança, derramado por muitos, para a remissão dos pecados" (Mateus 26, 28). Nos Evangelhos, porém, existem muitos outros textos que apresentam a salvação ligada não a um evento externo, mas às ações livremente postas, de acordo com a concepção judaica tradicional da salvação como resultado da fidelidade à aliança, isto é, como justiça.
Em vez disso, eu penso que Jesus não teria gostado em nada da doutrina da redenção. Há todo o Sermão da Montanha para demonstrar isso, a partir das palavras do Pai Nosso sobre o papel ativo da liberdade: "Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores". Jesus prossegue: "De fato, se vocês perdoarem aos homens os males que eles fizeram, o Pai de vocês que está no céu também perdoará a vocês. Mas, se vocês não perdoarem aos homens, o Pai de vocês também não perdoará os males que vocês tiverem feito" (Mateus 6, 12-15).
O movimento decisivo cabe à liberdade humana, que, para Jesus, também é capaz de fazer o bem, porque não é irremediavelmente corrupta, como, ao contrário, vão dizer São Paulo e, mais radicalmente, Santo Agostinho.
A ideia de uma liberdade eficaz em ordem à salvação se encontra em muitas outras passagens evangélicas, tais como: "Vocês serão julgados com o mesmo julgamento com que vocês julgarem, e serão medidos com a mesma medida com que vocês medirem" (Mateus 7, 2). O princípio salvífico, portanto, está ligado à práxis responsável: "Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu" (Mateus 7, 21). O Sermão da Montanha, coração da mensagem de Jesus, é um apelo à liberdade como via eficaz para a obtenção da salvação.
Neste ponto, parece evidente a natureza problemática da construção teológica cristã posterior baseada na redenção, de onde surge a dificuldade para responder às seguintes questões:
1) Em que consiste propriamente a redenção operada por Cristo?
2) O ato redentor é verdadeiramente a morte de cruz ou a ressurreição?
3) Qual é o destino daqueles que dele não participam?
4) Do que somos redimidos: da morte, do Diabo, do egoísmo, do mundo, do castigo de Deus, da Lei, do pecado ou de tudo isso junto?
A raiz da aporia reside, a meu ver, na ideia de uma especificidade cristã da salvação por estar ligada a um determinado evento histórico, isto é, na definição dada ao cristianismo por São Paulo e estranha a Jesus. Na realidade, é preciso pensar que a salvação sempre esteve disponível aos seres humanos, quer pertençam a qualquer religião ou não religião, porque está ligada ao bem e à justiça.
É o Evangelho que afirma isso: "‘Venham vocês, benditos de meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar’" (Mateus 25, 34-36).
No Livro dos Mortos do antigo Egito, há palavras análogas: "Eu satisfiz a Deus com aquilo que ele ama: dei pão ao faminto, água ao sedento, vesti o nu, dei um barco a quem não o tinha" (cap. 125). O texto remonta a 1.500 anos antes de Cristo e, ao dizer as mesmas coisas, mostra o verdadeiro sentido da salvação, que nunca faltou ao gênero humano, bem antes do cristianismo histórico: a libertação do ego e a abertura ao bem, ao amor, à justiça.
Eu considero não implausível pensar que em quem pratica esse estilo de vida pode se gerar uma disposição peculiar da sua energia constitutiva (o que tradicionalmente se chama de alma) capaz de vencer a curvatura do espaço-tempo.
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Cristãos ou não, sejam justos e serão salvos. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU