29 Abril 2011
O teólogo Hans Küng condena a beatificação de João Paulo II. De modo geral, ser-lhe-ia mais cara uma "canonização a partir de baixo" pelo povo.
O teólogo suíço concedeu uma entrevista ao jornal Frankfurter Runschau, 29-04-2011. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis a entrevista.
Professor Küng, João Paulo II. merece ser beatificado?
Ele certamente merece louvor como homem de caráter, como batalhador pela paz e pelos direitos humanos. Mas, este foi apenas um dos lados. Porque, aquilo que ele propagava para fora estava em total contradição com sua política interna. Na Igreja ele exerceu um magistério autoritário e reprimiu os direitos humanos de mulheres e teólogos. Desta forma, ele é o Papa mais contraditório do século XX e não serve para ser apresentado aos fiéis como modelo.
Personalidades marcantes como João Paulo II sempre despertarão contradição.
Também não se trata de beatificar homens sem mácula. As falhas só não deveriam atingir partes essenciais da ação global. Mas, os lados obscuros permaneceram totalmente desconsiderados no processo de beatificação. Não é, pois, de estranhar que o Vaticano não quisesse escutar testemunhos críticos da época, como a mim.
O que o senhor teria a testemunhar?
Eu fui o primeiro grande caso de inquisição deste Papa. Ele nunca me concedeu a oportunidade de defender pessoalmente diante dele as minhas posições teológicas, razão pela qual, antes do Natal de 1979, da noite para o dia, me foi retirada a autorização eclesiástica de ensino. E era então sabido que o Papa Wojtyla não lera nenhum único dos meus livros. Mas, condená-los ele soube. Nisso você vê que este Papa era intolerante e indisposto para o diálogo. Também seu tratamento dos teólogos latino-americanos da libertação foi o oposto do que se deveria esperar de um modelo de vida cristã.
Não se trata tanto de política eclesiástica mas de virtuosidade pessoal? Que João Paulo não quisesse falar sobre determinadas posições como celibato e sacerdócio de mulheres, vale precisamente para seus adeptos como ponto positivo.
O celibato sacerdotal provém de um abuso do poder papal na Idade Média. Ele só foi introduzido no século XI e semchoca com a tradição vétero-eclesial e – ainda pior – contra o Evangelho: Jesus recomendou o celibato, mas não o impôs. Por isso essa lei deve ser abrogada.
E o sacerdócio feminino?
Aqui o caso é um pouco mais complicado, porque ao círculo dos "doze apóstolos" de Jesus de fato só pertenciam homens. Apesar disso, desde o início mulheres acompanharam a atuação de Jesus e contribuíram na manutenção de sua vida. Ele próprio antecipou muito sua época no modo de se comportar na relação com as mulheres. Também é certo que na Igreja primitiva houve mulheres que presidiram comunidades. Tudo isso é consequentemente silenciado pela autoridade da Igreja. Em vez disso, João Paulo II explicou que, segundo a vontade de Deus, a ordenação de mulheres está excluída. De onde o Papa conhecia a vontade de Deus, ninguém sabe. Apesar disso ele mandou anunciá-lo como doutrina infalível.
O que o senhor pensa em geral sobre beatificações e canonizações?
Originariamente, os fiéis determinavam por sua ininterrupta veneração quem era um santo. Francisco de Assis, por exemplo, foi canonizado pelo povo. Do ano de 1200 em diante a Cúria romana fez disso um privilégio papal. Isso conduziu a que um hábito positivo se tenha transformado de múltiplas formas num abuso.
Também agora?
Que outra coisa seria? O sucessor declara beato seu predecessor – aí as coisas acontecem em Roma como no tempo dos Césares que elevavam a Deus o Imperador que eventualmente os precedera! A beatificação e canonização serve ao Papa como instrumento de auto-proclamação. Como um príncipe absolutista Bento XVI rompeu com o próprio Direito Canônico, para poder beatificar João Paulo num passe de mágica: desconsiderando os prazos prescritos, com o reconhecimento de uma cura milagrosa altamente duvidosa e com a permissão de uma imediata veneração de culto público que, em geral, é estritamente vedada antes de uma beatificação ou canonização. Já ao assumir sua função em 2005, Bento XVI pregava que ele via seu predecessor "olhar da janela do céu para os fiéis reunidos". Bem que eu gostaria de saber de que forma o professor de teologia Joseph Ratzinger teria defendido tal pensamento.
O que o Papa Bento XVI lucra com isso?
Se eu fosse maldoso, eu diria que ele já especula sobre sua própria beatificação. Mas deixemos isso de lado. Provavelmente o atual Papa, quando beatifica seu predecessor, pensa que tudo o que de grave foi feito no seu pontificado será esquecido. Esquece-se que com João Paulo II também será beatificada a sua política – uma política com a qual João Paulo e seu fiel vassalo, o cardeal curial Joseph Ratzinger, são os principais responsáveis pela atual enfermidade da Igreja. Temos uma fachada magnífica, com muita pompa e circunstância. Mas, por trás das grandes liturgias em Roma, há em muitas comunidades católicas do mundo, um grande vazio.
Apesar disso, no enterro de João Paulo II, muitos fiéis exigiam sua imediata beatificação.
O grito "Santo Subito!" (em italiano. "Santo imediatamente!", em tradução livre) foi de fato pilotado da frente até o fundo. Eu vi as "espontâneas" manifestações na Praça de São Pedro: todas fina e polidamente impressas. Foi tudo uma encenação de grupamentos católicos conservadores e até reacionários, que são muito fortes, sobretudo na Espanha, na Itália e na Polônia.
Mas, o senhor não contesta que Karol Wojtyla, pelo menos junto a seus aldeões, já goza de uma espécie de status cultual?
Eu concedo aos poloneses um novo santo. Só que na Polônia o catolicismo e o nacionalismo sempre tiveram uma ligação muito estreita. Isso foi uma força na época do comunismo, mas hoje é uma debilidade, porque tolhe uma abertura para a democracia, o pluralismo e os valores do Iluministmo. Mas, como santo nacional João Paulo também não é adequado, porque o modelo polonês de Igreja, que ele queria impor a todo o mundo, até em sua própria pátria se desmanchou em suas mãos. Modernidade e secularização também não deixaram a Polônia de lado. Por sorte.
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"João Paulo não serve como modelo". Entrevista com Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU