05 Outubro 2011
"Mal", qualifica sem hesitar o antropólogo Xavier Albó, jesuíta e fundador do Centro de Investigación y Promoción del Campesinado (Cipca) na Bolívia. Com uma palavra, resume o modo como agiu o governo Evo Morales diante da insatisfação dos indígenas do Tipnis (Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure). No último dia 25, eles foram reprimidos por policiais enquanto marchavam rumo à capital La Paz. O motivo é a construção de uma grande rodovia no território indígena, sem a anuência de seus habitantes.
A reportagem e a entrevista é de Felipe Prestes e publicada por Sul21, 04-10-2011.
Para o antropólogo, que conversou com o Sul21 por telefone, desde La Paz, o governo do Movimiento al Socialismo (MAS) teve uma trajetória ascendente até começar a causar "desencanto" em vários de seus apoiadores. Isto teve início em dezembro do ano passado, com o "gasolinazo’, quando o governo aumentou por decreto em 83% o preço dos combustíveis. "O governo disse que havia muito contrabando de gasolina, o que provavelmente é verdade. Mas houve uma reação popular, que levou a um desencanto. Inclusive, gente que era muito próxima ao governo se desencantou", diz Albó.
Contradições
A questão se aprofundou com a repressão aos indígenas do Tipnis e expôs contradições do presidente boliviano. "A construção da estrada entra em conflito com dois pontos chaves que deram popularidade a Evo, inclusive no plano internacional", afirma o indigenista. O prestígio do presidente, dentro e fora da Bolívia, se alicerça em sua origem indígena e por sua defesa da "Pacha Mama" ou da "Madre Tierra", explica o antropólogo. Evo ganhou notoriedade, inclusive, por aprovar leis que garantem direitos à Mãe Terra. Na ânsia por desenvolvimento e por cumprir uma obra já contratada junto à brasileira OAS com crédito do BNDES, Evo se vê agora contradizendo tanto a defesa dos povos indígenas quanto do meio-ambiente.
As contradições se dão dentro da própria base de sustentação do MAS, nos movimentos sociais. A rodovia ligará os departamentos de Cochabamba e Bení. Aos cocaleros do departamento de Cochabamba e aos colonizadores, como são chamados os pequenos agricultores, a rodovia interessa. Será uma ligação das terras altas, dos Andes, em que habitam; para as terras baixas, na Amazônia, com muitas áreas inabitadas que guardam a maior biodiversidade do país. Evo Morales teve sua formação política como líder sindical cocalero. É dos Andes e da etnia aimará, a segunda maior nação boliviana. Ao passo que os que vivem no Tipnis não chegam a 1% da população do país, uma minoria que habita a Amazônia.
Xavier Albó afirma que, de fato, a Bolívia precisa muito se desenvolver, é um país extremamente defasado em infraestrutura, mas ressalva que a estrada pode ser um perigo para os indígenas pela "fome de terras" dos cocaleros e colonizadores. Ele conta que na semana passada esteve em um encontro de indígenas do Peru, Bolívia e Brasil. "Os indígenas brasileiros disseram: "as estradas sempre vão contra nós’", destaca.
Tanto a estrada interessa aos agricultores que um grupo de camponeses bloqueou a marcha dos indígenas do Tipnis. Policiais foram acionados pretensamente para proteger os indígenas, mas, com este pretexto, impediram a sequência dela. O chanceler David Choquanca, bastante identificado com os movimentos sociais, foi até o bloqueio no dia 24 de setembro para conversar com os moradores do Tipnis. Um grupo de mulheres aproveitou a situação e forçou o chanceler a passar com os índios pelo bloqueio que os policiais faziam. Junto com um integrante do primeiro escalão de governo, os policiais cederam, mas a questão ganhou peso, porque o caso passou a ser tratado como se os indígenas tivessem sequestrado o chanceler.
No dia seguinte, um grande contingente de policiais atacou de surpresa o acampamento dos indígenas e tentou embarcá-los à força de volta para o Tipnis. A população da localidade em que se encontravam se solidarizou com os índios e impediu que a viagem forçada se concretizasse. O governo boliviano só teve a perder com a péssima repercussão do caso – que levou a pedidos de demissão de quatro integrantes do governo e cinco deputados a deixarem o MAS – porque a marcha continua e já se aproxima de La Paz. "Não creio que repetirão a experiência de bloqueá-la", projeta Albó.
Presença brasileira
O governo brasileiro negociou crédito de mais de R$ 300 milhões do BNDES para a obra, que será tocada pela também brasileira OAS. "Desde os militares, o Brasil busca uma integração regional que se dá pela construção de grandes estradas, barragens, etc.", opina Albó. O Brasil se beneficiaria porque a estrada facilita a ligação do Pacífico. Ligar este oceano com o Atlântico pela Amazônia, por meio de hidrovias, rodovias e ferrovias é um dos objetivos da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), iniciativa dos doze países sul-americanos que começou em 2000 e definiu vários eixos para a construção de obras de infraestrutura.
"Não se pode descartar a presença de forças interessadas do Brasil", diz Xavier Albó. O indigenista acredita que por ser muito intuitivo, Evo contratou a obra sem refletir que estava desrespeitando o que dizem a Constituição boliviana e tratados internacionais assinados pelo país: que não se pode construir a estrada sem fazer uma consulta prévia aos indígenas da reserva.
Com a obra já comprometida, com participação da maior potência continental, Evo não quis ceder. "Pelo compromisso que tinha com o Brasil e com setores locais resultou que não quis ceder. Evo disse que estava feito, que seria construída queiram ou não queiram", diz Albó.
O presidente tem buscado, por outro lado, reagir à péssima repercussão que a repressão aos indígenas teve no país e no Exterior. Disse que não houve qualquer recomendação de governo para que atacassem o acampamento dos integrantes da marcha, que foi destruído, e insinuou que alguns policiais têm má vontade com seu governo. Evo cobrou forte apuração do caso.
Nesta segunda-feira, o Ministério Público iniciou investigação que inclui o ex-ministro do Interior, Sacha Llorentti. Ele não suportou a pressão e renunciou ao cargo na semana passada. Enquanto isto, Morales anunciou a suspensão das obras do trecho 2 da rodovia e sinalizou que pode consultar os povos do Tipnis sobre a construção desta parte da estrada, mas o discurso foi ambíguo, insinuando que os habitantes dos outros locais beneficiados pela construção da via devem ser consultados. O presidente disse que a ligação é uma demanda de décadas dos moradores de Bení e também do departamento mais ao norte, Pando, que será o destino final da estrada. Afirmou também que organismos internacionais que se colocam contra a obra deveriam conhecer o local. "Visitei as comunidades de San Antonio e Santo Domingo, no coração do Tipnis, e vi como viviam, como estavam as escolas, uma pena, não têm energia, gás, nem caminhos, nem saúde, nem educação", declarou no último sábado. Morales disse também que os meios de comunicação tentam confundir a população.
Unidade e oposição
Membros do governo chegaram a insinuar antes dos fatos do dia 25 que os habitantes do Tipnis estavam mancomunados com os norte-americanos. Foi divulgado, inclusive, que houve ligações entre líderes da Confederación de los Pubelos Indigenas del Oriente Boliviano (Cidob) – entidade que abriga os povos originários da Amazônia e do Chaco, entre eles os do Tipnis – e da Embaixada dos Estados Unidos. De fato, as ligações aconteceram. A explicação foi de que os norte-americanos queriam se inteirar do que estava ocorrendo.
Xavier Albó minimiza estas relações. "Os cocaleros sempre pensam que os Estados Unidos estão por trás", diz. Para o antropólogo, as práticas do governo demonstram que ainda pensam estar nos sindicatos. "É típico da origem de Evo e do MAS. Quando estava na oposição, a tática sempre foi a dos sindicalistas: temos que derrotar o inimigo, derrotar o inimigo. Mas agora já não é derrotar um burguês, ao imperialismo ianque, mas a seus aliados".
Enquanto isto, a oposição ao MAS tenta buscar espaço. "Opositores que nunca se importaram com a Mãe Terra agora se importam com ela", ironiza Albó. Ainda assim, o antropólogo não vê grande margem de manobra para a direita. "Não há uma oposição bem organizada, não há uma liderança. No momento em que houver espaço, vão brigar entre eles", analisa.
Rupturas podem ocorrer na base de apoio ao MAS. Xavier Albó explica que as cinco grandes organizações sindicais indígenas bolivianas tiveram seu momento de maior união durante a Assembleia Constituinte que trabalhou na nova Constituição entre 2006 e 2009, quando houve um pacto pela unidade das organizações indígenas. Agora, são mais perceptíveis as diferenças entre as três organizações mais ligadas ao governo e as duas que também o apoiam, mas sem o mesmo fervor.
São elas o Cidob, dos povos do Oriente boliviano, que organizou a marcha, e o Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qollasuyo (Conamaq), que representava povos indígenas das terras altas, mas que apoiou desde o início a causa dos índios do Tipnis e é comumente mais crítico ao governo. Albó ressalta, contudo, que o MAS não tem o poder de manejar nenhuma das grandes organizações. "Quando houve o gasolinazo, pessoas dos três grupos mais alinhados também se desencantaram. Por isto, há divisões internas nestes grupos. O MAS não tem o controle absoluto sobre os movimentos sindicais. Estes setores têm sua própria lógica, seus próprios interesses", diz.
"O grande desafio é que sendo todos estes grupos distintos não entrem em fortes conflitos entre eles, uma vez que os inimigos principais são outros, os grandes detentores de terra. Nesta marcha, se quebrou um pouco isto", opina o indigenista. Ele afirma, porém, que, dada a fragilidade em que se encontra a oposição, está nas mãos de Evo a possibilidade de retomar os rumos de seu governo, consultando a população do Tipnis sobre a passagem da estrada, mesmo que isso implique em alterar uma obra que já está contratada com os brasileiros.
"A oposição de direita, a de sempre, no caso da Bolívia está desarticulada. Está nas mãos do próprio governo. Se Evo souber chegar a um acordo com a OAS e com o governo brasileiro, a oposição não cresce mais. Se continuar insistindo nessas coisas, dá de presente a possibilidade de que a oposição se organize", opina. Ele projeta que se Evo Morales tiver o gesto de ceder aos indígenas, pode sair desta crise maior do que entrou, como Lula em 2005.
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Há um desencanto com o governo Evo Morales, afirma indigenista boliviano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU