Justo, solidário ou multinacional?

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06 Janeiro 2012

A terceira revolução industrial recomeça de onde a primeira tinha começado: dos campos de algodão e de café. É a revolução do fair trade: o comércio justo e solidário. Um volume de negócios de 6 bilhões de dólares. Uma taxa de crescimento de 27% ao ano. Mais de 1,15 milhão de agricultores dos países mais pobres arrancados da miséria.

A reportagem é de Angelo Aquaro, publicada no jornal La Repubblica, 02-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Mas então por que os inventores dessa revolucionária forma de comércio – e que presenteia ao produto rotulado como "comércio justo" 10% a mais nas vendas – começaram a brigar como os velhos capitalistas de antigamente?

Esqueça as colinas do Vale do Silício – onde a segunda revolução explodiu, prepotente – e volte novamente o olhar para as plantações de todo o planeta: da Nicarágua a Burkina Faso. É aqui que a revolução do justo e solidário promete reequilibrar a balança comercial dos agricultores até agora mal pagos. E enriquecer ainda mais os bolsos das multinacionais: da Nestlé em diante.

Vendo os números, parece realmente um milagre: Karl Marx de braços dados com Adam Smith. Só que ultimamente o velho Adam está começando a acelerar um pouco demais o passo: e o bom Karl, ao contrário, ficando atrás dele, continua coçando a barba duvidoso.

Desde o dia 1º de janeiro, a Fair Trade USA saiu da Fair Trade International. Para a maior associação de comércio justo e solidário do mundo é mais do que uma perda: é uma amputação. Com um volume de negócios de 1,8 bilhões de dólares, os norte-americanos constituem mais de um terço desse mercado de 5,8 bilhões de dólares em contínua expansão. Para a organização que representa 25 países, incluindo a Itália, e que garante o trabalho e a produção justa e solidária de uma centena de produtos, é um golpe que corre o risco de ser fatal. Mas tem mais. A disputa explodiu até dentro do conselho de administração da Fair Trade International. Onde os dois fundadores se encontraram armados. E dos EUA a Bonn, sede da Fair Trade International, o motivo de disputa é sempre o mesmo.

De um lado, há aqueles que, como os norte-americanos e como um dos dois fundadores do movimento, Nico Roozen, incentiva a abertura ao mercado e o envolvimento cada vez maior das empresas multinacionais. De outro, há quem defenda que, fazendo isso, trai-se o movimento: e o número um do partido da resistência é justamente o outro fundador, o missionário holandês Frans van der Hoff.

"Os dois pais fundadores estão assumindo duas posições diferentes", confessa à Businessweek o próprio Roozen, 58 anos, filho de um produtor de tulipas, o produto que fez florescer o império comercial holandês, mas cujo crescimento também levou à primeira bolha financeira do mundo. "Frans critica a Fair Trade porque está fazendo compromissos com as multinacionais como a Nestlé. E eu critico a Fair Trade porque não está liderando o caminho rumo ao comércio justo de massa".

"Estão diluindo o conceito de justo", responde o missionário, que ainda vive com os pobres agricultores mexicanos de Oaxaca, os primeiros a serem beneficiados com o seu programa. A intuição que Roozen e van der Hoff tiveram em um supermercado de Utrecht em 1985 foi genial. Ajudar os pequenos produtores a encontrar uma saída comercial sem acabar entre os torturadores da grande distribuição. E sobretudo favorecer uma produção mais justa garantindo um preço mínimo e um "premium" para investir em projetos de melhoria social: da saúde à educação. Os produtores que aceitassem as regras do jogo seriam rotulados justamente como "fair trade". E o consumidor cada vez mais atento e socialmente responsável favoreceria assim aqueles produtos finalmente "assegurados".

A revolução funcionou tão bem que hoje o comércio justo é garantido por cerca de 200 marcas: até as Botteghe del Mondo também conhecida na Itália, por exemplo, que distribuem produtos certificados justos da associação Altromercato. Mas a Fair Trade continua sendo, obviamente, o gigante mundial. Too big to fail, como dizem os economistas sobre a propósito dos bancos que mantiveram Wall Street como refém: muito grande para falir. Se o gigante entra em colapso, desmorona toda a estrutura do justo solidário. E a cisão norte-americana é o primeiro abalo do terremoto que virá. Desde o dia 1º de janeiro, a Fair Trade USA irá rotular os produtos justos com a sua própria marca. O presidente Paul Rice explicou ao New York Times a escolha como uma reviravolta também revolucionária: "Queremos que continue sendo um movimento pequeno e puro ou queremos assegurar o comércio justo para todos?".

Comércio justo para todos significa, porém, rever as regras. A receita com que os norte-americanos juram duplicar até 2015 a quota de mercado, na verdade, é menos engenhosa, mas indubitavelmente ainda mais eficaz do que a concebida há 30 anos pelos pais fundadores holandeses. Dar o rótulo de fair trade também às grandes plantações que aceitam se submeter às regras do comércio justo – a despeito obviamente dos pequenos produtores. E depois diminuir o limiar dos ingredientes necessários para rotular um produto como "justo" de 20% para 10%. O mecanismo foi pensado para aumentar a participação no mercado dos gigantes Starbucks, Wal-Mart, Nestlé. O café representa 70% de toda a produção fair trade nos EUA. E a descoberta de que o justo e solidário vende, fez aumentar os investimentos dos grandes: a quota fair do Starbucks – a maior loja de café do mundo – já chega quase a 10% e está em contínuo crescimento. Mas os pequenos importadores que fizeram do comércio justo o seu credo, não.

"Starbucks, Green Mountain e outras grandes marcas poderão se tornar 100% fair trade, não porque mudaram o seu modo de fazer negócios, mas sim porque a Fair Trade USA mudou as regras do jogo": essa é a acusação que vem precisamente de Dean Cyon, o fundador da Dean’s Benas Organic Coffe Company, uma pequena empresa de Massachusetts. "Os agricultores das grandes plantações são os verdadeiros últimos do mundo", rebate Rice: "Assim poderemos, ao contrário, obrigar os proprietários a aplicar as regras".

E na Itália? O mercado ainda é pequeno, mas em crescimento, com um aumento de 15% e um volume de negócios de 56 milhões de euros por ano. E grandes marcas como Feltrinelli, Coop e Conad já entraram em campo. O choque norte-americano provocará alguma coisa? "É muito fácil tirar o corpo fora", diz Paolo Pastore, diretor da Fair Trade Italia. "Esperamos até o último momento para que o divórcio não se consumasse, e eu mesmo discuti isso com Paul Rice".

O problema será agora para aquelas marcas norte-americanas que também são exportados para a Itália: como o sorvete Ben & Jerry’s. "Claramente não poderão abandonar a Fair Trade International: não podem renunciar ao mercado europeu". Que, junto com a Austrália e o Japão, constitui os outros dois terços da fatia fair trade. A disputa, enfim, não pode fazer bem ao movimento, que nestes dias também teve que se defender de outra tempestade: o escândalo descoberto dos certificados falsos dos produtores de Burkina Faso escravas meninas para colher algodão, que acabava nos sutiãs nem justos nem solidários da Victorias’s Secret. Um horror, como os denunciados por Conor Woodman: o jornalista que no livro Unfair Trade contou – segundo o subtítulo – "como o grande negócio explora os mais pobres do mundo".

Sem dúvida, toda revolução tem as suas vítimas. A terceira revolução industrial conseguirá manter as suas promessas de libertação?