20 Agosto 2011
Causados também pela expropriação da riqueza para bancos e entidades supranacionais, os tumultos ingleses marcam o limite das democracias liberais, algo semelhante à passagem histórica da Idade Média para a modernidade: o que vai ficar de pé?
A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 17-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ela não evita perguntas. Especifica várias vezes o seu pensamento. Mesmo vivendo dividida entre Nova York e Londres, lê atentamente os jornais para entender o que está acontecendo na velha Europa, onde ela teve sua educação sentimental às ciências sociais, antes de se mudar para a América Latina e, posteriormente, para os Estados Unidos.
Saskia Sassen é conhecida pelo seu livro sobre as Cidades Globais (Città Globali, Ed. Utet), mesmo que os seus últimos livros sobre os Territórios, autoridades, direitos (Territori, autorità, diritti, Ed. Bruno Mondadori) e a Sociologia da Globalização (Sociologia della globalizzazione, Ed. Einaudi) tenham feito dela uma das mais perspicazes estudiosas de como estão mudando as relações entre poder executivo, legislativo e jurídico sob a pressão de uma globalização econômica que também está pondo em discussão a soberania nacional.
Para Saskia Sassen, o capitalismo só pode ser global. E, por isso, precisa de instituições políticas e de organismos internacionais que garantam a livre circulação dos capitais e as condições do seu regime de acumulação da riqueza. Por isso, ela sempre olhou com desconfiança para as posições de quem considera como acabado o Estado-nação. Como sublinhou diversas vezes, o Estado-nação não desaparece, mas mudam as suas formas institucionais para que a globalização prossiga, industrializada, o seu curso. E, ao mesmo tempo sempre ressaltou como as desigualdades sociais são imanentes ao capitalismo contemporâneo.
Mas a entrevista começa com as revoltas inglesas, as quais ela dedicou um artigo, escrito com Richard Sennett, e publicado no The New York Times. Artigo no qual, fato bastante incomum para os Estados Unidos, os dois estudiosos apresentam a centralidade da "questão social" para compreender o que está acontecendo no Reino Unido, mas também nos Estados Unidos e no resto da Europa.
Eis a entrevista.
A revolta como reação violenta ao desemprego, ou como efeito do perverso fascínio que as mercadorias exercem. São as duas explicações dominantes sobre os tumultos que atingiram Londres e outras cidade inglesas. Qual é o seu ponto de vista?
Em todo tumulto, há um conjunto específico de elementos que permitem que o descontentamento geral convirja e tome forma nas ações de rua. Na Grã-Bretanha, há três grandes componentes que provocaram a revolta em Londres, Birmingham, Liverpool, Manchester e outras cidades do Reino Unido.
O primeiro componente é a rua, isto é, o espaço privilegiado de quem não têm acesso aos instrumentos políticos consolidados e codificados para a sua própria ação política. Nas revoltas inglesas, surgiu uma forte hostilidade contra a polícia, incêndios, destruições da propriedade privada. Os afetados foram lojas ou edifícios geridos e habitados por pessoas que vivem a mesma condição social dos revoltosos.
O segundo elemento que funcionou como detonador é a situação econômica, que vê a perda de emprego, de renda, a redução dos serviços sociais para uma parcela relevante da população. Para mim, esse aspecto influenciou muito mais no desencadeamento da revolta do que a morte de um jovem negro pela polícia. O desemprego juvenil no Reino Unido, está em 19%. Um percentual que dobra em algumas áreas urbanas, como o bairro onde vivia o jovem morto.
O terceiro fator são as mídias sociais, que podem se tornar um instrumento verdadeiramente eficaz para fazer com que uma mobilização cresça. E, na Inglaterra, houve uma sucessão muito interessante no uso das mídias sociais. Inicialmente, o Twitter e o Facebook foram usados para informar sobre o que estava acontecendo e para convidar a população a sair às ruas. Mas, na segunda noite, a parte mais importante foi dos smartphones BlackBerry, porque usam um serviço de mensagens que não pode ser interceptado pelas forças policiais. A grande capacidade das mídias sociais de funcionar como instrumento de coordenação da revolta se deu pelo fato de que a sucessão dos confrontos apareceu marcada por um plano preciso. Os focos da revolta foram mais de 30, quase como se tudo foi planejado e coordenado precisamente com as mídias sociais.
Apenas um desses fatores não explicaria as quatro noites de confrontos, incêndios, saques. Tomados em conjunto, cada fator alimentou o outro. Além disso, estou convencida de que, se sairmos de uma expressão asséptica como desconforto social, encontramo-nos diante de histórias em que a dor, a raiva das suas próprias condições de vida não apagam a esperança de um futuro diferente. Esses tumultos deixam clara uma questão social que podem ser enfrentada, como fez David Cameron, como um fato criminoso.
Londres é uma das cidades globais estudadas pela senhora. Uma metrópole que vê uma estratificação social muito articulada. Cidade global significa pobreza, precariedade nas relações de trabalho. Além disso, a crise econômica está provando um empobrecimento que não poupa nenhum dos grupos e classes sociais da população, com exceção apenas daqueles grandes profissionais que não sabem o que significa a palavra crise. Poderíamos dizer que as revoltas inglesas são filhas do neoliberalismo?
Em todas as cidades globais, a pobreza é uma constante. Além disso, escrevi muitas vezes que as dinâmicas econômicas, sociais e políticas inerentes à globalização têm como resultado um crescimento de trabalhos mal pagos e os chamados "working poors", os trabalhadores pobres. Estamos diante de uma situação em que a transição do desemprego a trabalhos mal pagos e desqualificados é contínuo. Um dos aspectos, porém, menos investigados das "global cities", e sobre o qual eu estou trabalhando dentro do projeto de pesquisa The Global Street, Beyond the Piazza, é o papel cada vez mais relevante assumido pela chamada cultura de rua em condicionar as formas de ação política, tanto no Norte quanto no Sul do planeta.
Os conflitos de rua são parte integrante da história moderna, mas eram sempre complementares às formas políticas consolidadas. Recentemente, entretanto, assumiram um papel mais relevante, porque a ocupação do espaço é expressão do poder dos movimentos sociais. As sublevações dos povos árabes, os protestos nas maiores cidades chinesas, as manifestações na América Latina, as mobilizações dos pobres em outros países, as lutas urbanas nos EUA contra a gentrificação ou as revoltas norte-americanas contra a brutalidade da polícia são exemplos de como a rua é o veículo da mudança social e política.
Mas se isso pertence ao passado recente, podemos citar também as recentes mobilizações em Tel Aviv. Na Europa, vocês falam dos indignados, referindo-se à Espanha. Mas, tanto em Madri quanto em Tel Aviv, assistimos a verdadeiras ocupações das praças que duraram dias, semanas, experimentando formas de organização e de decisão política distantes daquelas dominantes nas sociedades. O que eu quero enfatizar é que estamos diante de formas de protesto que envolvem uma composição social heterogênea, em que há desempregados, mas também trabalhadores manuais de empresas que conheceram processos de downsizing e de deslocalização, de funcionários de escritório, classe média empobrecida. E são formas de protesto que nascem e se consolidam fora dos atores políticos tradicionais (partidos, sindicatos). Os indignados de Madri certamente pedem trabalho, serviços sociais, mas também uma profunda transformação da relação entre governo e governados. A praça, a rua não são, portanto, só o lugar onde são levantadas reivindicações, mas também o espaço para tornar manifesto o poder dos movimentos sociais.
A crise do neoliberalismo tem características dramáticas. Alguns países declararam bancarrota, outros chegaram ao ponto de falir (Grécia); outros tornaram-se supervisionados especiais do Banco Central Europeu, que efetivamente suspendeu a sua soberania nacional. E as propostas para sair da crise é um conjunto de medidas de política econômica e social que poderíamos definir como liberalismo radical. O que a senhora acha?
