"A festa da Santíssima Trindade imprime em nossos corações a realidade do que chamamos de relações interconetadas ou pericoréticas em Deus uno e trino. Está posta aqui a opção de cada pessoa. Deus propõe sua Aliança de Amor mas a resposta depende da liberdade e da responsabilidade de cada pessoa, comunidade, povo.
"E hoje... como traduzir na prática cotidiana a mensagem recebida da Palavra de Deus?
Vivemos numa sociedade hiperconectada. Mesmo assim as relações humanas fragilizam sempre mais. Numa sociedade marcada muitas vezes pelo ódio, e pelas desigualdades, o testemunho do Amor Trinitário de Deus torna-se uma ação revolucionária, místico-profética. Na contramão do mundo, o dinamismo trinitário de Deus nos impele a com Ele construirmos o Reino de Amor e de Paz numa sociedade com relações justas e igualitárias. Urge fazer uma releitura de nossa existência a partir do dinamismo trinitário de Deus que impregna toda criação, como lembra a Laudato Si."
A reflexão é da biblista Lúcia Weiler, religiosa da Congregação das Irmãs da Divina Providência - IHP. Ela possui graduação em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio.
Leituras do Dia
1ª Leitura - Ex 34,4b-6.8-9
Salmo - Dn 3, 52.53.54-55.56 (R.52b)
2ª Leitura - 2Cor 13,11-13
Evangelho - Jo 3,16-18
Hoje celebramos a festa de Deus e não de algum Santo. Também não é uma faceta ou um atributo, nem sequer uma imagem de Deus que está no centro desta solenidade. É Deus mesmo. Mas qual Deus?
Mais do que nunca somos confrontadas, hoje, com uma realidade que pede um discernimento e uma opção de fé entre o Deus Vivo e Verdadeiro e ídolos de muitos nomes, (criados de acordo com interesses pessoais ou coletivos,) que ocupam o seu lugar. Deus não pode ser reduzido a uma ideia, nem enquadrado num esquema hierárquico no qual Deus é colocado com um ser fora de nossa realidade, acima de todos, indiferente ao sofrimento humano. Quem opta pelo Deus Vivo compromete-se com a vida, como valor inegociável.
Místicas e místicos que experimentam Deus em profundidade passam por noites escuras da fé. E testemunham: basta “deixar Deus ser Deus” em nossa vida em nossa história. Assim Tereza D’Avila: “Só Deus basta!” Isto significa abertura para acolher Deus na relação de Mistério. E Mistério não se interpreta, porque é revelação contínua. Assim o Deus que hoje contemplamos como Mistério da Santíssima Trindade revela-se aos poucos, na experiência da relação e do encontro.
A Palavra de Deus na Liturgia de hoje apresenta um caminho desta revelação, iniciando pelo Êxodo, passando pela Carta aos Corintios e culminando com o Evangelho segundo João.
Somos convidadas a deixar-nos conduzir nesse Caminho por três guias de trilha com sua experiência de Deus: Moisés, Paulo e a Comunidade do Discípulo Amado.
A primeira leitura é do livro do Exodo 34, 4b-6.8-9. Uma preciosidade literária e mistagógica. Deixemo-nos guiar pelos movimentos e o dinamismo da Palavra reveladora de Deus.
O primeiro movimento é de Moisés que antes do raiar do dia sobe à Montanha do Sinai. Moisés responde a um chamado de Deus e leva consigo as duas tábuas de pedra nas quais está impressa a Constituição do povo de Israel, povo da Aliança.
Há um segundo movimento, quase simultâneo de Deus que desce na nuvem e permanece junto de Moisés. Este permanecer, porém, não é estático.: Deus passa diante de Moisés.
E na medida que Deus vai à sua frente, ele grita (exclama o invoca): 'Iahweh, Iahweh! Deus de compaixão e de misericórdia, Deus paciente, cheio de amor e fidelidadel'.
Imediatamente Moisés cai de joelhos e prostrado por terra o adora, depois diz:
”Iahweh, se agora encontrei graça aos teus olhos, peço-te, continua em nosso meio e caminha conosco”. Moisés, não quer se apossar da experiência de um Deus apenas para si, mas um Deus que caminha junto com seu povo...mesmo reconhecendo que “é um povo de cabeça dura”. E como parte desse povo Moisés, ainda prostrado por terra, pede: perdoa nossas faltas e nossos pecados e acolhe-nos como tua herança (tua propriedade). ” Que maravilhosa Revelação do Deus da Aliança recebemos através desta experiência de Moisés.
O encontro de Moisés com Deus acontece no momento em que Moisés, que havia subido à montanha, também desce, curvando-se até o chão e prostrado por terra adora Deus.
Seu pedido insistente também é o nosso hoje: Continua em nosso meio, caminhando conosco, mesmo que sejamos um povo de cabeça dura, perdoa nossas faltas e nossos pecados e recebe-nos como tua herança. Em outras palavras: renova tua aliança conosco.
Desde a origem Deus Trindade se revela como relação, compaixão, misericórdia. Há um dinamismo de vida e envolvimento com a vida da humanidade do Deus revelado no Êxodo. Deus vê, ouve o clamor, conhece os sofrimentos e desce para libertar seu povo, tornando-se Deus Conosco (cf. Ex 3, 7-15). Na leitura deste domingo (a perícope é Ex 34, 1-9), Deus DESCE, na Nuvem imagem do Espírito que PERMANECE. Esse “Permanecer” de Deus através do Espírito não é estático e sim movimento. Por isso em seguida Deus passa adiante. Só quem o segue o ENCONTRA e pode proclamar seu nome, “IAHWEH”, com todo significado profundo do seu Mistério. Ele é o DEUS DO CAMINHO e no Filho encarnado na história humana ele se tornou o CAMINHO, A VERDADE E A VIDA (Jo 14,6).
Ao invés de um Salmo a liturgia deste domingo nos propõe o cântico de Daniel. Cântico profético para os tempos de hoje. Deus é único e não há outro além dele. E como é bom cantar a memória de Deus Bendito, Senhor da História, de todas as gerações (cf. também Ex 3,15).
E assim seguimos nosso caminho tendo Paulo como guia da trilha da Palavra de Deus. Estamos na conclusão da Segunda Carta aos Coríntios (2ª Cor 13,11-13). Paulo vibra com a comunidade: “Alegrai-vos, o Deus do Amor e da Paz estará convosco”. De certo modo temos aqui a continuidade da súplica de Moisés que pedia a Deus para ficar no meio de seu povo. Uma resposta que soa como promessa, porque a iniciativa da Aliança é de Deus e sua presença está garantida. Mas só percebemos que Ele está junto de nós como um Deus Conosco se deixarmos de ser um povo de cabeça dura. Por isso Paulo lembra: procurai vosso aperfeiçoamento, animai-vos e encorajai-vos, tende os mesmos sentimentos. Vivei na paz e o Deus do Amor e da Paz estará convosco. E conclui com uma saudação trinitária: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós”.
E por fim, de mãos dadas com a comunidade do Discípulo Amado seguimos a trilha da Palavra tendo como mapa um breve texto do Evangelho segundo João (Jo 3, 16-18), o mais trinitário de todos os evangelhos. Como sua narrativa é circular, e não linear, encontramos aqui como síntese um prelúdio de toda a teologia trinitária que será desenvolvida ao longo do Evangelho.
A afirmação central é: Deus amou de tal forma o mundo que entregou - enviou seu Filho único para que o mundo seja salvo, liberto, tenha vida. E para enfatizar ainda mais esta afirmação, num movimento literário tipicamente joanino, repete: Deus não enviou seu Filho para condenar , nem para castigar quem nele acredita. Deus que a vida e não a morte.
A festa da Santíssima Trindade imprime em nossos corações a realidade do que chamamos de relações interconetadas ou pericoréticas em Deus uno e trino. Está posta aqui a opção de cada pessoa. Deus propõe sua Aliança de Amor, mas a resposta depende da liberdade e da responsabilidade de cada pessoa, comunidade, povo.
E hoje... como traduzir na prática cotidiana a mensagem recebida da Palavra de Deus?
Vivemos numa sociedade hiperconectada. Mesmo assim as relações humanas fragilizam sempre mais. Numa sociedade marcada muitas vezes pelo ódio, e pelas desigualdades, o testemunho do Amor Trinitário de Deus torna-se uma ação revolucionária, místico-profética. Na contramão do mundo, o dinamismo trinitário de Deus nos impele a com Ele construirmos o Reino de Amor e de Paz numa sociedade com relações justas e igualitárias. Urge fazer uma releitura de nossa existência a partir do dinamismo trinitário de Deus que impregna toda criação, como lembra a Laudato Si'.
Papa Francisco na Laudato Si lembra que as Pessoas divinas são relações subsistentes; e o mundo, criado por Ele, é uma trama de relações. “Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade” (LS 240).
Uma representação artística da imagem da Santíssima Trindade que pode ajudar-nos nesta releitura é a escultura da Trindade Misericordiosa, de Caritas Müller. A original encontra-se numa pequena casa de oração, na Alemanha.
No centro da imagem está a pessoa caída, a humanidade ferida.
Deus Pai-Mãe, qual cuidadora, inclina-se e segura firmemente a pessoa doente com as duas mãos para ajudar a erguer-la.
Deus-Filho está ajoelhado, como que debruçado aos seus pés, cuidando dos sinais vitais para curá-la.
E Deus-Espírito, a Divina Ruah, aparece nessa imagem como sopro, alento e respiração universal geradora de vida. Paira sobre a humanidade ferida, animando-a, dando saúde e vida, energia e consolo.
Assim é Deus Trindade neste tempo de tanto sofrimento, num mundo ferido e doente. Deus está aí como Trindade Misericordiosa, seio cósmico, útero materno, gerador de vida nova. Convida-nos a sermos parteiras de Esperança e de Vida.
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