11 Novembro 2012
Na religiosidade disponível na internet, a questão em aberto é: que imagem de Deus, de Igreja e de fiel é fomentada pela religiosidade ofertada nesses sites? Ainda há muito a avançar nessa reflexão.
A opinião é do jornalista e doutorando em comunicação Moisés Sbardelotto, autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012). A entrevista foi publicada no blog da Editora Santuário, 09-11-2012.
Eis a entrevista.
Por que decidiu escrever sobre o tema?
O interesse pela relação entre internet e religião vem da minha própria formação pessoal e acadêmica. Como cristão e católico, interessa-me perceber as novas manifestações de Deus, hoje, e como as pessoas em geral experimentam essas manifestações, também com o avanço da tecnologia e das novas formas de comunicação, gerando uma religiosidade também nova. Além disso, tanto no âmbito eclesial quanto no âmbito comunicacional, essa relação é algo ainda muito novo, pouco estudado, que traz muitas dúvidas e muitos desafios, em termos de pastoral e de prática social. Por isso, decidi encarar o desafio e tentar colaborar nesse debate.
Quanto tempo demorou para que a obra estivesse pronta? Quais foram suas fontes mais relevantes de pesquisa?
A obra nasceu a partir de minha pesquisa de mestrado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), entre 2009 e 2011, sob orientação de Antonio Fausto Neto. Entre 2011 e 2012, em eventos acadêmicos, fui aprimorando a pesquisa, no debate com outros pesquisadores e estudantes. Ao longo de 2012, a partir do interesse da Editora Santuário de publicar o texto, revisei e ampliei toda a pesquisa, “lapidando” alguns pontos, aprofundando outros. Para isso, me baseei muito nos estudos de Fausto Neto e de Pedro Gilberto Gomes SJ, ambos professores da Unisinos, que já têm diversas publicações sobre as relações entre mídia e religião. Em termos comunicacionais, foram fundamentais os estudos de José Luiz Braga, da Unisinos, de Lev Manovich e de Carlos Scolari. Outros autores – como Andrea Grillo, Antonio Spadaro SJ, Gianni Vattimo, João Batista Libanio SJ, Leonardo Boff, Mircea Eliade, Stefano Martelli – também foram muito importantes para aprofundar as questões teológicas da religiosidade e da experiência religiosa na internet.
Qual parte é mais relevante ou especial para o senhor?
Sou suspeito para responder a essa pergunta. Mas, para não cair no lugar-comum de dizer que “todo o livro é relevante ou especial para mim”, penso que, para as leitoras e leitores em geral, os capítulos 1 e 7, que abrem e encerram o livro, dão uma visão bastante ampla sobre a comunicação e a experiência religiosas na internet. No capítulo 1, por exemplo, eu relato a história de um fiel chamado Fábio, que contou, em um site católico, em um serviço chamado “Padre Online”, uma experiência religiosa muito particular que ele teve por meio da TV. Esse testemunho me indicou que, de fato, as novas modalidades de comunicação estão gerando uma nova forma de ser religioso – e a partir desse relato é que começa o livro.
Já no capítulo 7, apresento meus principais “achados”, que obviamente não são “conclusões”, já que estamos no meio do olho do furacão das tecnologias digitais. Mas são algumas primeiras aproximações e reflexões sobre a religiosidade que desponta na internet. Os capítulos intermediários também são relevantes para as leitoras e leitores que se interessam em estudar essa problemática, com bastante documentação, exemplos, imagens e referências para futuras pesquisas.
E, caso o miolo do livro não agrade às leitoras e leitores, eles poderão encontrar um material precioso na Apresentação escrita por Fausto Neto, no Prefácio de Antonio Spadaro SJ, e no Posfácio escrito por Andrea Grillo, aos quais agradeço publicamente e que trazem um aprofundamento muito importante para esse debate.
Qual é a principal ideia que o leitor terá ao acabar de ler o livro?
Permito-me citar diretamente um trecho do livro: “Se a comunicação (suas lógicas, seus dispositivos, suas operações) está em constante evolução, a religião, ao fazer uso daquela, também acompanha essa evolução e é por ela impelida a algo diferente do que tradicionalmente era. (…) Se a internet traz consigo novas formas de lidar com o tempo, o espaço, as materialidades do sagrado, o discurso e os rituais, a religiosidade como tradicionalmente a conhecemos também está mudando, e a ‘nova religião’ que se descortina diante de nós nesse ‘odre novo’ traz também um ‘vinho novo’ que caracteriza a midiatização digital (suas formas características de ser, existir, pensar, saber, agir na era digital). Junto com o desenvolvimento de um novo meio, como a internet, vai nascendo também um novo ser humano e, por conseguinte, um novo sagrado, uma nova religiosidade e uma nova religião” (p. 313-315).
Qual é o público que o senhor deseja atingir?
Todas as “mulheres e homens de boa vontade”… Mas especialmente aqueles que se interessam pelas temáticas da comunicação e da religião, e de suas inter-relações. Penso que tanto pesquisadores e estudantes, quanto fiéis e ministros de todas as religiões poderão encontrar subsídios para refletir sobre as novas religiosidades que surgem com o avanço da midiatização.
Qual foi a vivência ou experiência que o fez escrever o livro?
Foi um conjunto de fatores: primeiro, uma grande oferta e uma grande demanda de práticas religiosas na internet. Chamou-me a atenção o fato de que a grande maioria dos sites católicos que visitei ao longo da pesquisa ofereciam não apenas informações sobre a religião, mas também ambientes para que o fiel pudesse vivenciar e experimentar sua fé por meio da internet, nas chamadas “capelas virtuais”. E que inúmeros fiéis narravam suas experiências religiosas nesses sites. Além disso, o depoimento do fiel Fábio, no serviço “Padre Online”, que eu relato no livro, foi a “sarça ardente” que me apontou com clareza para a “montanha digital” à qual inúmeros fiéis sobem para se encontrar com Deus. E eu não podia ficar indiferente diante disso.
Qual é o impacto para a religião e a popularização do uso da Web e quais serão esses resultados?
Mais do que um impacto, eu percebo pequenas “microalterações” na religiosidade por meio dessas novas práticas religiosas midiatizadas, que mostram que as pessoas passam a encontrar uma oferta de experiência religiosa não apenas nas igrejas de pedra, nos padres de carne e osso e nos rituais palpáveis, mas também na religiosidade existente e disponível nos bits e pixels da internet. Formam-se, assim, novas modalidades de percepção e de expressão do sagrado em novos ambientes de culto: novas formas de manifestação de Deus (teofania) e do sagrado (hierofania), agora midiatizadas: midioteofanias e midio-hierofanias que lançam a religião para novos patamares de existência.
Ou seja, as mídias não são mais apenas extensões dos seres humanos, mas também o ambiente no qual tudo se move, inclusive a religião: um novo “bios religioso”. O que pudemos perceber, a partir disso, é que a fé vivenciada, praticada e experienciada nos ambientes digitais aponta para uma mudança na experiência religiosa do fiel e da manifestação do religioso, por meio de novas temporalidades, novas espacialidades, novas materialidades, novas discursividades e novas ritualidades marcadas centralmente por lógicas midiáticas, e que são detalhadas no livro.
Quais são as principais características de interface interacional, interação discursiva e interação ritual?
No livro, eu dedico mais de 150 páginas a essa questão, analisando detalhadamente os sites católicos nesses três âmbitos: interface, discurso e ritual. Dessa forma, tentamos compreender como se dão as interações entre fiel-sagrado para a experiência religiosa nos sites analisados.
Com relação à interface interacional (materialidades), analisamos os níveis tecnológicos e simbólicos que orientam a construção de sentido religioso do fiel a partir de quatro níveis: 1) a tela; 2) periféricos como teclado e mouse; 3) a estrutura organizacional das informações (menus); e 4) a composição gráfica das páginas em que se encontram disponíveis os serviços e rituais católicos.
Já nas interações discursivas (narrativas), buscamos compreender como o fiel se posiciona em meio à encruzilhada de “discursos” que lhe falam, pois, além de um discurso ao fiel, existe também um discurso do fiel. Esses discursos foram analisados a partir de três atores: o próprio fiel, um “outro” (o sistema ou outro internauta) e um “Outro” (o sagrado).
Nas interações rituais (práticas), analisamos a “liturgia digital” que os fiéis precisam seguir para que os rituais ocorram. Assim, o internauta passa a participar, viver, agir e interagir em uma “ambiência” religiosa nova, que o remete – seja qual for a profundidade de sua experiência religiosa, independentemente também de quando e onde estiver – para Deus.
A interação por meio da internet diminui a fé se tornando um ato de imediatismo? Ou Não?
Na internet, os processos lentos, vagarosos e penosos da espiritualidade (os “séculos dos séculos”, “até que a morte os separe”) vão sendo agora substituídos pela lógica da velocidade absoluta, por uma “eternidade intensiva”. Fomenta-se, assim, uma expectativa de onitemporalidade e de imediaticidade da manifestação de Deus. A vastidão do “tempo sagrado” é agora substituída por microinstantes, “átomos temporais” em que os sites nos exigem reações instantâneas a eventos que ocorrem na velocidade da luz.
Além disso, eu destacaria outros quatro “riscos”, quatro “pontos em aberto” na experiência religiosa online: 1) o risco de pensar que, se Deus se faz bit, o bit também é Deus; 2) o risco de confundir conexão com comunhão; 3) o risco de pensar que Deus e o sagrado estão “ao alcance de um clique”; 4) o risco de nos contentarmos com experiências religiosas midiatizadas, sem atentar para as manifestações “extramidiáticas” de Deus, especialmente no “próximo” e no “pobre”, confundindo “dizer” com “fazer”: ou seja, é importante escutar e anunciar a Palavra, mas é ainda mais importante tentar colocá-la em prática.
É possível alcançar – viver a experiência – do divino por meio da web?
Nas palavras de Brenda Brasher, se os fiéis de hoje, como o Moisés bíblico, “sobem a montanha digital”, é porque viram uma “sarça ardente” em seu topo. Por exemplo, em apenas um dos sites analisados, são acesas entre 3.000 a 4.000 “velas virtuais” por dia! Por isso, é impossível negar que essas pessoas têm uma experiência de Deus e do sagrado por meio desses rituais. Mas essa “encarnação em bits” só ganha sentido na vida do fiel – são experiências totalmente livres, íntimas, misteriosas, enão nos é permitido penetrar nessa zona de tão elevada intimidade. O que sabemos é que elas ocorrem, o que pode ser confirmado pelas próprias narrações dos fiéis nesses sites: algo ocorre, e algo sagrado.
Porém, nesses rituais, há facetas de Deus e do sagrado que mais se manifestam, e outras que se manifestam menos, experiências religiosas que são fomentadas, e outras que não o são. E tudo isso por determinações e escolhas do programador, dos próprios sites. O risco, como afirma a teóloga Mary Hunt, é de não perceber que “a linguagem sobre Deus é uma das mais difíceis e perigosas com que trabalhar, porque pode resultar em estruturas opressivas ou ser um trampolim para a libertação”. A questão em aberto é: que imagem de Deus, de Igreja e de fiel é fomentada pela religiosidade ofertada nesses sites? Ainda há muito a avançar nessa reflexão.
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Religião e internet: microalterações e evoluções da fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU