26 Janeiro 2016
O sociólogo Richard Sennett puxa o fio da meada da corrida presidencial americana. Primeiro analisa o crescente debate sobre desigualdade no país: “A classe média está estrangulada, e tende a cair”. Depois avalia a ascensão do socialista Bernie Sanders: “O que ele diz não é utopia, é realidade, confronta os milionários e conversa com os jovens sem emprego”. Então fecha com Obama: “Ele elevou o nível do debate ao falar como um adulto para um público adulto. Esse é seu maior legado”.
A reportagem é de Vitor Hugo Brandalise, publicada por O Estado de S.Paulo, 24-01-2016.
Nunca a concentração de riquezas foi tanta nos bolsos de tão poucos. Soubemos essa semana que 62 bilionários (entre eles, dois brasileiros) possuem o equivalente ao que têm, juntos, outros 3,6 bilhões de pessoas, a metade da população mundial, justamente os mais pobres. A cada par de anos sai uma estatística parecida, tão difícil de acreditar quanto a primeira. Precisamos mesmo ser tão desiguais?
No país de maior economia do mundo, onde a corrida eleitoral começa a esquentar, essa parece ser a pergunta da vez. Mostra que alguma coisa já mudou no debate político americano. Não se fala apenas em imigração e política externa, mas também nas jornadas de trabalho que só aumentam, nos salários que diminuem, nos empregos que não dão segurança. A classe média, símbolo da força da economia do país, começou a sofrer – e assim a discussão sobre distribuir a riqueza ganhou espaço no epicentro da meritocracia e dos self made men.
Para o prestigiado sociólogo Richard Sennett, professor da London School of Economics e da Universidade de Nova York, esse é só o começo do debate sobre desigualdade econômica em países ricos. “A classe média americana está estagnada e, se vai a algum lugar, é para baixo. É uma situação nova, num país que sempre se vendeu como terra da oportunidade. A fantasia acabou, o eleitorado está percebendo e isso estará muito presente na política americana nos próximos anos”, afirma Sennett, autor de O Declínio do Homem Público (clássico da sociologia, de 1977, sobre mudanças de comportamento do homem desde o século 18) e de Respeito: A Formação do Caráter em um Mundo Desigual (Record), misto de livro de memórias e análise da desigualdade social com base em sua infância pobre, no Brooklin dos anos 40.
Nesta entrevista, Sennett também analisou o papel do principal porta-voz da discussão sobre desigualdade nos Estados Unidos: o senador Bernie Sanders, que se declara socialista e vem desbancando Hillary Clinton em alguns Estados na disputa pela candidatura democrata à Casa Branca. “Dizem que ele é idealista. Por acaso é idealismo defender o confronto às oligarquias, se é o que os Estados Unidos precisam? Ele vem se tornando tão popular, especialmente entre os jovens, por dizer o que tem de ser dito.” Sobre o legado de Obama após oito anos na presidência, Sennett foi generoso. “Ele elevou o nível do debate político, ao falar como um adulto para um público adulto.”
Eis a entrevista.
Por que o debate sobre a desigualdade reapareceu nos Estados Unidos?
A principal razão é que a natureza da desigualdade mudou no país. A classe média estagnou, num processo que vem acontecendo há 20 anos. Houve uma recuperação depois da crise financeira de 2008, mas, agora, com o país cada vez mais demandando produtos, isso fica mais aparente. A desigualdade, em vez de ser definida pelos mais pobres, é hoje um problema maior para os que estão no meio. Os que ficam mais embaixo estão, inclusive, levemente melhores do que em 2007. Essa mudança, essa redistribuição da desigualdade, leva o tema para o centro do debate político. Nos Estados Unidos, é uma questão que se nota na medida em que afeta a classe média.
Como chegou a esse ponto?
A classe média estagnou, essencialmente, porque muitas das indústrias de serviço americanas passaram a oferecer apenas trabalhos de curto período, que pagam pouco, ou se transferiram para o terceiro mundo. Especialmente indústrias de serviços, como call centers, que são levadas para países como a Índia. Como eu disse, são oferecidos muito menos trabalhos full-time, ou de períodos mais longos. O resultado é que os salários e, com eles, a riqueza estão diminuindo, e as pessoas sentem muito mais insegurança no trabalho.
Ao olhar os dados globais de emprego nos Estados Unidos, no bruto, parece saudável. Mas, se você observar quais são os trabalhos que empregam hoje, eles são de pior qualidade. É uma situação distinta da do Brasil, onde há uma diferença maior entre os de cima e os de baixo.
A economia nos Estados Unidos têm a forma de uma ampulheta, com o meio cada vez mais estrangulado. É a classe média, forçada a subir, ou, mais frequentemente hoje, descer. Enquanto isso, a riqueza extrema aumenta. Mas acho errado focar a questão da desigualdade no topo. É preciso ir a um nível inferior para entender. Do ponto de vista social, é interessante notar que todos estão tratando da estagnação da classe média. Essa é a razão da popularidade de Bernie Sanders, que é de outra geração, mas vem falando da realidade da classe média jovem. E fala disso de uma maneira que Hillary Clinton não consegue.
Quais as diferenças no pensamento de Hillary e Sanders nessa questão?
Toda a campanha de Sanders é baseada na noção do que se pensa na Europa, principalmente nos países nórdicos. Ele se diz socialista, mas na verdade é um social-democrata. Isso tem um apelo incrível entre os mais jovens e esse é o porquê de ele estar se tornando um desafio tão grande para Hillary. O que estou descrevendo é um problema grave para os jovens americanos, porque as oportunidades estão diminuindo aos que têm diploma universitário, há menos espaço no topo, menos gente com mais e mais dinheiro. E há menos empregos para os que estão embaixo e querem ter uma vida boa. Sanders é mais realista sobre a questão do trabalho. A noção de Hillary é mais baseada em mobilidade social. Uma visão antiga, desde que era senadora ela fala disso, em mover-se para cima na escala ocupacional. Mas não acho isso muito possível hoje, com menos posições de trabalho para a classe média. Hillary enfatiza o self made men, algo que não se sustenta mais, especialmente para os jovens. Não passa de fantasia.
E Sanders entendeu isso.
Sim. Os jovens, os millenials, estão acordando para a desigualdade. Isso é uma mudança real. Antes de 2008, eles não pensavam muito nisso. Mas a crise dramatizou a situação para eles. As oportunidades encolheram, a segurança está encolhendo. É um mundo diferente para essa classe média que, desde a Segunda Guerra, presumiu sempre que cada geração viveria melhor do que a anterior. Não houve reflexão de que poderia ser diferente. Hoje a situação mudou, e os millenials são os primeiros a lidar com esse fato.
As propostas de Sanders para reduzir a desigualdade seriam efetivas?
Certamente. Ele fala em diminuir o poder das oligarquias, aumentar impostos para os mais ricos e, com isso, expandir programas de segurança social, criar um sistema de saúde acessível a todos. Funcionou em países nórdicos. Não concordo com tudo o que ele diz, mas ele tem falado em um problema real, que é a insegurança laboral. Estou menos preocupado com a distribuição de riqueza do que com a segurança que uma real democracia social poderia trazer. As pessoas sempre conviveram com desigualdade e sempre lidaram com ela. O que está realmente diferente hoje é a estrutura do trabalho, muito instável. As pessoas sentem falta de segurança inclusive para ousar, fazer coisas novas. Isso é estimulado se houver um sistema que permita que se reergam se falharem. É o que Sanders defende, e esse sistema seria uma boa opção, necessária até, para os Estados Unidos. Mas não acredito que tenha chances.
Por quê?
Não tem a ver com o fato de que ele se diga socialista. Tem a ver com a estrutura da política. Ele não tem organização partidária, é um indivíduo correndo sem estrutura política por trás. Ele pode ganhar as primárias em Estados pequenos, mas nunca em Nova York, Pensilvânia, Texas, Califórnia. Ele não está integrado na classe política, e é o que gosto nele. Mas, como realista, digo que se você não controla a classe política você tem problemas. Pode-se dizer que o presidente Obama também não tinha organização política por trás dele em 2008. Mas Hillary gerenciou tão mal seu plano naquela ocasião que Obama foi capaz de, passo a passo, colonizar instituições políticas novas a ele. Isso não está acontecendo com Sanders. Hillary aprendeu com a experiência de 2008. Então não acho que ele terá a mesma oportunidade.
Mas o que representa haver um político de esquerda com chance em um país como os Estados Unidos?
Representa uma tentativa de falar de uma realidade que mudou. Os americanos gostam de fantasias, de viver uma fantasia. E eles tiveram o poder de viver isso durante muito tempo. A esperança da mobilidade social, por exemplo, de trabalhar duro e chegar lá. E agora perderam esse poder.
Sanders está recuperando utopias?
Não acho que ele seja um idealista, que tenha ideias utópicas. Seria porque fala em confrontar as oligarquias? Eu diria que esse é um ideal realista. Seria mais realístico dizer “não, não vamos falar disso”? Falar em confrontar milionários e bilionários, como ele faz, não é o que se espera de um político que quer ser candidato a presidente. Mas dizer o que precisa ser dito é ser utópico? Não acho que esteja devolvendo fantasias aos jovens, ou motivos para sonhar. Ele está reconhecendo e mostrando a eles as realidades em que vivem. Independentemente se pode ou não ganhar, está criando um movimento. Aos 74 anos. Espero que vá bem, porque a América precisa fazer as discussões que ele propõe.
Na sua opinião, qual será o legado de Obama?
Ele concretizou propostas muito boas. Conseguiu fazer um sistema de justiça racial mais justo, o que é uma grande realização. Tentou melhorar o sistema de saúde e foi parcialmente bem-sucedido. Fez um esforço. Em outras coisas ele foi mal: o legado dele na questão ambiental é pobre, e sua política internacional teve resultados mistos. Muito pobre no começo, com melhoras recentes. As aberturas para Irã e Cuba foram um grande legado. Mas isso ele só fez no fim. E ficou na Casa Branca durante oito anos. Gostaria de vê-lo sair do Afeganistão, de ser mais enérgico na crise de refugiados... Em linhas gerais, foi um bom governo.
Mas o que eu realmente gosto nele é que Obama sempre falou como adulto para um público adulto. E muitos políticos americanos tratam o público como crianças. Obama honrou o público ao levá-lo a sério, elevou o nível do debate na política. E agora, para onde vai isso? Vai se perder. Se for um republicano, cairá como chumbo. O discurso passará a ser primitivo. Mas, mesmo se for um democrata, se for Hillary, vai cair o nível. O único que está falando com o público como Obama faz é Sanders. Uma discussão adulta. Mas, como não acredito que ele tenha chance, corremos um risco sério de ver, novamente, discussões infantis nos Estados Unidos. E sabemos como isso tem reflexos em muitos países da área de influência americana.
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Retalhos de um sonho. Entrevista com Richard Sennett - Instituto Humanitas Unisinos - IHU