Por mais preocupantes que as negociações da dívida e déficit em Washington possam parecer aos americanos, o impasse é igualmente perturbador para a China.
A reportagem é de
David Barboza, publicada pelo
Financial Times e reproduzida pelo jornal
Folha de S. Paulo, 19-07-2011.
Como maior credora estrangeira dos Estados Unidos – detentora de estimados US$ 1,5 trilhão em dívida do governo americano– a China tem sido uma forte crítica do que considera uma gastança politizada por parte de Washington.
“Nós esperamos que o governo americano adote políticas e medidas responsáveis para garantir os interesses dos investidores”, disse
Hong Lei, um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, em uma coletiva de imprensa no final da semana passada.
Pequim pode preferir responder despejando no mercado parte de sua dívida americana. Mas nesta versão financeira da guerra fria, dizem os analistas, ambos os lados temem uma destruição mútua certa.
Um motivo para os Estados Unidos quererem evitar dar um calote em sua dívida é que essa medida poderia alienar a China, que é uma compradora constante de títulos do Tesouro. Pequim, por sua vez, já tem dinheiro demais investido na dívida americana, de modo que só lhe resta continuar comprando, guardando e reclamando.
É o relacionamento “grande demais para quebrar”, disse
Andy Rothman, um analista em Xangai do banco de investimento CLSA.
Se Pequim até mesmo insinuar a possibilidade de vender parte de sua dívida americana, “outros países poderiam vender seus ativos em dólares”, disse
Rothman, notando que isso derrubaria o valor dos ativos da China. “Seria um suicídio financeiro para a China.”
A China se colocou nesta situação, dizem aos especialistas, ao ser indulgente com seus próprios interesses econômicos. Para reforçar aquela que se tornou a maior economia de exportação do mundo, a China tem se concentrado em políticas que recompensam a poupança doméstica e seguram o valor de sua moeda. O resultado: imensos superávits comerciais e em conta corrente. A China acumulou mais de US$ 3 trilhões em reservas de moeda estrangeira, bem mais do que qualquer outra nação.
A maioria dessas reservas é em dólares, que são reciclados de volta aos Estados Unidos por meio de investimentos em títulos do Tesouro e outros papéis denominados em dólares –até mesmo ações. E apesar de parte das reservas cambiais da China ser investida na dívida europeia e japonesa, esses mercados de títulos não são grandes e nem líquidos o bastante para absorver os ativos estrangeiros cada vez maiores da China.
Pequim tem tentado diversificar seu portfólio, criando um fundo soberano que pode investir em algumas das reservas no exterior. O governo também encoraja as empresas chinesas a se expandirem para o exterior, adquirir minas e recursos naturais para alimentar a ávida economia chinesa. Mas como a China tem muito mais reservas de moeda estrangeira do que qualquer escoadouro individual é capaz de absorver, grande parte de suas crescentes reservas continua destinada ao mercado de títulos americano.
“A China não tem escolha a não ser continuar comprando”, disse
Zhang Ming, um especialista da Academia Chinesa de Ciências Sociais, um grupo de pesquisa de Pequim. “Afinal, os títulos do Tesouro americano ainda são o maior e mais líquido produto de investimento do mundo.”
Tudo isso ajudou a alimentar os hábitos fiscalmente dúbios dos Estados Unidos.
Os imensos déficits dos Estados Unidos – não apenas em gastos do governo, mas também no comércio e na poupança – enfraqueceram sua economia e estrangularam o consumo. Muitos economistas dizem que isso envenenaria as perspectivas do dólar a longo prazo, caso ainda não fosse a moeda de reserva do mundo e o refúgio mais confiável.
Ajudando a manter esse papel do dólar estão os enormes problemas de dívida enfrentados pela Europa e pelo Japão. Com investidores globais como a China tendo poucas boas opções fora os títulos do Tesouro americano, Washington, apesar do atual debate sobre o teto da dívida, pode continuar mantendo as taxas de juros baixas e chafurdar em tomada de empréstimo barata.
Nos últimos anos, Pequim tem se queixado com frequência das políticas monetárias de Washington. Em 2009, logo após o estouro da crise financeira global, o primeiro-ministro da China, Wen Jiabao, disse que seu país “teme” pela segurança de sua enorme reserva de títulos do Tesouro americano. No ano passado, os conselheiros de políticas chineses criticaram o Federal Reserve, o banco central americano, por minar o valor de seus ativos ao “imprimir dinheiro demais” com as chamadas políticas de alívio quantitativo.
Mas mesmo agora, apesar da repreensão de Pequim ao impasse da dívida em Washington, as opções da China são limitadas.
“Realmente não há nada diferente que possam fazer”, disse
Eswar S. Prasad, um professor de economia de Cornell e ex-chefe da divisão para China do
Fundo Monetário Internacional. “Mesmo que a China sinta que os Estados Unidos estão caindo de um penhasco, não há nenhum outro lugar onde colocarem seu dinheiro.”
A longo prazo, muitos economistas dizem que os desequilíbrios estruturais em ambos os lados da simbiose da dívida sino-americana poderiam ser desastrosos. Por exemplo, muitos já dizem que essas dinâmicas ajudaram a criar a crise financeira global, ao produzir artificialmente as baixas taxas de juros que permitiram que os preços dos imóveis atingissem os níveis de estouro de bolha.
Agora, os Estados Unidos e a China estão tentando se ajustar de diferentes formas. Os autores de políticas americanos estão pedindo mais poupança e menos consumo. As autoridades chinesas atuam de modo oposto, prometendo encorajar mais consumo e menos poupança.
Mas nenhum país conseguiu um avanço significativo nessas estratégias durante os últimos dois anos. Ambos os lados veem esses ajustes como caros demais e prejudiciais às metas econômicas de prazo mais curto. Os Estados Unidos estão concentrados em reanimar sua economia, enquanto a China está buscando desacelerar. E em ambos os países, atingir as metas envolve a mudança do comportamento da população, o que nunca é fácil.
Muitos economistas dizem que a China pode coibir sua dependência de ativos atrelados ao dólar ao permitir que o valor de sua moeda se valorize mais frente a outras moedas mundiais. Isso também tornaria suas importações menos caras para os consumidores domésticos. Mas também tornaria as exportações chinesas mais caras para os consumidores globais, o que prejudicaria as fábricas chinesas e levaria a demissões em massa.
Considerando tudo isso, se a China se preocupa em possuir ativos demais denominados em dólar, que poderiam depreciar em caso de valorização de sua própria moeda, por que ela não vende discretamente parte dela –ou pelo menos para de comprar mais?
Pesquisas recentes do governo americano sugerem que a China começou a fazer isso, começando a reduzir sua compra de dívida americana já neste ano. Mas os analistas alertam que os números oficiais podem não levar em consideração a compra por meio de terceiros em prol da China. Uma compra por meio de um intermediário de títulos americanos em Londres, em prol do Banco da China, não constaria nos registros em Washington.
De fato, muitos economistas dizem acreditar que a China pode ter até mesmo intensificado sua compra de dívida americana. A evidência é que seu superávit comercial e em conta corrente quase certamente significam que continua a acumular reservas imensas de dólares.
Como o impasse da dívida entre Pequim e Washington poderia ser resolvido? Os americanos esperam que a China aumente seu consumo doméstico e talvez faça até mesmo investimentos mais diretos nos Estados Unidos. Por sua vez, os chineses esperam que os EUA lidem com seus enormes problemas de dívida e mantenham o valor do dólar –e assim o valor dos ativos baseados em dólar da China.
Apesar dos estresses em ambos os lados, a guerra fria fiscal significa que “a China está cada vez mais integrada ao futuro dos Estados Unidos”, disse
Rothman, o analista de Xangai. “Mas isso pode ser algo bom para ambos os lados.”
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Maior credora dos EUA, China segue comprando títulos do tesouro norte-americano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU