04 Abril 2011
Em um registro, um diário. São fantasmas do mar. Quantos estão no fundo do canal que divide a África da Europa? Quantos homens e quantas mulheres e quantas crianças acabaram, nestes últimos dias de grandes desembarques, naquele túmulo que é o Mediterrâneo? Ninguém sabe e talvez ninguém nem queira saber. É um massacre que não acaba mais.
A reportagem é de Attilio Bolzoni e Francesco Viviano, publicada no jornal La Repubblica, 04-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Às vezes, ficamos sabendo só quando começa, como para aqueles que zarparam da Cirenaica na noite do dia 23 de março e desapareceram em um ponto impreciso entre a Líbia e Lampedusa. Eram 335. Etíopes, somalianos, eritreus. Todos, empilhados em um barco de madeira podre, estavam fugindo da guerra civil, haviam conseguido subir a bordo depois de 13 dias de espera, o mar estava muito tranquilo, um deles, com o telefone via satélite, havia telefonado para Roma para avisar que finalmente haviam conseguido.
O seu amigo, Mosè Zerai, sacerdote negro e presidente da agência humanitária Habesha, que há 15 anos vive para ajudar os refugiados, foi o último a ouvir aqueles que estavam no barco. Lembra o Pe. Mosè: "Disseram-me que, entre aqueles 335, havia 20 mulheres e 20 crianças, que estavam bem, embora a embarcação tivesse pouco combustível. Depois, a conexão se interrompeu e não consegui mais contatá-los".
Onde está o barco com os refugiados que partiram no dia 23 de março de Misurata? A quantas milhas de Trípoli ou da Sicília ele afundou? O padre Zerai lançou o alerta, mas ninguém jamais o avisou e talvez ninguém jamais o procurou.
Zaid Hagos Salomon, uma mulher eritreia que mora em Gênova e que tinha um filho nesse barco, relata: "Teke me telefonou desesperado: `Ajude-me, mamãe, só você pode me ajudar`". A linha caiu. A mãe telefonou para o escritório de Gênova que dispara o SOS na Capitania dos Portos de Agrigento. Mas Teke desapareceu no mar. É um daqueles fantasmas. Zaid reza e reza por ele há dez dias e dez noites.
Da metade até hoje, são pelo menos 519 os desaparecidos no Mediterrâneo, aqueles dos quais tivemos de algum modo a notícia da sua partida. Mais de 25 por dia. Afogados. Mas esses são só aqueles "oficiais", aqueles que telefonaram via satélite enquanto estavam em rota para o outro mundo. O número verdadeiro poderia ser assustador. Duas vezes mais. Três vezes mais. É uma tragédia escondida. São gritos no silêncio que se perdem no vento que sopra do mar.
Depois dos 335 do Pe. Mosè Zerai, eis a dramática crônica feita pelo padre Jospeh Cassar, um jesuíta do "serviço para os refugiados" em Malta. São outros 70. Desaparecidos também eles. Afogados também eles. Os seus cadáveres foram transportados pelas correntes exatamente para as praias de onde partiram.
É o padre Joseph que fala: "Essas informações foram comunicadas a mim por uma pessoa de quem não posso revelar a identidade para não colocar a sua vida em risco. Ela me telefonou ontem à noite e me contou tudo... Contou-me que as autoridades líbias encontraram na costa aqueles 70 cadáveres de migrantes e logo enterraram os corpos, sem nem descobrir quem era e de onde vinham".
Eram todos negros, todos provenientes da África subsaariana. Explica ainda o jesuíta: "A minha fonte é muito confiável. No passado, ela já me informou sobre naufrágios que, infelizmente, se revelaram reais".
Trezentos e trinta e cinco. Setenta. E sessenta e oito. Aqueles do dia 25 de março, também tendo zarpado de alguma enseada da Líbia, e todos também eritreus e somalianos e etíopes. No meio do Canal da Sicília, sacudidos por montanhas de água, o motor avariado, um último telefonema e depois nada mais.
O Pe. Mosè tem o seu telefone via satélite sempre à mão. Ele espera o toque com o coração na garganta. "Telefonam-me de dia e de noite, os migrantes dos barcos e também os seus parentes que os esperam aqui na Itália. Muitas vezes, acaba como com aqueles 335. Outras vezes, aquelas vozes se tornam rostos e sorrisos de homens e de mulheres que encontro aqui em Roma. Como Samuel...".
Samuel, que, na semana passada, havia telefonado para o sacerdote enquanto o seu barco pesqueiro embarcava água na proa. Eram em 110 no total, todos certos de morrer a 45 milhas das costas líbias. Depois, porém, se salvaram. Acontece às vezes. "Mas só às vezes... Há anos, no Mediterrâneo, eles morrem aos milhares", diz o Pe. Mosè. Na absoluta indiferença. Sem corpos, não há naufrágio. Sem náufragos, não há mortos que fazem estatísticas. Desaparecidos.
E partem, partem sempre, para abandonar a fome e a violência. Outros 17 partiram na terça-feira da semana passada, em um bote, e só seis chegaram vivos na Itália. Recolhidos entre pedaços de quilha – estavam agarrados ali há um dia e uma noite – pelos marinheiros de um barco egípcio. E depois foram levados à terra firme pela lancha 301 da Capitania dos Portos de Lampedusa.
"Todas as vezes que eu me aproximo de um barco rezo a Deus para que faça com que eu os encontre todos salvos... mas nem sempre é assim", explica o chefe de primeira classe Calogero Fiannaca, siciliano de Realmonte que, desde o ano 2000, vive no mar buscando náufragos. Dos aviões da Guarda de Finanças, avistam os barcos. Ele e sua equipe zarpam. A abordagem é sempre o momento mais terrível. Nunca se sabe o que vai se encontrar ou o que não vai se encontrar.
"O dia seguinte ao dos 11 náufragos, eu vi um barco pesqueiro repleto de corpos imóveis. Havia mais de 180 negros a bordo, amontoados uns contra os outros, e uns sobre os outros", lembra Antonino Grimmaudo, comandante do pesqueiro Cosimo Aiello da marina de Mazara del Vallo. O comandante também teve medo de se aproximar desse barco, teve medo de que, deslocando o mar, as ondas o mandassem por cima do barco, por estar tão carregado. Salvaram-se.
Mas os outros 35 não se salvara, no dia 15 de março. Trinta e cinco de mais de 150 tunisianos. Provinham de Zarzis, do sul profundo. Foi Atif que reconstruiu tudo, testemunha da morte dos seus companheiros, de um nenê, de muitas mulheres que, um instante antes, ele viu vivas e, um instante depois, não viu mais. Estava dentro do mar.
Em Zarzis, diante de uma região que, nos mapas náuticos, é marcado como Chabana, a 40 milhas da ilha, aquela que até há alguns anos era a rota dos negreiros tunisianos, os "passeur" que transportavam os negros para a Europa. Uma vez, ali morriam só os etíopes e os eritreus que conseguiam fugir da Líbia, onde quebravam a coluna por até um ano ou dois para juntar o dinheiro da viagem para a Europa.
E eles, os tunisianos, com desprezo, escutavam o respiro do mar e diziam: "Est la merde du noir". Era o fedor dos cadáveres. Depois de poucos anos, o mar de Zarzis sempre libera esse cheiro. Mas não engole mais só os negros. Agora, engole todos.
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"Aquele mar é um cemitério" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU