Por: Jonas | 15 Fevereiro 2012
Para Dufour, a última fase dos processos “neo” ou “ultra” liberais é totalitária porque pretende administrar o conjunto das relações sociais. É “a ditadura dos mercados” do qual nada pode escapar.
A entrevista é de Eduardo Febbro e publicada pelo jornal Página/12, 13-02-2012. A tradução é do Cepat.
Alguns já o veem acabado, outros a ponto de cair no abismo, ou em pleno ocaso, ou em vias de extinção. Outros analistas estimam o contrário, que se o liberalismo atravessa uma séria crise, seu modelo está longe, muito longe de destituir-se. Apesar das crises e de seus impactos profundos, o liberalismo segue em pé, produzindo seu lote insensato de benefícios e desigualdades, suas políticas de ajuste, sua irrenunciável impunidade. No entanto, mesmo que ainda siga vivo, a crise despojou como nunca seus mecanismos perversos e, sobretudo, colocou no centro não somente o sistema econômico em que se articula, mas o tipo de indivíduo que o neoliberalismo acabou por criar: hedonista, egoísta, consumista, obsecado pelos objetos e pela imagem fashion que dele emana. A trilogia da modernidade liberal é muito simples: produzir, consumir e enriquecer. Em seu último livro, “El individuo que viene después del neoliberalismo” (O indivíduo que vem após o neoliberalismo), o filósofo francês Dany-Robert Dufour expõe uma questão que poucos se fazem: Como será o indivíduo que surgirá após as catástrofes e as intervenções globais do liberalismo?
Eis a entrevista.
O liberalismo que se apresentou como o salvador da humanidade, acabou levando o ser humano para um caminho sem saída. Você pensa seu fim e pergunta-se a respeito de qual ser humano surgirá depois do ultraliberalismo.
No século passado, conhecemos dois grandes caminhos sem saídas históricas: o nazismo e o stalinismo. De alguma maneira, entre aspas, após a Segunda Guerra Mundial fomos liberados desses dois caminhos sem saídas, pelo liberalismo. Porém, essa liberação encerrou-se numa nova alienação. Nas suas formas atuais: ultra e neoliberal, o liberalismo se configura como um novo totalitarismo porque pretende administrar o conjunto das relações sociais. Nada deve escapar da ditadura dos mercados e ele converte o liberalismo num novo totalitarismo, que segue os dois anteriores. É um novo caminho sem saída histórica. O liberalismo explora o ser humano. O historiador húngaro Karl Polanyi, num livro publicado depois da Segunda Guerra Mundial, demonstrou como a economia antes estava incluída numa série de relações: sociais, políticas, culturais, etc. No entanto, com a irrupção do liberalismo a economia saiu desse círculo de relações para converter-se no ser que busca dominar todas as demais. Desta forma, todas as economias humanas ficam sob a lei liberal, ou seja, a lei do benefício em que tudo deve ser rentável, incluindo atividades que antes não estavam sob o domínio do rentável. Por exemplo, neste momento você e eu estamos falando, mas não objetivamos no sentido da rentabilidade e sim produzir um sentido. Nós estamos numa economia discursiva. No entanto, atualmente, até a economia discursiva está sujeita ao “quem ganha mais”. Cada uma das economias humanas está sob a mesma lógica: a economia psíquica, a economia simbólica, a economia política, a partir daí o naufrágio da política. O político só existe hoje para seguir o econômico. A crise que atravessa a Europa mostra que quanto mais se aprofunda a crise, mais a política deixa a gestão nas mãos da economia. A política resignou-se diante da economia e esta tomou o poder. Os circuitos econômicos e financeiros se apoderaram da política. A crise é, por conseguinte, geral.
O título de seu livro, “El indivíduo que viene después del liberalismo”, considera a dupla ideia de uma fase triunfal e de um fim do liberalismo.
Paradoxalmente, no momento de seu triunfo absoluto o liberalismo dá sinais de cansaço. Damo-nos conta de que nada funciona e as pessoas vão tomando consciência dessa falha e tem uma reação de incredulidade. Os mercados colocaram-se como o remédio para todos os males. Você tem um problema? Pois, então, vá ao Mercado e este vai lhe trazer a riqueza absoluta e a solução dos problemas. No entanto, agora nos damos conta de que o Mercado causa ruínas. Assim, vemos que esse remédio que deveria trazer a riqueza infinita, ao contrário, trouxe miséria, pobreza, destruição. Desde então, o capitalismo produz riqueza global, mas pessimamente distribuída. Sabemos que há 20, 30 anos, as desigualdades aumentam no planeta. A riqueza global do capitalismo despoja de seus direitos milhões de indivíduos: os direitos sociais, o direito a educação, a saúde, enfim, todos esses direitos conquistados com as lutas sociais estão sendo engolidos pelo liberalismo. O liberalismo foi uma religião cheia de promessas. Prometeu-nos a riqueza infinita graças ao seu operador, o Divino Mercado. Porém, não cumpriu.
Em sua crítica filosófica ao liberalismo, você destaca um dos principais danos causados pelo pensamento liberal: os indivíduos estão submetidos aos objetos, não aos seus semelhantes, o outro. A relação em si, a sensualidade, foi suplantada pelo objeto.
As relações entre os indivíduos ficam em segundo plano. Em primeiro lugar, ocupa-se a relação com o objeto. Essa é a lógica do mercado: o mercado pode a cada momento agitar um objeto capaz de satisfazer a todos os nossos apetites. Pode ser um objeto fabricado, um serviço e até um fantasma, sob medida, construído pelas indústrias culturais. Estamos num sistema de relações que privilegia o objeto antes que o sujeito. Isto cria uma nova alienação, uma espécie de modalidade viciante com os objetos. Este novo totalitarismo, que é o liberalismo, coloca nas mãos dos indivíduos elementos para que oprimam a si mesmos por meio dos objetos. O liberalismo nos deixa a liberdade de alienarmos a nós mesmos.
Você situa o princípio da crise nos anos de 1980, por meio da restauração do que você chama a narrativa de Adam Smith. Você cita uma de suas frases mais espantosas: para escravizar um homem deve-se dirigir ao seu egoísmo e não à sua humanidade.
Adam Smith remonta ao século XVIII e sua moral egoísta se expandiu um século e meio depois com a globalização do mercado no mundo. De fato, Smith tardou tanto porque houve outra mensagem paralela, outro Século das Luzes que foi o do transcendentalismo alemão. Ao contrário das Luzes de Smith, as alemãs propunham a regulação moral, a regulação transcendental. Esta regulação podia se manifestar na vida prática por meio da construção de formas como as do Estado, com o intuito de regular os interesses particulares. A partir do Século das Luzes há duas forças que se manifestam: Adam Smith e Kant. Estes dois campos filosóficos coexistiram de maneira conflituosa ao longo da modernidade, ou seja, em dois séculos. Entretanto, em dado momento o transcendentalismo alemão se desmoronou e deixou lugar para o liberalismo inglês, que adquiriu uma forma ultraliberal. Esse fenômeno pode ser coroado a partir do início dos anos 1980. Há, inclusive, uma marca histórica que remonta ao momento em que Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margareth Thatcher na Grã-Bretanha, chegam ao poder e estabelecem a liberdade econômica sem regulação. Essa ausência de regulação destruiu imediatamente as convenções sociais, ou seja, os pactos entre os indivíduos.
Disso provém a trilogia: “produzir, consumir e enriquecer”. Você chama essa trilogia de “pleonexía”.
Encontrei o termo “pleonexía” na República de Platão e ela quer dizer “sempre ter mais”. A República grega, a Pólis, foi construída sobre a proibição da “pleonexía”. Pode-se dizer, então, que até o século XVIII toda uma parte do Ocidente funcionou com base nessa proibição e se liberou dela nos anos de 1980. A partir daí, liberou-se a avidez mundial, a avidez dos mercados, a avidez dos banqueiros. Lembre-se do discurso que pronunciou Alan Greenspan (ex-presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos) diante da Comissão norte-americana, após a crise de 2008. Greespan disse: “Pensava que a avidez dos banqueiros era a melhor regulação possível. Dou-me conta de que isso não funciona mais e não sei por que”. Dessa maneira, Greenspan confessou que a liberação da “pleonexía” é o que guia as coisas. E agora vemos para onde ela conduz.
Chegamos agora ao depois, ao hipotético ser humano do após liberalismo. Você o vê sob os traços de um indivíduo “simpático”. Que sentido tem o termo simpático nesse contexto?
Ninguém é bom ao nascer como pensava Rousseau, nem é mal como pensava Hobbes. O que podemos fazer é ajudar a pessoa a ser simpática, ou seja, a não pensar somente em si mesma, mas pensar que para viver com o próximo terá que contar com ele. O outro está em mim, as imagens dos outros estão em mim e me constituem como sujeito. A ideia própria de um indivíduo egoísta é sem sentido porque isto obriga que nos esqueçamos de que, em partes, o indivíduo é constituído pelo outro. E quando falo de um indivíduo simpático não emprego o termo em sua definição mais comum: digamos alguém simplesmente simpático. Não. Trata-se do sentido que teria a palavra no século XVIII, em que a simpatia era a presença do outro em mim. Então, necessito da presença do outro em mim e o outro necessita de minha presença nele para que possamos constituir um espaço em que cada um seja um indivíduo aberto ao outro. Eu cuido do outro como o outro cuida de mim. Isso é um indivíduo simpático.
Continuemos com a simpatia, porém em que bases pode-se construir o indivíduo que vem posteriormente ao liberalismo? A razão, a religião, o esporte, o ócio, a solidariedade, outra ideia de mercado?
Nesse livro, fiz um inventário sobre as narrativas antigas: a narrativa do logos, da evasão da alma dos gregos, a narrativa sobre a consideração do outro nos monoteísmos. Dei-me conta de que nessas narrativas havia coisas interessantes e também assustadoras. Por exemplo, a opressão das mulheres no patriarcado monoteísta equivale à opressão da metade da humanidade. Por acaso, queremos repetir essa experiência? Supostamente não. Outro exemplo: no logos, para que haja uma classe de homens livres na sociedade é preciso que haja uma classe oprimida e escravizada. Queremos repetir isso? Não. Refundar nossa civilização depois dos três caminhos sem saídas, que foram o nazismo, o stalinismo e o liberalismo requer uma refundação sobre bases sólidas. Por isso, levei a cabo esse inventário, para ver o que poderíamos recuperar e o que não, quanto do passado poderia nos servir e quanto não. A segunda consideração refere-se àquilo que poderia ajudar o indivíduo ser simpático ao invés de egoísta. Para isso, é preciso reconstruir um meio em que se possa ser simpático e não egoísta. Nesse contexto, a ideia de reconstrução do político, de uma nova forma de Estado que não esteja dedicado a conservar os interesses econômicos, mas sim preservar os interesses coletivos, é central.
Qual é então a grande narrativa que poderia nos salvar?
Deixamos os caminhos das grandes narrativas anteriores e cada vez cremos menos na grande narrativa do mercado. Estamos esperando algo que una o indivíduo, ou seja, uma grande narrativa. Eu proponho a narrativa do indivíduo que deixou de ser egoísta, que não seja nem o indivíduo coletivo stalinista, nem o indivíduo afogado na razão, que se crê superior, como no nazismo e no fascismo. Trata-se de uma narrativa alternativa a tudo isso, de uma narrativa que persiste no fundo da civilização. Creio que o valor da civilização ocidental arraiga-se na acentuação da individuação, ou seja, a ideia da criação de um indivíduo capaz de pensar e atuar por si mesmo. Não temos que esquecer a noção de indivíduo, mas reconstruí-la. Contrariamente ao que se diz, não creio que nossas sociedades sejam individualistas, não, nossas sociedades são lamentavelmente egoístas. Isto me faz pensar que ao indivíduo como tal lhe resta muita margem de existência, que há muitas coisas dele que não conhecemos. Temos que fazer existir o indivíduo fora dos valores do mercado. O indivíduo do stalinismo foi dissolvido na massa do coletivismo, o indivíduo do nazismo e do fascismo foi dissolvido na razão, o indivíduo do liberalismo foi dissolvido no egoísmo. O indivíduo liberal é um escravo de suas paixões e de suas pulsões. Devemos elevar-nos desse caminho sem saída liberal para recriar um indivíduo aberto ao outro, capaz de realizar-se totalmente. Há textos filosóficos de Karl Marx, que não são muito conhecidos, nos quais ele queria a realização total do indivíduo, fora dos circuitos mercantis: no amor, na relação com os outros, na amizade, na arte. Poder criar o máximo a partir das disposições de cada um. Talvez tivesse que recuperar essa narrativa do Marx filósofo e esquecer a do Marx marxista.
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“O liberalismo se configura como um novo totalitarismo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU