23 Julho 2012
Com 10 trilhões de bilhões de corpos celestes no salão cósmico, Deus criou um grande universo de possibilidades.
A reportagem é da revista U.S. Catholic, de fevereiro de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como sacerdote e astrônomo, o padre jesuíta George Coyne levanta pontes entre os mundos da fé e da ciência, mas ele logo reconhece que eles servem a dois propósitos diferentes. "Eu não posso saber se existe um Deus ou se não existe um Deus por meio da ciência", diz.
Ao mesmo tempo, o diretor emérito do Observatório do Vaticano não vê conflito entre o conhecimento científico e o conhecimento religioso, embora admita que a Igreja nem sempre tenha concordado com isso. Mas mesmo no famoso caso do astrônomo Galileu, houve outras questões além da ciência em jogo, a saber, quem poderia interpretar a Bíblia. "Galileu nunca foi teve uma chance de falar sobre a sua ciência", diz Coyne. "Galileo sabia como interpretar as Escrituras, mas ele o fazia privadamente". O Concílio de Trento havia proibido a interpretação privada 70 anos antes, em resposta à Reforma.
Ainda assim, diz Coyne, Galileu apontou o caminho para uma relação mais feliz entre fé e ciência. "Galileu antecipou em quatro séculos o que a Igreja finalmente diria sobre a interpretação das Escrituras", argumenta Coyne. "Galileu disse que as Escrituras foram escritas para nos ensinar a como ir para o céu, e não sobre como os céus vão".
Por sua parte, Coyne encontra na ciência um convite para a exploração. "O universo é dinâmico. Não sabemos totalmente aonde ele está indo", diz. "Será que isso limita Deus? Será que isso minimiza Deus? Acho que não. Eu acho que isso glorifica a Deus".
George Coyne estará na Unisinos, nos dias 02 e 03 de outubro. Ele participará do XIII Simpósio Internacional do IHU, Igreja, Cultura e Sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica. Ele proferirá uma conferência na manhã do dia 03 de outubro e, na noite deste dia, participará do debate com Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA).
Eis a entrevista.
Dê-nos alguns fatos surpreendentes sobre o universo que enriqueceriam a compreensão católica da fé.
O universo compreendido cientificamente é um incrível desafio tanto para a ciência quanto para a fé religiosa. Os fatos científicos acerca do universo estão muito bem estabelecidos. Primeiro, o universo tem 13,7 bilhões de anos. Um bilhão é um número um com nove zeros depois dele, de modo que é um monte de anos. Segundo, ele contém 10 trilhões de bilhões de estrelas. Isso é um número um com 22 zeros depois dele.
Sabemos a idade do universo pela sua expansão: as galáxias estão todas se afastando de nós. Existe uma relação muito estreita entre a sua distância de nós e a sua velocidade. Ou seja, quanto mais distante um objeto está, mais rápido ele está indo. Se você está duas vezes mais longe de mim, você está se afastando quatro vezes mais rápido. Se você está quatro vezes mais longe de mim, você está se afastando 16 vezes mais rápido. Isso vale para todas as galáxias em todo o universo. Quando medimos a idade do universo pela sua expansão, descobrimos que o universo começou a se expandir há 13,7 bilhões de anos, com 200 milhões de anos para mais ou para menos. É uma medida surpreendente.
Como é que se contam todas essas estrelas?
Quando o telescópio Hubble tira uma fotografia da parte mais distante do universo que podemos ver, ele produz uma imagem chamada de Hubble Deep Field. A imagem tem milhões de pontos de luz, e cada um desses pontos de luz é uma galáxia. O Hubble se concentra sobre uma parte muito pequena do céu, um vigésimo da espessura do meu dedo indicador visto do comprimento do meu braço. Então, você tem um milhão de galáxias nesse pequeno pedaço do céu. E se medirmos o céu inteiro? Multiplicando tudo isso junto você obtém 100 bilhões de galáxias, cada uma das quais contém, em média, 200 bilhões de estrelas.
O que há de tão importante nisso?
Agora eu estou chegando às implicações religiosas. Como é que chegamos a estar neste universo? A pergunta clássica é: será que isso aconteceu por acaso, ou foi necessário que viéssemos a existir? A pergunta é uma questão científica em primeiro lugar. Foi por acaso ou por necessidade? Conhecemos os processos. A resposta, de acordo com a ciência moderna, é que são ambas as coisas: o acaso e a necessidade, em um universo fértil.
O que o senhor quer dizer com "universo fértil"?
Uma estrela vive, por assim dizer, por causa de uma fornalha termonuclear existente em seu centro, criada pelo colapso do gás que aumenta a temperatura a milhões de graus. A fornalha converte hidrogênio em hélio. Se a estrela tem massa suficiente, ela entra em colapso novamente, eleva a temperatura ainda mais e converte hélio em carbono, carbono em nitrogênio, e assim por diante. Enquanto a estrela vive, dependendo de sua massa, ela converte elementos mais leves em elementos mais pesados. Quando ela morre, ela vomita esses elementos no universo.
Quando uma geração de estrelas morre, uma nova geração é formada a partir desse gás, que já não é mais apenas hidrogênio, mas está enriquecido com hélio, carbono, silício, nitrogênio, até mesmo ferro. O nosso Sol é uma estrela de terceira geração. Se não o fosse, nós não estaríamos aqui. Precisamos de três gerações de estrelas para conseguir uma estrela que pudesse fornecer os elementos para a vida. É a isso que eu me refiro com a fertilidade do universo, que, através de processos físicos no universo, estamos construindo a química até que tenhamos a química para a vida.
E com relação ao acaso e à necessidade?
Em mais de 14 bilhões de anos em que todas essas estrelas derramaram toda essa química, imagine o que vem acontecendo. O universo tem uma estrutura para isso. Ele tem as leis da natureza. Quando dois átomos de hidrogênio se encontram, eles fazem uma molécula de hidrogênio. Mas às vezes não, porque as condições de temperatura e pressão não estão corretas. Então, eles vagam por todo o universo e se encontram trilhões de vezes.
Existem trilhões de átomos de hidrogênio fazendo isso. Não deveria surpreender-nos quando, por acaso, dois átomos se encontram em um momento em que as condições de temperatura e pressão estão corretas e eles fazem uma molécula de hidrogênio. Isso é o "acaso", mas é também mais do que apenas acaso. Os dois átomos de hidrogênio compõem uma molécula de hidrogênio se cumprirem com as condições corretas. Podemos colocar uma probabilidade nisso. Em volta de algumas estrelas, é mais provável, porque as condições de temperatura são diferentes.
Em algumas galáxias, é mais provável. É uma combinação de acaso e de necessidade, mas, em um universo fértil, há muitas possibilidades para que isso aconteça. Com toda essa química disponível ao longo de mais de 14 bilhões de anos, o acaso e a necessidade trabalham juntos para construir moléculas cada vez mais complexas. Você obtém proteínas, aminoácidos e açúcares, DNA, fígados, corações e, finalmente, o cérebro humano, através da evolução biológica.
Como Deus se encaixa nisso?
Nós conhecemos o processo científico que nos levou a existir. Mas um fiel religioso então pergunta: "Será que Deus fez isso, já que parece haver uma evolução estruturada rumo ao ser humano?". Será que Deus fez isso? Falando como cientista, a minha resposta é: não sei. Não há como saber cientificamente se Deus fez isso. Eu posso ficar surpreso pelo fato de haver esse movimento para organismos cada vez mais complexos e mais adaptados, incluindo os seres humanos. Mas, para mim, como cientista, o ser humano é um organismo biológico complexo.
Eu não posso falar sobre o caráter espiritual do ser humano. Eu posso obter provas disso. Mas eu não posso falar sobre isso como cientista e não posso falar sobre Deus como cientista. Se eu tentar, não estou fazendo ciência. Eu acho que é muito importante, na sociedade moderna, certamente na América moderna, não confundir o que sabemos a partir da ciência com o que sabemos a partir da filosofia, teologia, literatura e música. A cultura humana é vasta, e a ciência é uma parte importante da cultura humana. Mas não é tudo. Eu acredito que Deus criou o universo e, porque acredito que Deus criou o universo, eu acho que é válido para mim como cientista dizer: "Eu sei como é o universo. Que tipo de Deus faria um universo como este?".
Como o senhor responde a essa pergunta?
É um Deus maravilhoso, na minha opinião. Ao criar o universo, Deus não fez uma máquina de lavar roupa ou um carro. Deus fez algo dinâmico. A criação tem um caráter evolutivo para isso. Há acaso envolvido nisso. Esse Deus não fez algo predeterminado. Nós não sabemos completamente para onde isso está indo, nem mesmo cientificamente. Nós não podemos prever tudo. Deus é onipotente? Será que Deus é onisciente, como me foi ensinado? Deus seria capaz de saber no início do universo que eu iria nascer? Para respeitar a ciência, eu tenho que dizer não, porque Deus não pode saber o que não é cognoscível. Uma vez que existem processos de acaso envolvidos, isso não é totalmente cognoscível de acordo com a ciência. Será que isso limita Deus? Será que isso minimiza Deus? Eu acho que não. Isso glorifica a Deus: Deus não queria ter algo que fosse completamente predeterminado.
Esse Deus soa diferente de muitas compreensões comuns.
Sempre que falamos sobre Deus, estamos balbuciando. Estamos fazendo o nosso melhor a partir do que sabemos. Deus não é apenas um objeto sobre o qual falamos, pensamos e ao qual rezamos. Deus é a fonte de tudo, de todo o conhecimento. Mas eu insisto que o nosso conhecimento sobre Deus deve respeitar o nosso conhecimento sobre o universo e sobre nós mesmos no universo. Isso é um desafio, mas é um desafio feliz. Eu creio que Deus é onisciente e onipotente. Mas, então, eu tenho que pensar sobre o que estou dizendo e perguntar: "O que quero dizer com isso?". Eu certamente quero dizer que Deus é todo-poderoso, mas Deus pode fazer qualquer coisa que ele queira fazer? O universo me parece não permitir isso, mas é porque Deus quis que o universo fosse do jeito que é.
Por que alguns crentes querem ignorar ou rejeitar o conhecimento científico?
Não é tanto que eles sejam ignorantes do ponto de vista do que a ciência sabe ou ignorantes do ponto de vista do que a fé religiosa é. Eles não querem enfrentar o desafio de unir essas duas coisas. Mas não há nenhum conflito – mas sim um desafio. Mas eu não vejo que alguma vez tenha havido qualquer conflito entre a verdadeira fé religiosa e a verdadeira ciência.
Então, por que a fé e a ciência parecem estar em desacordo?
Por causa de vocês, jornalistas! Eu só estou brincando, mas alguns jornalistas realmente parecem querer misturar as coisas. Um problema são os cientistas que afirmam que estão praticando ciência quando ou afirmam ou negam a presença de Deus. Eles estão pisando fora da ciência. Eu entro em apuros quando digo isso, mas o ateísmo é uma prática de fé. Um ateu não pode provar para mim que não há Deus. A evidência que temos ao longo de toda a história humana documenta a crença profundamente enraizada das pessoas em Deus. Alguns cientistas irão dizer que todos nós estamos sendo enganados, mas isso não é razoável.
A ciência é um processo racional. É usar a nossa inteligência para tentar entender o universo, assim como a filosofia, a teologia, aliás. É uma tentativa de entender. A fé vai além da razão, mas não contradiz a razão. Estou plenamente convencido de que, não só na minha própria vida, mas na realidade do que a fé religiosa é e do que a razão humana pode realizar. A maioria dos cientistas que eu conheço que são ateus são profundamente respeitosos pela fé humana. Os que não o são não a entendem. O biólogo evolucionista Richard Dawkins, que escreveu Deus, um delírio (Companhia das Letras), e o físico teórico Stephen Hawking, que escreveu Uma breve história do tempo (Rocco), são dois eminentes cientistas. Mas eles não entendem o que é a fé religiosa. Eu conversei com ambos e eu já disse isso a eles. Eles me respeitam porque percebem que eu sou um cientista objetivo e trabalhador assim apenas como eles.
O que falta a eles?
O conceito de Deus de Stephen Hawking é que Deus é algo que precisamos para explicar partes do universo que não compreendemos. Eu digo a ele: "Stephen, me desculpe, mas Deus é um Deus de amor. Ele não é um ser que eu projeto para explicar as coisas quando eu não consigo explicá-las por mim mesmo". Uma vez eu disse a Richard Dawkins: "Richard, por que você se casou com a senhora com quem você se casou? Porque ela tem olhos azuis, pinta suas unhas de vermelho, tem cabelos encaracolados?". Quando você coloca todos os fatos juntos na experiência humana em geral – e não apenas a experiência religiosa –, você não consegue explicá-la totalmente de modo racional. A experiência humana tem um caráter não racional. Isso não a torna irracional. Você não é louco – você pode estar louco de amor –, mas o que tudo isso significa é que você não pode explicar tudo.
Quando o senhor reza, faz alguma diferença que o universo tenha 10 trilhões de bilhões de estrelas?
Absolutamente. Quando eu rezo a Deus, é um Deus totalmente diferente do que aquele a quem eu rezava quando eu era menino. O Deus a quem eu rezo agora é um Deus que não apenas me fez, mas me levou a existir em um universo que é dinâmico e criativo. O universo não é um ser vivo em si mesmo, mas é um universo que, até agora, deu à luz a seres humanos que podem rezar a Deus. Eu rezo a um Deus que, a partir do meu conhecimento científico, fez um universo em que as pessoas passaram a existir e ainda estão passando a existir, mesmo a partir de uma perspectiva científica. O universo continua se expandindo. Só nos últimos 50 anos, veja o que o ser humano passou a ser – estou falando de tecnologia. Na minha infância, nós não tínhamos televisão. Agora, você tem uma no seu bolso. Esse é um desenvolvimento do ser humano. A tecnologia é uma extensão de nós mesmos.
Há algo de especial sobre nós nesse enorme universo?
Nós somos muito especiais para Deus, e não há dúvida disso. Quero dizer, Deus enviou seu Filho único a nós. Ser especial como um pedaço de material no universo é uma coisa; ser especial conhecendo a história religiosa e vivendo uma vida cheia de fé é outra. Mas mesmo assim é um desafio. Como objetos materiais no universo, seria difícil para mim, como cientista, defender que somos especiais. A nossa história como civilização humana certamente nos torna especiais. Mas e se houver uma outra civilização lá fora que seja inteligente e espiritual, que tenha um relacionamento especial com Deus? O que isso faria conosco?
Vou deixar isso para os teólogos. Mas Deus poderia enviar o seu Filho unigênito, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, para se tornar verdadeiro Deus e verdadeiro marciano, ou seja lá o que for? Bem, eu acho isso muito difícil de aceitar. Mas eu não posso excluir. Eu não sei o suficiente para excluir isso e não posso limitar Deus. Isso já é entrar na ficção científica, mas, no fim, se Deus tratou outra civilização espiritual de uma forma muito especial, isso diminui o seu tratamento a nós de uma forma muito especial, mesmo que ele tenha lidado com eles concretamente? Eu tenho 10 irmãos. Se minha mãe decidisse me comprar um novo par de calças, isso tornaria o meu irmão menos especial para a minha mãe? Eu não consigo imaginar que o fato de descobrir uma civilização inteligente e espiritual que Deus ama a seu próprio modo prejudique o fato de Deus nos amar.
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Dançando com as estrelas. Entrevista com George Coyne - Instituto Humanitas Unisinos - IHU