No meu trabalho de pesquisadora, tenho dificuldade em usar o conceito de crise para explicar o que está acontecendo em muitos países, dos EUA à Europa. Encontramo-nos em uma situação inédita, sob muitos aspectos. Há certos países em forte dificuldade econômica, mas outros têm taxas de crescimento e de desenvolvimento impressionantes. De forma mais simples, estamos assistindo a um imponente deslocamento da riqueza de uma parte da sociedade para outra. E isso envolve os recursos financeiros do Estado, da pequena poupança, das pequenas atividades empresariais. Uma espécie de concentração da riqueza nas mãos de uma exígua e riquíssima minoria. E tudo isso sem que essa concentração da riqueza possa ser recuperada por meio do sistema de tributação. É esse o drama que alguns países estão vivendo.
Isto é, não estamos diante de uma realidade obscura, difícil de compreender ou ao resultado de uma conspiração ou de um fenômeno que só a cabala pode interpretar. A tragédia que estamos enfrentando é que essa situação é o resultado não de um evento natural, mas sim de um processo político em que o poder executivo, mesmo quando composto por pessoas honestas e muito íntegras, tem favorecido, com leis e decisões, a concentração e a expropriação da riqueza por parte de uma minoria. O Citibank nos EUA foi salvo da falência pelo governo com 7 bilhões de dólares. Dinheiro proveniente da cobrança fiscal, que nos EUA é muito generosa com os ricos. Portanto, ele foi salvo com o dinheiro da classe trabalhadora e da classe média.
Se nos voltamos para a Europa, a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, decidiu deslocar uma parte das finanças estatais para salvar alguns bancos. Em outros termos, é o Estado, ou alguns órgãos supranacionais, que favoreceram esse deslocamento da riqueza para as mãos de bancos, empresas financeiras. A União Europeia, de fato, interveio para salvar a Grécia, mas só porque o seu fracasso colocaria de joelhos bancos e empresas financeiras, que obtiveram lucros através do mecanismo da chamada "dívida soberana". Não sei se, para essas empresas, é correto falar de crise. Elas desfrutam, no fim das contas, de boa saúde, visto que o poder executivo sempre corre em seu socorro. O resultado é o empobrecimento de uma boa parte da população, que vê cortes nos serviços sociais e nas aposentadorias.
Tudo isso mostra os profundos limites das democracias liberais. Isto é, estamos diante de uma profunda mudança nas relações entre poder executivo, legislativo e judiciário. E entre eles e a economia. Algo semelhante, em sua profundidade, aconteceu na passagem da Idade Média à modernidade, quando se formaram os Estados nacionais e foram lançadas as bases do Estado moderno. O que é necessário é uma perspectiva histórica adequada para analisar a realidade contemporânea. No livro Territori, autorità, diritti, eu enfatizo as analogias entre essa passagem de época e a situação atual. Hoje, como então, é a forma Estado que é atingida por um terremoto. Entender o que vai ficar de pé e o que se tornará escombro também é útil para intervir politicamente para que a expropriação da riqueza possa ser interrompida.
A relação entre poder e economia
Nascida na Holanda, Saskia Sassen viveu sua adolescência na Argentina. Realizou seus estudos, no entanto, entre a França, a Itália e os Estados Unidos. Entre as suas publicações, devem ser lembradas: Fuori controllo (Ed. Il Saggiatore), Le città globali (Ed. Utet), Migranti, coloni, rifugiati. Dall`emigrazione di massa alla fortezza Europa (Ed. Feltrinelli) , Le città nell`economia globale (Ed. Il Mulino), Globalizzati e scontenti (Ed. Il Saggiatore), Territorio, autorità, diritti (Ed. Bruno Mondatori) e Una sociologia della globalizzazione (Ed. Einaudi). Atualmente, é professora da Columbia University, em Nova York.
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Com os tumultos de Londres, a história vira a página, Entrevista com Saskia Sassen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU