24 Setembro 2012
Interrogar-se sobre os jesuítas do Vaticano II significa embarcar em uma pesquisa de vastidão excepcional que gira em torno de três pontos-chave: a pessoa do padre Pedro Arrupe, geral dos jesuítas, a 32º Congregação Geral e as implicações da Companhia nos episódios da América Latina.
A opinião é do jesuíta italiano Felice Scalia, ex-professor da Faculdade Teológica da Itália Meridional e do Instituto Superior de Ciências Humanas e Religiosas de Messina. O discurso foi proferido na assembleia italiana Igreja de Deus, Igreja dos Pobres, realizada em Roma por ocasião dos 50 anos da abertura do Concílio e do início do Ano da Fé.
O artigo foi publicado no sítio Fine Settimana, 15-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Espero não ter sido convidado para esta intervenção sobre "Jesuítas e Vaticano II" somente por dever de hospitalidade. Acredito que todas as ordens religiosas masculinas e femininas envolvidas nessa bela história do Vaticano II, da sua implementação e da sua não implementação, são um gradiente das dificuldades que temos hoje e também da alegria que experimentamos.
O que fez a Companhia de Jesus no Vaticano II?
A Companhia de Jesus chegou ao Vaticano II nos tempos de João XXIII com as expectativas, os mal-estares e as esperanças de toda a Igreja. Os tempos difíceis que se seguiram aos anos da guerra, segundo alguns, viram um florescimento de vida religiosa; para outros, anunciam que tempos novos requerem respostas novas também de tipo religioso.
Domina a mentalidade comum dos jesuítas, uma espécie de ódio visceral pelo comunismo ateu, que induz a um fechar as fileiras em torno a posições interclassistas da velha Democracia Cristã e a uma religiosidade tradicional. Porém, também abre caminho o sofrimento pelo descolamento cada vez mais marcante dos pobres, cujos problema parecem ser subavaliados pela Igreja, assim como a percepção de que uma teologia abstrata não interessa mais aos jovens e não aborda as expectativas das pobres pessoas. Quem espera o novo, enfim, está na companhia de Jesus, e quem espera o retorno a uma posição mais rígida está sempre na Companhia de Jesus.
Quando o Concílio se abriu, vários jesuítas, de diversos títulos, estiveram presentes, e estes também inclinados em duas linhas de pensamento diferentes. Ao lado do padre Tromp, da Gregoriana, que defendia estrenuamente os esquemas preparados pela Comissão Preparatória de marca notoriamente tradicional, havia homens como Henri De Lubac, Jean Daniélou, Karl Rahner, representantes, em suma, da renovação teológica (pensem na nova teologia) que fizera disparar as perplexidades da Humani generis de Pio XII.
O êxito do Vaticano II foi vivido pela Companhia de Jesus como era previsível: acolhido com alívio e esperança por uma parte consistente de jesuítas; rejeitado de diversas formas por uma outra parte, também esta consistente.
Depois do Vaticano II, registra-se uma verdadeira hemorragia na Ordem. Ela perde, em pouco tempo, cerca de 10 mil membros. Saem da Ordem aqueles que se desiludiram com o Concílio, porque ele disse pouco demais, e também saem aqueles segundo os quais o Concílio teria dito demais e teria iniciado a ruína de uma Igreja em que não se reconheciam mais.
Por trás dessa aparência de fachada, sempre existiu uma Ordem que quer receber os ventos do Espírito e que, em 1965, convocou a 31ª Congregação Geral com um duplo objetivo: predispor do ponto de vista interior e operativo a recepção do Concílio, eleger o novo padre geral, o chamado papa negro. Entre todos, sente-se a necessidade de uma mudança, mesmo que no rastro da tradição jesuítica.
Alguns falam de um novo início; se chegará ao conceito de refundação. Os anos 1960 eram muito diferentes daqueles em que a Companhia nasceu, mas, para alguns, semelhantes pela novidade e pela gravidade dos desafios que a Ordem devia enfrentar para realizar as suas finalidades. "Em tudo amar e ajudar as almas", como dizia Inácio. Nessa congregação, foi eleito como padre geral Pedro Arrupe.
Interrogar-se sobre os jesuítas do Vaticano II significa embarcar em uma pesquisa de vastidão excepcional que gira, a meu ver, em torno de três pontos-chave: a pessoa do padre Pedro Arrupe, geral dos jesuítas, a 32º Congregação Geral e as implicações da Companhia nos episódios da América Latina.
Trata-se de uma história dilacerante, que derrama lágrimas e sangue em sentido próprio. E que parece ter como contrapartida nada menos do que o papado e, particularmente, João Paulo II. É difícil para um não jesuíta dar-se conta do drama: ser suspeito por aquele que rege essa Igreja, a cujo serviço todo jesuíta se sente consagrado. Em outros termos, as contradições que dilaceram a Igreja – há quem considere o Concílio como um novo Pentecostes , e quem o considere como um equívoco do Espírito que traria somente males na fé – se refletem na vida da Ordem, que quer viver em obediência ao papa, mas que nasceu para o anúncio e a construção do Reino de Deus.
Vejamos esses três pontos.
Pedro Arrupe
A sua ação de governo pode ser dividida em duas partes: a primeira, de 1965 a 1971; a segunda, de 1972 a 1991, ano da sua morte.
O primeiro período foi totalmente dedicado à modernização da Ordem, decidida e designada pela 31ª Congregação Geral, segundo as diretrizes espirituais apostólicas eclesiais do Vaticano II. Paulo VI critica o padre Arrupe de ser fraco no governo, mais inclinado à benignidade do que ao rigor, de usar mais o acelerador do que o freio, de arriscar de modo excessivo nas suas decisões, de confiar-se demais naqueles que ele deveria guiar e corrigir.
Ele respondia aos que o criticavam por uma crise de confiança entre o papa e a Companhia que ele preferia correr o risco de se equivocar ao de permanecer imóvel no medo, que preferia parecer permissivo para o evitar o risco de criar um clima de desconfiança e de terror.
O segundo período foi marcado pela sua fidelidade às decisões da 32ª Congregação Geral e por uma ruptura nos fatos nunca sanada, nem com a eleição como arcebispo de Milão do cardeal Martini, entre o Geral da Companhia e João Paulo II. Até mesmo quando Arrupe foi eleito secretário da Confederação Mundial das Ordens Religiosas, o papa se recusou a recebê-lo. A dor por essa incompreensão contribuiria para a doença e depois para a morte do padre Arrupe.
A 32ª Congregação Geral
A 32ª Congregação Geral iniciou em 1974. Depois de anos de preparação, era um evento extraordinário desejado pelo próprio Arrupe para uma verificação do caminho feito e para uma partilha que a Ordem encontrava nas suas relações com a Santa Sé, textualmente "pela necessidade de criar, de concretizar, de especificar ainda mais o serviço que a Companhia deve prestar à Igreja em um mundo que muda tão rapidamente e para responder aos desafios que tal mundo nos apresenta".
Deve-se antecipar que, em 1968, havia sido realizada em Medellín a assembleia do Celam, a Conferência Episcopal Latino-Americana, que havia olhado com fé para a situação de degradação e de opressão em que se encontravam tantas pessoas da população mundial, em particular a do continente latino-americano. Havia-se decidido tomar a sério a opção conciliar pelos pobres, de estar do seu lado e de rever as relações com os governantes claramente opressivos, embora católicos.
Quando a Congregação Geral, preparando o célebre decreto quarto (para vocês, ele não diz nada, mas para nós, jesuítas, diz muitíssimo), assumiu como sua essa opção de Medellín e escolheu como prioridade das prioridades apostólicas o anúncio da fé e a promoção da justiça, as duas coisas postas juntas, o Geral advertiu que essa escolha traria uma onda de novas incompreensões sobre a Companhia e criaria novos mártires.
Hoje, diríamos que ele foi um fácil profeta. Preferimos afirmar que Arrupe era um conhecedor do seu tempo e da vida da Igreja. É impressionante: de 1973 a 2006, morreram 48 jesuítas em missão por morte violenta. Os mais célebre: o padre Ellacuría e os companheiros da Universidade Centro-Americana em El Salvador, padre Rutilio Grande, todos ligados ao assassinato de Dom Romero.
Um discurso à parte mereceria a história dos jesuítas que, na apresentação da fé, em obtemperação aos decretos do Vaticano II como a Gaudium et spes, Unitatis Redintegratio, Dignitatis humanae, tentaram uma renovação da teologia, um diálogo com as outras religiões e se relacionar com o ecumenismo. O que aconteceu com eles todos o sabem. Recordemos os casos de Jon Sobrino, de Jacques Dupuis.
A América Latina, nossa cruz e nossa delícia
A situação da América Latina foi desde sempre a cruz e a delícia da Companhia. Pode-se dizer que ter estado ao lado dos índios no século XVIII contribuiu para provocar a sua supressão (1773-1814), e ter estado ao lado dos oprimidos, sobretudo na mesma região, provocou o seu comissionamento por parte de João Paulo II, a partir de 1983, ano da renúncia do padre Arrupe, em 2008, ano da eleição de Adolfo Nicolás, depois da gestão anômala do padre Dezza e do generalato sui generis do padre Kolvenbach. Enxertam-se aqui os episódios da teologia da libertação, que, estando ao lado dos pobres, era ao mesmo tempo objetivo estratégico dos presidentes dos Estados Unidos (existe o documento de Santa Fé), que se propunham a destruí-la, e também objeto de preocupação por parte do Vaticano, que via nela um atentado à própria fé e uma rendição ao marxismo.
Na realidade, a América Latina, com a sua situação explosiva de injustiça e de pobreza extrema, constrangia a Igreja a rever a sua relação com o poder e a ser pobre e dos pobres. Outras eram as miras de João Paulo II, que desde os primeiros meses do seu pontificado, marcado ainda pela sua experiência de polonês crescido sob o regime comunista, perseguia uma política eclesiástica de apoio aos governos autodenominados cristãos, bem mais opressivos e assassinos, na ilusão de que, contra o ser humano, somente os ateus marxistas podiam agir.
Continua sendo basilar o pacto Reagan-João Paulo II, que implicava a luta contra as comunidades de base e a teologia da libertação na América Latina e ajudas ao Solidarnosc na Europa para a queda do marxismo.
A situação atual
Hoje, a Companhia de Jesus está em crise, assim como tantas ordens religiosas, assim como a vida religiosa em si mesma, crise numéria acima de tudo. Mas talvez essa seja a consequência de uma crise mais profunda. A Ordem não soube se refundar, tirando dos seus alforjes nova et vetera. A atual reorganização em reagrupamentos maiores de províncias religiosas e regiões não segue no mesmo ritmo um discernimento sobre a missão dos jesuítas hoje em obediência ao Vaticano II e à situação de globalização neoliberal em que o mundo versa.
As mesmas incertezas vaticanas sobre o destino do Concílio colocam os jesuítas em uma grave crise. Uma Ordem, que tem uma relação particular com o papa, deve hoje calar sobre os desvios anticonciliares de tantas decisões pontifícias ou, em nome de uma lealdade ao próprio papa, deve denunciar o próprio escândalo e o desconcerto de uma Igreja que hoje parece dividida.
O que um jesuíta deve fazer? Sem a pretensão de dar um juízo universalmente válido, parece sensato dizer que muitos indivíduos religiosos parecem incertos, solitários, confusos, ou têm uma importância moral e espiritual tal a ponto de seguir as indicações do Espírito mesmo em solidão. Exemplos destes últimos é o saudoso cardeal Martini. Raniero La Valle aqui presente recentemente escreveu sobre ele: "Martini não havia participado do Concílio, mas toda a sua vida foi entrelaçada com a extraordinária novidade com que a Igreja do século XX soubera repensar a si mesma, a fé e o mundo. Dessa novidade, ele foi o mais lúcido e corajoso intérprete no episcopado italiano e uma das conversões mais decisivas da Igreja conciliar, a do retorno à Bíblia e da sua restituição à oração e à reflexão dos fiéis".
Aqueles indivíduos religiosos que ontem tinham perplexidades sobre o Concílio hoje têm, de sua parte, o endereço oficial inclinado, ao invés, a uma fidelidade formal e a uma renegação substancial sua. Os tradicionalistas, chamemo-los assim, ainda atraem pessoas na Igreja, apoiando-se em movimentos repletos de entusiasmo e marcados pelo angelodemonismo.
Quem vê no Concílio a esperança do nosso mundo e acredita que é possível conjugar anúncio da fé e promoção da justiça não sente sobre as suas costas a compacidade de uma Ordem; vai às apalpadelas, em um caminho quase solitário, esperando ter sorte. Para essas pessoas, a afirmação "Você não é um jesuíta ou um padre como todos" soa ao mesmo tempo como elogio e crítica.
Em todo caso, tal frase é sempre marcada pela impressão de que algo no testemunho de fé e de Igreja se perdeu. Um tal estado das coisas, contudo, é aberto à esperança. A melhor defesa para que o Vaticano II tenha uma implementação sua na Igreja é aquele mesmo Espírito de Deus que o suscitou.
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A Companhia de Jesus e o Vaticano II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU